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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

10.09.19

A guerra em África: Cessar-fogo


Luís Alves de Fraga

 

Independentemente daquilo que diz o Programa do MFA, a realidade nos três teatros de guerra foi outra coisa.

Sempre se tornou difícil, para os colonos em geral e para a população civil portuguesa, compreender como se chegou, em África, àquilo que foi o curto tempo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Só quem lá esteve, num dos três teatros de operações, pode explicar como tudo se passou, como tudo se processou. Eu vivi uma realidade: a de Moçambique. Conheço, mais ou menos de perto os acontecimentos da Guiné.

Neste breve apontamento, julgo, conseguirei, em síntese, colocar os leitores na ambiência das duas colónias; quanto a Angola, serei bastante genérico, porque as ocorrências foram muito complexas e não cabem em meia dúzia de linhas.

 

Comecemos pelos dias imediatos a 25 de Abril.

Embora sem surpresa ‒ e aqui vai um paradoxo ‒ o golpe militar e o que aconteceu logo de seguida em Portugal, apanhou-nos de surpresa. O que é que nós, os que estávamos em África, teríamos de fazer de imediato? O que fazer da PIDE/DGS? O que fazer dos generais? E da restante cadeia de comando? E da guerra?

Na cidade da Beira, de certa forma, ficámos à espera. Uma semana depois chegou de Lisboa um major ‒ se a memória não me atraiçoa, o Hugo dos Santos ‒ com instruções para se estruturar e institucionalizar, de imediato, a cadeia do MFA; uma cadeia que funcionaria, em paralelo, com a cadeia de comando, ganhando a dinâmica que fosse necessária.

 

Um coronel ‒ muito nosso conhecido, dos oficiais que frequentaram a Academia Militar (AM) ‒ “deitou mão” ao vértice da estrutura do MFA e “comandou-a”. Foi o coronel Pinto Ferreira, o “Pinto Peneiras” da educação física da AM. Formaram-se comissões com diversas finalidades. Eu, porque já eleito pelo corpo de oficiais do BCP-31, como porta-voz da minha unidade, integrei-me na comissão de esclarecimento: tinha ligações à rádio e aos jornais e podia responder às perguntas da população civil. Responder a tudo o que sabia; somente isso.

 

Mas o tempo, as semanas, passava e havia que tomar medidas sobre as operações militares.

Tínhamos notícia de unidades sediadas em zonas não afectadas pela acção da guerrilha, mas compostas fundamentalmente por tropas negras de recrutamento local, que se recusavam a pegar em armas, mesmo que fosse para fazer um simples serviço de sentinela. Para eles a guerra acabara, quando nem, muitas vezes, chegara a começar.

Ao mesmo tempo ‒ mais semana menos semana ‒, chegou de Lisboa, uma delegação ‒ agora com uma composição “cheia de estrelas” ‒ chefiada pelo general Costa Gomes e integrando o general Diogo Neto (foi quando deu as ordens, já referidas, sobre a família Jardim).

 

Costa Gomes trazia uma mensagem muito clara: estavam criadas as condições para a FRELIMO cessar-fogo e passar à fase de negociações, entretanto, dever-se-ia manter o dispositivo de combate!

Mas, meu Deus, qual dispositivo?

As únicas tropas que estavam em condições de intervir onde fosse necessário eram os pára-quedistas, os comandos e, provavelmente ‒ por se sediarem lá a Norte, no lago Niassa ‒ os fuzileiros. Recordo-me que teve de embarcar à pressa uma fracção de pára-quedistas para uma zona da Zambézia onde um furriel europeu, sozinho, tentava manter a pouca disciplina possível numa companhia de soldados negros.

As ordens do general Costa Gomes eram inexequíveis fosse como fosse. Os acontecimentos ultrapassavam o espectável.

 

Rapidamente se teve de passar para uma outra fase: a do cessar-fogo pontual, feito unidade a unidade, circunstância a circunstância. Foi assim que se aproximaram as unidades combatentes de ambos os lados.

Recordo que, entre os oficiais do BCP-31, reinavam sentimentos contraditórios ditados, em especial, pela forma como haviam sido vividos todos os anos de guerra. Nem sempre ‒ diria que nunca ‒ a guerra dá prazer. Curioso foi ver como as feridas de campanha se adormeceram de lado a lado, embora se pudessem reacender a qualquer momento com forte intensidade.

 

Quando finalmente chegou a Moçambique a ordem de estabelecer o cessar-fogo ele já havia sido alcançado por quase todas as unidades.

Pela primeira vez, na minha vida de oficial, e já dela levava quase dez anos, senti que os acontecimentos podiam ultrapassar, sem quaisquer barreiras, as ordens e os cálculos dos estados-maiores. Pela primeira vez, percebi que a política tem de ser, em certas alturas, a arte de conseguir o possível. A falência militar ‒ uma falência minada pela prática de uma má política ‒ não criou condições para que os políticos e, consequentemente, os diplomatas pudessem fazer diferente do que fizeram. E a culpa não foi dos militares; foi de quem os mandou fazer a guerra até ao ponto de não retorno.

 

Na Guiné, tanto quanto julgo saber, passou-se algo de muito semelhante ao que descrevi para Moçambique. Foram os comandos militares das unidades que fizeram os movimentos necessários para ditar o cessar-fogo. E, parece, em algumas circunstâncias, chegou a assumir a proporção de encontros de camaradas em luta em campos opostos, mas camaradas.

Este é um sentimento muito difícil de explicar a quem nunca foi militar ou a quem fez a guerra com ódio e raiva, porque a guerra, quando levada a cabo por profissionais, é um acontecimento que se detesta, que se não quer fazer, mas que tem de ser feito e, quando cessa, há, repito, entre os profissionais, uma descarga de consciência e um fim de sacrifício.

 

Em Angola, na prática, não houve cessar-fogo, porque, todas as forças em confronto, tinham motivos para continuar o combate. Foi possível, por razões que não vêm ao caso, estabelecer um mínimo entendimento entre as forças armadas portuguesas e o MPLA, mas sempre muito precário.

 

Diga-se o que se disser, tudo o que aconteceu foi o resultado de uma teimosia política levada ao limite, que careceu de um golpe militar para acabar; e, tal golpe, deixou aqueles que o fizeram dentro de uma contradição: ou continuavam a guerra e a ditadura só mudava de nome ou faziam a paz possível para conseguirem construir a democracia. Optou-se, e, na minha opinião, bem, por fazer a paz para se gozar dos valores da democracia.

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