A brutalidade humana
Se quisesse mostrar erudição podia fazer transcrições de Hannah Arendt sobre a brutalidade humana, mas não quero. Limitar-me-ei ao que uma comum reflexão pode levar-nos a pensar sobre os acontecimentos no Médio Oriente e, mais exactamente, na faixa de Gaza.
Todo o mundo classifica o Hamas como um grupo terrorista, mas será mesmo assim ou tratar-se-á de um grupo de libertação gerado num território subjugado ao forte poder militar de um vizinho expansionista? Para os alemães nazis os combatentes das diferentes resistências nacionais não passavam de terroristas merecedores de morte imediata sem direito a qualquer tipo de julgamento. O Hamas resiste a uma descriminação e a uma ocupação militar e colonial, recebendo apoios de onde consegue que eles lhe cheguem. Quem os apoia tem os seus objectivos que podem, até, não ser os mesmos que os levam a afrontar a fúria de Israel.
Nós, os portugueses, já passámos por uma experiência de reviravolta (que jamais ocorrerá em Israel): no dia 23 de Abril de 1974 ainda os combatentes dos diferentes movimentos eram “terroristas”, mas no dia 26 de Abril já eram guerrilheiros! Quem os identificasse como “turras” seria imediatamente conotado com os ideais fascistas e colonialistas. Mas há mais! O primeiro e único massacre levado a efeito pelos colonizados do norte de Angola foi desencadeado pela UPA (União dos Povos de Angola, transformada, depois, em FNLA) que recebeu apoios financeiros e ideológicos dos EUA. E foram centenas de brancos e de negros do sul mortos cruelmente! Para além da imprensa portuguesa, qual foi o país que condenou o apoio dado pelas instituições americanas?
Voltando ao Médio Oriente, julgo serem conhecidos os interesses em jogo, dos quais os mais salientes são os israelitas e os mais acusados são os EUA e o Irão, mas, os mais repudiados, por toda a gente, são os movimentos anti-semitas. Em jogo não estão os interesses dos israelitas nem os dos palestinianos ‒ coisa que se teria resolvido se houvesse vontade das chamadas grandes potências ‒ mas os dos grupos económicos que desejam controlar o gás natural e o petróleo de toda a região. Continua a lutar-se pelo domínio dos combustíveis fósseis.
Pessoalmente vivi cerca de trinta anos um dilema que está completamente desfeito com o rodar do conflito entre Israel e o Hamas. Explico.
Nascido em 1941, a minha infância, talvez até aos doze anos, foi regida pelo efeito de três tipos de propaganda política: a antinazi, a anticomunista e o nacionalismo fascista do Estado Novo. Assim, naturalmente, vi os judeus como vítimas de um regime e não coloquei em causa a criação do Estado de Israel (nem tinha ainda idade suficiente para tal). Empolguei-me com todas as guerras vencidas pelos israelitas.
Contudo, um dia, por volta dos meus trinta anos, pouco antes do derrube da nossa ditadura, li um livro de crónicas e impressões de viagem, editado no Brasil, da autoria do historiador britânico Arnold Toynbee, cujo título (em português) é “De Leste a Oeste: Viagem em torno do mundo” no qual, a dado passo (e estava ele no ano de 1955), sobre a Palestina e a criação e independência de Israel, afirmava categoricamente a sua discordância da decisão da ONU, pois, cito de memória, iria criar uma nova “nação errante”, tornando-se, possivelmente, em foco de uma terceira guerra mundial. Foi nesse momento que abri os olhos para o choque cultural que se tinha evitado se se tivesse mantido uma situação que os séculos havia ditado, porque, na verdade as pátrias dos judeus eram aquelas onde se haviam radicado e de onde um paranóico, Adolfo Hitler, pensou aniquilá-los por completo. O mundo ficou horrorizado perante o holocausto e, por vergonha de si mesmos, os Aliados, esquecendo que uma religião não define uma nação, na ONU, tomaram a decisão que hoje desequilibra a política internacional.
Mas o mais estranho de tudo isto é que os judeus e Israel comportam-se perante a vida humana com o mesmo desprezo com que ontem os nazis os levaram aos fornos crematórios. A brutalidade, a crueldade, a falta de compaixão e a intolerância fazem parte intrínseca da natureza humana.