A guerra em África: a prostituição
Chamaram-lhe já “a mais velha profissão do mundo”, ainda lhe chamam “trabalho do sexo”, mas quando será que alguém reconhece que a prostituição nem é profissão nem é um trabalho? Quando é que se reconhece que a prostituição não é um prazer, mas, na maioria das vezes, o último recurso de sobrevivência para mulheres à beira da fome, do desespero e, acima de tudo, quase sempre, um caso de total perda de auto-estima?
Estranhamente, quando, antes da guerra colonial, era difícil migrar para as colónias africanas, não se criavam grandes embaraços de partida às mulheres que, em Portugal, já faziam da prostituição uma forma de ganhar a vida. Elas, brancas e europeias, iam para Angola ou Moçambique onde sabiam poder angariar a fortuna que por cá jamais alcançariam. Eram, para além de tudo, sonhadoras. Pobres sonhadoras.
Desse tempo, ouvi contar a história de uma tal “Marabunta”, que terá feito dinheiro em Luanda, ainda antes da guerra começar. Será verdade?
Entre 1961 e 1974, nas colónias de África, a prostituição foi, para mulheres negras e brancas, um recurso para alimentar filhos ou família e, em determinadas circunstâncias, um caso de sobrevivência com a dignidade mínima necessária a um ser humano.
Porque pouco ou nada se disse sobre este assunto, limitar-me-ei a descrever o que vi em Moçambique, onde estive no cumprimento de duas comissões de serviço. Referirei ‒ sem revelar as fontes de informação ‒ um ou dois casos passados com camaradas e amigos meus. Não poderei generalizar as situações e as conclusões às colónias de Angola e da Guiné, no entanto, julgo, não seria abusivo fazê-lo.
Mas, antes, há que contextualizar a situação que desejo abordar fugidiamente.
Depois de a guerra colonial já ter três frentes, foram colocados por lá, em média, cerca de trinta mil homens em Angola, o mesmo em Moçambique e vinte mil na Guiné. Estas forças desdobravam-se por toda a extensão dos territórios, podendo dizer-se que a maior concentração se fazia nas zonas de declarada intervenção militar e nas capitais respectivas, onde estavam os estados-maiores (em Moçambique esta “retaguarda” distribuía-se entre Lourenço Marque ‒ hoje Maputo ‒ e Nampula) e os serviços de apoio. Assim, nas cidades, a “população” europeia cresceu uns milhares de homens.
Com esta breve e sintética explicação quero realçar que homens jovens, dispostos a gastar dinheiro sem grande preocupação de onde e como o faziam, apareceram nas capitais das colónias, quebrando bastante as rotinas e tradições de antes da guerra.
Em Lourenço Marques, na chamada “Baixa”, duas ruas, a do Major Araújo e a Consiglieri Pedroso, por estarem perto do porto, sendo já, desde o passado, o centro de concentração da diversão nocturna, aumentaram com a guerra. Era por lá que havia os cabarés, as cervejarias e as tascas que se enchiam de homens jovens e de mulheres dispostas a ganhar dinheiro de forma rápida. Nos cabarés “Aquário” e “Tamila” as principais “atracções” e “acompanhantes” eram mulheres brancas, europeias, no entanto, nas cervejarias e tascas a quase totalidade eram negras, algumas com perucas louras, o que estabelecia um contraste exótico. Nessas ruas, a vida começava ao anoitecer.
Era por essas duas artérias que se despejavam os militares, fardados ou à paisana, “residentes” na cidade ou de “passagem” à espera de seguirem para o interior ou de marcharem de regresso a Portugal.
Com base num relato verdadeiro, exactamente, aquando do regresso, os oficiais de um batalhão foram ‒ como não podia deixar de ser, dizia-se ‒ até à rua do “camarada” Araújo para verem ‒ ou, talvez mais, para quem estivesse disposto a abrir os cordões à bolsa ‒ um espectáculo de striptease (podia ser feito por uma mulher ou por um travesti). Com eles ia o padre capelão da unidade, que, por ser de baixa estatura, no momento crucial alguém o fez subir para cima da mesa de modo a não perder nada do show.
Este episódio ‒ se calhar repetido dezenas de vezes, noutras ocasiões ‒ dá para perceber como, até homens preparados para resistirem aos “apelos da carne” se “deixavam ir” pelas “sendas do pecado”.
Isto, visto hoje com os olhos cansados pela passagem da idade, evidencia, não a aventura da juventude, mas, os estilhaços da guerra, tanto sobre homens-soldados como sobre homens-sacerdotes e, mais do que tudo, sobre mulheres dispostas a “venderem” o corpo para, sabe Deus, angariarem meios de subsistência que não tinham de outras formas. Por favor, que não haja moralistas para as condenar, para os condenar, porque, ou se começa por condenar quem julgou que era pela guerra que se resolvia o problema colonial, ou o melhor é ficar calado.
Na cidade da Beira‒ outro centro de concentração militar ‒, em Moçambique, não havia salões de chá ou boîtes ou discotecas para os casais jovens dançarem nas sextas-feiras e sábados à noite; havia vários cabarets onde, os mais ousados, levavam as mulheres para verem o espectáculo, que incluía striptease e actuação de cançonetistas idos de Portugal. Algumas vezes aconteceram cenas caricatas com pugilismo à mistura, porque, um militar “maçarico” (acabado de chegar à cidade) tomava a acompanhante do cavalheiro por uma “funcionária” e o “caldo entornava-se” sem o jovem perceber a razão!
Em Nampula, tal como em Lourenço Marques, nos bairros indígenas, havia mulheres negras dispostas a prostituírem-se a troco de vinte ou vinte e cinco escudos. Era por aí que os soldados ‒ menos abonados do que os oficiais e sargentos ‒ procuravam fazer de conta que esqueciam a distância, as saudades e as ansiedades geradas no mato. E a tudo isto as autoridades policiais e cívicas fechavam os olhos num silêncio cúmplice, porque, este outro lado da guerra, era tão ou mais alienante que o ópio ou a religião, segundo a metáfora marxista.
Salazar e a PIDE, a polícia política que a ele reportava, hipocritamente, depois de terem proibido a prostituição legal, assistiam impávidos, com ar seráfico, à degradação moral de todos os envolvidos na guerra, que arrastavam os seus medos e os seus pesadelos. Afinal, eles, os responsáveis, eram muito mais bestiais do que todos quantos no acto sexual buscavam remédio para feridas invisíveis.
Foi a guerra…