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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

15.09.19

A guerra em África: A descolonização


Luís Alves de Fraga

 

Vulgarmente designamos por “descolonização” a saída em massa dos europeus que habitavam nos territórios portugueses do continente africano, antes das respectivas independências.

Julgo, há várias maneiras de abordar a “descolonização”: pelo lado da “fuga” dos territórios, pelo lado da integração dos “retornados”, pelas consequências prejudiciais e benéficas relativamente aos “retornados”, pelo lado dos dramas individuais e, talvez, por fim, pela capacidade de organização nacional para resolver a “descolonização”. Tentarei focar todas as perspectivas anteriores, individualizando-as por colónias, para, depois, extrair uma conclusão provisória, contudo plausível.

 

Olhando para o período anterior à retirada do dispositivo militar português da Guiné, quase não se dá pela existência de retorno de colonos daquele território, contudo, não tendo nenhuma publicidade, houve “retornados”, ou melhor, “retirados” da colónia: foram todos os naturais que optaram por se colocar à sombra da bandeira portuguesa, foi gente que não tendo nada que os ligasse a Portugal também não tinham para onde “retornar”. Gente que temia o furor “justiceiro” do PAIGC, a vingança política traduzida pela morte inevitável.

Vale a pena parar um pouco por aqui.

 

Estes portugueses guineenses não eram só os militares mais ou menos destacados que se comprometeram nos combates contra a guerrilha; foram também as suas famílias e foram os funcionários do aparelho administrativo colonial ‒ e não me refiro a agentes recrutados pela PIDE/DGS. Todos eles se viram obrigados a enfrentar o desconhecido, num clima, numa latitude e numa sociedade novos. E desta população pouco ou nada se fala e se falou. Foram seres humanos, famílias, que tiveram de fazer a sua integração de formas estranhas com pequenos apoios financeiros. Provavelmente, foi com eles ‒ mas não só ‒ que explodiram certos bairros clandestinos à volta da cidade de Lisboa. Bairros de negros, desenraizados e desesperados entre um país que julgaram seu e um país onde, se voltassem, seriam mortos. Ainda se encontram, de quando em vez, no Hospital das Forças Armadas, velhos combatentes guineenses, procurando apoio clínico. É o pouco que sei dessas pessoas. Nada conheço sobre as suas famílias. Pouco ou nada se investigou para sabermos quando e como vieram para Portugal e, acima de tudo, como se integraram e como foi feita a sua adaptação a uma nova vida.

 

Olhando para Angola, creio poder dividir por fases o processo de “retorno” e de “descolonização”: o tempo imediatamente a seguir aos acordos de Alvor (Janeiro de 1975), a fuga para a África do Sul (1975 até ao Verão), a fuga para Portugal ‒ ponte aérea ‒ (depois do Verão de 1975) e os restos, depois de 11 de Novembro de 1975.

 

Em Luanda, quando se percebeu que a independência era inevitável e que o controlo absoluto da governação ia ficar nas mãos de elites ‒ quais não se sabia ‒ da maioria negra, os europeus mais endinheirados e politicamente mais conscientes, procuraram negociar o património possível e marcharam rumo à África do Sul, uns, para ali se fixarem, outros, para usarem aquele território como trampolim para o salto direito ao Brasil. Esta foi a primeira leva de “refugiados” ‒ não estavam a retornar a Portugal ‒ com larga margem para recomeçar a vida onde se quisessem instalar. Também vieram para Portugal, mas, por serem poucos e dado o seu cosmopolitismo, não se sentiu a sua presença.

Com a agudização dos conflitos entre as facções dos partidos africanos, em Agosto de 1975, começou a debandada daqueles que constituíam a média classe média dos colonos. Conseguiram encaixotar pertences, reduziram a dinheiro com circulação em Portugal os bens mais difíceis de meter entre tábuas, embarcaram em navios das carreiras normais e voltaram costas à terra onde haviam feito vida, sendo que muitos até eram de lá naturais, quase sem raízes em Portugal. Para este naipe de refugiados já foi difícil a integração, mas acomodaram-se nas terras de onde eram originários ou onde ainda tinham família e, a golpes de sorte e trabalho árduo, encontraram formas de sobreviver, sendo úteis às comunidades de acolhimento, até porque não constituíram a grande avalanche desordenada de “retornados”.

Com a aproximação da data da independência e a, cada vez maior, certeza de que Angola ia ficar imersa numa tremenda guerra civil bem pior do que aquela que havia acabado, começou a debandada geral. Era uma debandada de quem simplesmente não tinha nada para trazer para além de parca bagagem de mão e de imenso medo do futuro. Foi a fuga das baixas camadas sociais brancas, dos negros e mestiços que temiam toda a espécie de represálias vindas de todos os lados. Foram os meses de ponte aérea contínua e dos dramas de alojamento de toda aquela gente. Foi o tempo em que os donos de barcos de pesca de Moçâmedes se fizeram ao mar rumo ao Algarve, com grande risco de vida. Foi o aluguer de hotéis e pensões para dar guarida a quem não a tinha. Foi o tempo de criação do IARN, em Setembro, e da sua máxima actividade. Na zona da Junqueira, em Lisboa, trabalhava-se afanosamente para responder às mais díspares situações humanas. Foram rios de dinheiro gastos para remediar o que, na aparência, era quase irremediável.

 

Em Moçambique, fruto de uma cultura diferente entre os colonos, começou a fuga para a África do Sul, dali para o Brasil e para outras partes. Mas estes foram os que podiam ir para onde os negros e mestiços eram escorraçados. Depois, foi a fuga dos descendentes de goeses, de paquistaneses, de chineses com economias feitas à custa de trabalho árduo e alguma exploração indígena. Seguiram-se os cantineiros. E tudo procurou Portugal como terra de destino. E, já no fim, os agricultores pobres que exploravam as suas quintas no mato, longe dos grandes centros urbanos. E ficaram alguns que acreditaram na FRELIMO, em Samora Machel, nas promessas; um ano depois da independência estavam a regressar desiludidos.

 

A “descolonização” foi, como disse, a “fuga”. A fuga de muitos que nem tinham familiares na terra de abrigo nem a conheciam e eram brancos nascidos nas colónias e negros desconfiados das novas autoridades, mas crentes na bondade daqueles que lhes disseram que eram tão portugueses como os do Minho, Alentejo ou Algarve.

Por cá, muitos, pouco instruídos e outros com instrução suficiente, viram nos retornados o perigo para a sua rotina segura e hostilizaram esta gente, que, cheia de medo, deixou para trás sonhos em que haviam acreditado, sonhos gerados por uma propaganda enganadora, sonhos construídos à sombra de uma bandeira, que julgavam enorme e forte e segura. De repente os empregados na função pública aumentaram exponencialmente por causa da criação do quadro geral de adidos ‒ onde encontravam abrigos os funcionários ultramarinos, por metade do salário, e esperavam uma nova colocação ‒ e, quem tinha emprego olhava para essa gente estranha, habituada a andar de calções, no tempo quente, a fazer uma vida de ar livre, praia e campo sem vaidades balofas e arcaicas; elas de mini saia e eles em camisa sem gravata. Gente que também foi viver para tendas de campismo na Costa da Caparica e no parque de Monsanto. Mas, quase todos, não tinham medo ao trabalho e punham em causa o ramerrame dos metropolitanos, que não arriscavam um centavo sem a certeza de obter escudos de retorno. Gente que deu lições aos portugueses de cá e lhes trouxe novas perspectivas.

 

Na urbanização da Portela de Sacavém o senhor Marçal, que em Angola percebia de cafés, abriu um pequeno espaço, muito pequeno, onde, num balcão exíguo, servia o melhor café de Lisboa. Chamou-lhe “Casa dos Cafés Portela”. Hoje tem lojas por todo o lado e continua a servir excelentes cafés. E, como ele, houve os que abriram restaurantes, cervejarias, papelarias, livrarias, e fábricas e, e, e tudo a perder de vista. Souberam começar e impuseram-se e foram aceites e tornaram-se exemplos.

 

Dos negros e mestiços, muitos ganharam a vida na construção civil e nas limpezas domésticas e na lavoura, um pouco pelo país. Mas, para esses, a vida foi-lhes madrasta. O Estado deu uma protecção exígua que eles não souberam ampliar. Alguns venceram, formaram famílias estáveis, os filhos estudaram e saíram da mediocridade.

Os orientais e asiáticos rapidamente reconstruíram a vida com apoios obtidos do Estado e de familiares, conhecidos e amigos.

 

Portugal, independentemente de todos os dramas individuais, soube resistir à avalanche de “retornados”, soube integrá-los e eles deixaram-se integrar, integrando-se.

Hoje, quarenta e cinco anos depois, não há sequelas visíveis desse drama que foi a “descolonização”; há saudosismos de África, há saudosismos da ditadura ‒ mais por a desconhecerem do que pelo que ela lhes fez de bem ‒, há uma memória idealizada do que era a vida nas colónias, mas tudo isso faz parte de lendas, que, como lendas, vão passar de geração em geração até não serem mais do que histórias fantasiosas.

 

Pode-se, ainda hoje, procurar diminuir o esforço estatal e individual envolvido na “descolonização”, mas, comparado como que aconteceu noutros Estados coloniais da Europa, a nossa, foi exemplar.

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