A ignorância que nos governou
No dia de ontem as notícias deram algum destaque à instalação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em nova sede. Esse facto ofereceu-me o mote para o apontamento de hoje.
O Governo nacional parece ter descoberto, agora, as imensas possibilidades resultantes do entendimento com os países de língua portuguesa de África, da América e da Oceânia. Já o Governo de José Sócrates vinha, nos últimos anos, empolando a necessidade de aproximação de Portugal dos restantes Estados lusófonos. É, aos olhos dos estudiosos da História e da Geopolítica nacionais, uma atitude bacoca, por tardia.
Logo após a descolonização, Mário Soares e outros políticos do centro-direita do leque partidário avançaram para a adesão à CEE como se mais nenhum caminho houvesse para as relações externas portuguesas. A viragem foi total e incondicional. Levando a reboque a Espanha, ou sendo por ela rebocado, Portugal entregou-se totalmente ao projecto europeu. Não cuidou de analisar a História para perceber caminhos. Não se preocupou em ouvir as vozes dos geopolíticos de então. Todos os que se opunham ou colocavam reticências ao projecto europeu eram, no mínimo, retrógrados, quando não eram apodados de padecerem de comprometimentos com o fascismo salazarista ou com o comunismo de Álvaro Cunhal. A Europa era a solução de todos os males nacionais, diziam os adeptos da adesão tal como se tivessem chegado de novo ao Velho Continente.
Que a Espanha desejasse ligar-se à Europa, impondo os condicionalismos que lhe convinham, compreende-se, pois, na verdade, já havia, há muito, conquistado os mercados possíveis na América Latina e já se firmara, além Atlântico, como potência reconhecida e respeitada dentro da comunidade hispânica. Mas Portugal, fazendo política como quem discute futebol, recusou a aproximação imediata às antigas colónias porque, na perspectiva de uns, se tratava de uma atitude neo-colonial e, na perspectiva de outros, de uma aliança contra-natura com governos de pendor marxista como o eram todos os que, na altura, detinham a governação. Fugia-se do entendimento com o MPLA, piscando o olho à UNITA; fugia-se do entendimento com a FRELIMO de Samora Machel para simular um estender de mão à RENAMO; abjurava-se o PAIGC na Guiné-Bissau, pois estava em íntima ligação com a URSS e a China. Quanto aos restantes Estados, pela pouca importância que possuíam, deixaram-se entregues a si mesmos.
Esta foi a má política nacional que, incapaz de separar o interesse português das lutas ideológicas e, de perceber que, mais tarde ou mais cedo, tudo se iria modificar em África, optou por negar o passado estratégico de Portugal que sempre encontrou no Atlântico a compensação para uma situação desequilibrada na Península. Mantiveram-se os laços de entendimento com o Brasil, mas, nem nas negociações com a CEE se soube ir procurar vantagens diplomáticas para reforço dos liames com aquele Estado da América do Sul.
Teria havido necessidade de negociar com a CEE uma adesão que, ao mesmo tempo, não desligasse Portugal do seu passado colonial e da sua experiência africana, que mantivesse as ligações marítimas com os novos Estados de expressão oficial lusófona, colocando à sua disposição a frota mercante que ainda possuíamos e que poderia ter sido o trampolim para um crescimento desse importante vector da actividade económica nacional. Não! Portugal adoptou os objectivos e as finalidades que a CEE lhe determinou, esquecendo que os interesses europeus nem sempre eram coincidentes com os de Lisboa e que tínhamos o dever de preservar uma estratégia de desenvolvimento que foi construída ao longo de cinco séculos de História. Mas era importantíssimo ter percebido que os “cinco séculos de História” não eram os do Estado Novo, mas aqueles que, realmente, Portugal viveu na sua relação com o mundo além Atlântico. Os cinco séculos de História não eram os que se proclamavam quando se gritava o slogan “Angola é nossa”! A Angola que os Portugueses deram ao mundo como Estado independente é uma construção que vem de 1885. Havia uma “outra” Angola que se tinha definido ao longo dos séculos, desde o reinado de D. João II, bem mais pequena, bem mais litoral, mas com a qual se praticaram todos os tipos de comércio. O mesmo aconteceu com Moçambique. Os políticos nacionais esqueceram – ou nunca souberam – que o título de D. Manuel I, depois da chegada de Vasco da Gama à Índia, foi por ele acrescentado com palavras bem claras e bem identificadoras do destino, da vocação e do objectivo de Portugal: “Rei de Portugal e dos Algarves de Aquém e de Além-mar em África Senhor do Comércio e da Navegação […]”.
“Senhor do comércio e da navegação”! Essa era e foi a chave da política comportamental dos governantes que deram uma orientação estratégica a Portugal: o comércio e a navegação.
Julgou-se, ou quis-se, em 1975, encerrar um ciclo que tinha sido aquele que permitira a Portugal ir subsistindo independente, mais ou menos afastado da política europeia e equilibrado na política peninsular, mas, realmente, esse ciclo, porque se trata de um interesse que contém em si mesmo a sobrevivência do país nunca deveria ter sido encerrado e, muito menos, substituído pelos interesses da Europa com quem os Portugueses pouca ligação tiveram para além da que resultou do comércio ultramarino. O facto de Portugal ser geograficamente periférico em relação à Europa não constituiu uma desvantagem, pelo contrário, foi-lhe vantajoso, pois retirou-o das disputas europeias e dos conflitos que lhe eram marginais. O novo-riquismo dos novos políticos de Portugal, em1975, asua ignorância das seculares linhas de força da política nacional, as lutas ideológicas que opuseram as correntes que se digladiavam para serem governo obliteraram, por completo, a visão do que deve ser supra-partidário e, por conseguinte, permanente na vida do Estado. Cada Governo que se sentava nas cadeiras do Poder alterava o rumo da política externa sem ter em conta os aspectos perenes dessa mesma política. E foi assim que se abraçaram – desde o Governo de Cavaco Silva – objectivos que estavam na linha dos propósitos da CEE e se puseram de lado interesses que deveriam ter sido acautelados através de negociações que fossem capazes de superar as diferenças ideológicas existentes entre os governos de Portugal e das antigas colónias.
Agora, mais de trinta anos passados, estamos a sofrer os efeitos da política europeia e da “rendição” incondicional que nos impusemos, tendo acabado por culminar na adesão ao euro que nos veio constranger muitíssimo mais a liberdade de movimentos financeiros, políticos e diplomáticos. Temos de agradecer o que se passa em Portugal à ignorância dos políticos que, sendo, se calhar, bons tecnocratas nada sabem de História e de Geopolítica nacionais.