A guerra em África: A rebelião na cidade da Beira
Estávamos no final da primeira quinzena do mês de Janeiro de 1974. O que se passou na cidade da Beira, em Moçambique, durante cinco ou seis dias, foi paradigmático. Indiciava tudo, e aconteceu em minúsculo, o que poderia vir a acontecer à escala nacional. Porque assim foi ‒ ou eu intuí logo que poderia vir a ser ‒ farei um relato tão preciso quanto a memória mo permitir, recuando no tempo para enquadrar os acontecimentos.
No dia 18 de Dezembro de 1961 iniciou-se a invasão militar de Goa e dos restantes territórios do chamado Estado da Índia Portuguesa. Eu estava, então, no primeiro ano da Academia Militar. Julgo, já se tinham iniciado as férias de Natal ou estaríamos para as começar.
Recordo, no meio da exaltação vivida, as palavras perfeitamente idiotas de um oficial com responsabilidades ‒ um capitão ‒, advogando a necessidade de Portugal comprar uma bomba atómica e lançá-la sobre a capital da União Indiana!
Mas, o mais impressionante foi o silêncio do regime sobre o destino dos milhares de prisioneiros lançados em campos de concentração, depois de o governador-geral ter ordenado uma resistência simbólica, rendendo-se para evitar um massacre sem sentido. Os efectivos militares portugueses não iam além de quatro mil homens, quando os dos invasores ultrapassavam os cinquenta mil. Recordo que a revista “Paris Match”, desse mês de Dezembro ou Janeiro seguinte, trazia na capa o sugestivo título (cito de memória) «Um exército que devia fazer hara-kiri”». Essa era a vontade de Salazar: “criar” um longo naipe de mortos, transformados em “heróis”, com os quais poderia fazer pressão internacional para “reverter” a invasão. Um autêntico delírio, tão impossível como o da bomba atómica!
Deste trágico incidente, no final do ano de 1961, ficou, para os futuros oficiais do Exército e da Força Aérea, que frequentaram a Academia Militar um pouco antes e um pouco depois, uma certeza: a derrota das armas servia de bode expiatório dos erros da política. O regime ditatorial e fascista não assumia os seus desvarios: empurrava-os para as forças armadas, enxovalhando-as. Foi por este motivo que o general Vassalo e Silva, governador-geral, foi destituído do Exército e condenado, por se ter rendido perante um inimigo, que o ia esmagar, esmagando toda a pequena guarnição que comandava.
Nesse mesmo ano de 1961, em Março, havia começado a guerra em Angola. Uma guerra que, mais uma vez, escondia a incapacidade e a falta de vontade do governo negociar, com tempo, a forma como iria descolonizar. Uma guerra que se iria perder, caindo sobre as forças armadas o labéu de incapacidade e incompetência. Ia ser inevitável e os Portugueses já estavam habituados a atirar as culpas para cima dos militares. Aliás, os Portugueses nunca manifestaram grande apreço e estima pelas suas forças armadas.
Saltemos mais de uma dezena de anos e fixemo-nos em 1973, em África.
Com o fornecimento dos mísseis soviéticos Strella ou SAM-7 aos três partidos que geriam a guerrilha em Angola, Guiné e Moçambique, a URSS parecia disposta a fazer subir um patamar ‒ neste caso, decisivo ‒ estratégico na guerra em África, porque o simples uso desta arma, se generalizado, ia limitar muitíssimo a actuação das aeronaves da Força Aérea, retirando às forças armadas a supremacia aérea, passando-a ao nível de superioridade, nos casos e nas zonas onde tal fosse possível.
A inutilização militar dos meios aeronáuticos ia ser uma questão de tempo, no máximo, alguns meses. O passo seguinte era, nos teatros onde tal fosse possível, passar de uma luta de guerrilha para uma guerra do tipo clássico com uso de material pesado, tal como artilharia, morteiros e carros de combate. Quando aí se chegasse, as forças armadas estariam incapazes de suportar o embate e a derrota estaria à vista. E para que tudo acontecesse deste modo bastavam alguns meses, não mais do que dois anos, para ser igual em todos os três teatros de operações.
Estou a exagerar?
Para dar resposta basta situar-me na evolução militar em Moçambique, na segunda metade de 1973. A FRELIMO para além de ter aberto a frente de Tete, estava a infiltrar-se na Zambézia e avançava pelo corredor central em direcção à cidade da Beira. Talvez, no final de 1974, se não tivesse havido a mudança de regime político em Portugal, a guerrilha estaria muito próxima da segunda cidade de Moçambique. Isso causaria toda a diferença, pois geraria a instabilidade na linha férrea, no porto e no aeroporto.
Tudo isto foi percepcionado pela população de Vila Pery e da Beira, quando, em Janeiro de 1974, os guerrilheiros mataram a mulher de um fazendeiro na região do planalto do Chimoio. Para eles correspondeu ao acordar de um sonho, pois acreditavam que a guerra era uma coisa somente dirigida às forças armadas. O choque foi brutal e, por isso, procuraram jogar toda a sua raiva e despeito em cima dos militares.
Fizeram-no de uma maneira curiosa, que deixa perceber ter estado por detrás do movimento “espontâneo” uma mão desconhecida, preparando já a culpabilização das forças armadas.
Os comerciantes da cidade da Beira, por decisão tomada em assembleia da sua associação, determinaram mostrar descontentamento contra as forças armadas, em especial contra o Exército, fechando as portas dos seus estabelecimentos. Adoptando uma posição sem sentido, reuniram-se em frete da messe dos oficiais do Exército, no Macúti, exigindo o encerramento do bar. Montaram cerco ao edifício, arregimentaram cidadãos europeus e gritaram, durante dois dias, slogans e palavras de ordem contra os militares e os oficiais e famílias ali residentes. A PSP de recrutamento ultramarino ‒ a que fardava de cáqui ‒ acabou por juntar-se à manifestação e, em vez de acabar com ela, protegia-a. Foi necessária a intervenção da companhia da Polícia Militar, com uso de granadas de fumo, para dispersar a multidão.
Claro que este acontecimento, explicado em poucas linhas, levanta grandes interrogações. A primeira, porque mais evidente, resulta da ausência de aviso e intervenção da PIDE/DGS. Seria possível acontecer o que aconteceu sem que aquela polícia tivesse prévio conhecimento dos objectivos e das intenções? Pessoalmente, julgo, a PIDE/DGS da cidade da Beira soube de tudo com antecedência, mas, também para se poupar e esquivar de responsabilidades no avanço da guerrilha, “esqueceu-se” de avisar as autoridades militares e de mobilizar as suas possibilidades para pôr termo à ocorrência. Estava bem evidente que aquela força policial pretendia ajudar a atirar as culpas da futura e esperada derrota militar para as forças armadas. Era um novo Estado da Índia que se desenhava no horizonte!
Mas a quem aproveitava mais esta alteração da ordem? Continuo a supor, a todos quantos jogavam na sombra, contra a “ordem ultramarina” imposta por Lisboa. Havia que “empurrar” o Exército para uma adesão à causa da independência unilateral de Moçambique. Constou, na altura, que o comandante do BCP-31 se recusou a dispersar a multidão, alegando que se iria fazer muito sangue. Assim, levanta-se uma outra pergunta: quem alinhava com quem?
A verdade é que, como por mim já referido, depois de reposta a tranquilidade aparente, o editorial do jornal afecto a Jorge Jardim apontava, nas entrelinhas, para numa melhor oportunidade se manifestar a vontade popular na Beira.
A segunda metade do mês de Janeiro de 1974, lá longe, na cidade da Beira, foi o ”tubo de ensaio” onde, quem quis ver viu, se desenhou um futuro que, afinal, não aconteceu, porque em Lisboa, em Bissau e em Nampula já os capitães conspiravam para pôr fim a uma guerra que, a continuar, para além da ruína e caos nacionais, iria trazer desonra para as forças armadas, que combatiam já sem fé numa solução justa e patriótica.