A Confusão Portuguesa
Mais coisa menos coisa, falta um ano para o cinquentenário do 25 de Abril de 1974. Vivi esse dia como o maior da minha existência. Ansiava, nos meus 33 anos, pela liberdade e pela democracia, regime onde nunca tinha vivido, mas que, pelos livros e por alguns jornais estrangeiros, já sabia o que era. A sombra da polícia política e da censura pairava sobre todos aqueles que queriam mais do que futebol. E, em boa verdade, nunca gostei de futebol, a não ser quando jogavam grandes clubes ou selecções nacionais, porque, nessas ocasiões, sabia que ia ver bons espectáculos de uma actividade que era praticada em todo o lado e em todos os momentos sem arte nem habilidade.
O período que se seguiu ao dia dos Cravos de Abril foi extraordinariamente conturbado, porque houve uma partidarização extremada das populações, das Forças Armadas e, até, das famílias. Os projectos ditos democráticos eram tão díspares e alguns tão perigosos, que eu, já politizado, fiquei abismado com as exigências populares e com a respectiva reacção. Aconteceu de tudo, inclusive a populaça assaltar a embaixada de Espanha, estragando e destruindo materiais e obras de arte e, até, para cumulo, roubar peças de valor.
A vida política entrou numa “normalidade” mais ou menos aceitável depois do 25 de Novembro de 1975, porque se encontrou o consenso sobre que tipo de democracia se pretendia seguir e, acima de tudo, porque se cortaram amarras com a extrema-esquerda. De seguida, começou a esboçar-se o desejo de fazer entrar Portugal no Mercado Comum Europeu e a chamar a atenção de como tal projecto poderia trazer vantagens para o país e para os trabalhadores.
É verdade que do começo da década de 1980 ao fim da de 1990 as transformações em Portugal foram de tal natureza que parecíamos estar a viver num outro país bem diferente daquele que existia nos anos de 1970. A abertura das mentalidades foi quase instantânea, embora, e talvez por isso, sem grandes fundamentos ideológicos nem aprofundamento de escolhas políticas. As populações passaram a votar (e cada vez em menor número) por simpatias nos candidatos e nas ofertas que faziam do que por análise consciente dos programas dos partidos e das campanhas eleitorais. A politização era um fraco verniz lançado sobre a ignorância de outros tempos herdada de quando pensar era proibido em Portugal. Assim, estalava ao menor contratempo, levando a que volatilidade dos votantes fosse constante, dando maiorias ora ao centro-direita e direita ora ao centro-esquerda. Escolhia-se onde votar como se escolhia o clube vencedor do jogo de futebol do próximo domingo, por palpite e simpatia.
Uma democracia sólida não se constrói desta forma; precisa de fundamentos de cidadania, de noções de política e de despir-se de preconceitos herdados do tempo do fascismo.
Na sequência da última crise financeira, das desgraças dos governos de José Sócrates e, do trauma conseguido com Passos Coelho, a “Geringonça” à esquerda, conseguida com o tacto de António Costa e da sua equipa, pareceu que tinha ensinado ao eleitorado e aos governantes o caminho certo a trilhar para alcançarmos a verdadeira democracia em liberdade. Foi mentira. Para defender a sua própria existência o PCP teve de impor demarcações e linhas vermelhas ao PS, o BE teve de se distanciar para reganhar personalidade política e a maioria absoluta socialista tornou-se naquilo que sempre foram os partidos do centro-esquerda à direita: oportunista.
A par desta reafirmação genética surgiu um novo fenómeno quase inesperado, mas que foi uma consequência dos bons entendimentos à esquerda: a fragmentação partidária da direita sem capacidade de entendimento, por ter surgido um novo desafio, que vai em linha com a tendência europeia e, de certo modo, americana e brasileira: um partido de extrema-esquerda com um discurso populista, radical e falsificador das verdades. Um partido que vai ao encontro da despolitização do tempo de Salazar e que a Democracia não soube destruir, politizando a sério o Povo.
A maioria absoluta do PS enveredou, como todas as maiorias absolutas em Portugal, pelos trilhos do descuido, que conduzem a uma suposta impunidade política, pois conta-se com a falsa politização democrática dos eleitores a qual releva tudo e tudo perdoa. Desta vez, o que está a acontecer é que, no remoinho tempestuoso da maioria absoluta, a oposição, incapaz de apresentar um projecto político, prende-se a todos os pormenores acidentais do Governo para lhes dar o mesmo valor destrutivo e, em apoio deste desmoronar do pouco que se vai construindo, estão os órgãos de comunicação social a servir de caixa de ressonância de um grupo político que, não se propondo construir nada, quer ver tudo arrasado. Tudo estaria correcto se à direita houvesse um projecto alternativo, mas não há nada para além de uma imensa confusão política. Curiosamente, no meio do descalabro, na linha da sua tendência de comentador, o Presidente da República, sem deixar de mandar recados para um lado e para o outro, consegue manter uma aparente tranquilidade que balanceia entre a correntes de ar da confusão política nacional. Não sei se outro, com outro perfil, seria capaz de ter o discernimento necessário para gerir esta ocasião.
De tudo, fica-me a pergunta:
‒ Para onde estamos a caminhar?