A legitimidade
Diz o Dicionário da Língua Portuguesa, editado pela Porto Editora, que legitimar é «tornar legítimo; legalizar» ou «dar (a um filho natural) o direito dos filhos legítimos» ou, ainda, «reconhecer como autêntico» ou, finalmente, «justificar; explicar». Estas definições confundem o comum dos falantes nacionais, porque “atiram” o acto de tornar legítimo para o campo da Lei baralhando dois conceitos que em Ciência Política são distintos: legal e legítimo.
Na verdade, dos significados dados pelo Dicionário supra referido só um entra claramente no domínio do conceito que a Ciência Política adopta para o vocábulo “legitimar”; é o terceiro que indicámos: «reconhecer como autêntico». Realmente, “autêntico”, aqui, nas circunstâncias em análise, não se identifica com “legal”, mas antes com “verdadeiro”.
Voltemos ao Dicionário. Vejamos agora o que se diz para “legitimidade”: «qualidade de legítimo». Então, podemos concluir que “legítimo é a qualidade do que é verdadeiro». Ora, em Ciência Política, para que um Poder seja legítimo é necessário que ele seja verdadeiro. E quem confere a verdade ao Poder? A Lei ou o Povo soberano? Em última instância, o Povo soberano, porque o Poder que faz a Lei pode não ser, ou já não ser, legítimo, ou seja, verdadeiro, autêntico, por ter perdido a legitimidade, o mesmo é dizer, a verdade e autenticidade perante o Povo; é Poder porque tem os mecanismos de força para se manter ao leme da governação, mas já não recolhe o consenso do Povo. E como se mede esta perda de consenso? Quando o Poder governa contra o Povo, contra a sua segurança e o seu bem-estar.
Há circunstâncias em que a ilegitimidade é imediatamente identificável e numericamente quantificável. Vejamos um exemplo fácil de equacionar. Tomemos o caso de umas eleições em que, como consequência do somatório da abstenção e dos votos brancos, a vontade popular atestada é francamente inferior a 50% dos votos validamente expressos. Estamos em face de uma ausência de legitimidade que será tanto maior quanto menor for a percentagem de votos validamente declarados. Este é o motivo pelo qual, a fazer fé nos cadernos eleitorais, os Governos portugueses, nos últimos anos, têm vivido nas franjas da ilegitimidade, tal como ilegítimo é o Presidente da República. Afinal, à luz de uma análise fria da Ciência Política – e continuo a dizer, fazendo fé nos cadernos eleitorais – a abstenção nos actos eleitorais vem demonstrando a distância existente entre a aceitação deste sistema político e os Portugueses. Corresponde a qualquer coisa como a quase maioria do eleitorado dizer, no dia das eleições: «Querem brincar às democracias? Então brinquem para aí, mas nesse jogo não entro eu!». Assim, a Democracia é só pertença de alguns. E, no caso vertente, o Presidente da República é-o só de cerca de 25% dos Portugueses, facto que lhe retira toda a legitimidade para tomar qualquer acção em nome do Povo. Pode tomá-la em nome da Lei, mas não em nome do Povo que deveria representar, mas, efectivamente, não representa.
O vazio de legitimidade conduz, como disse anteriormente, à necessidade de análise da actuação legal do Poder, ou seja, à necessidade de verificar se a governação está a ir ainda, no sentido de satisfazer o superior interesse da Nação assegurando a defesa, a soberania e o bem-estar do Povo (escuso-me aqui de referir o desejo de continuidade histórica definidor de nação). É isso que os governos fazem quando se demitem antes de tempo ou se sujeitam a moções de censura parlamentar: buscam não romper em absoluto a legitimidade que leve à total perda de confiança do Povo no Poder, pois, se assim acontecer, é todo o sistema político que está em causa. Como a Natureza tem horror ao vazio, a ausência de legitimidade de um Poder leva a que outro se apresente para preencher o espaço oco gerado. Aquele que se perfila de imediato no horizonte político é o poder militar, porque avoca para si a qualidade de último suporte da existência da Nação, visto repousar na sua mão a defesa da independência e da soberania.
Naturalmente, não é comum a intervenção das Forças Armadas na vida política dos Estados com sistemas democráticos consolidados, contudo ela pode ocorrer. Em Portugal aconteceu em 1926, quando o Exército impôs uma ditadura, dada a situação a que chegara a República, especialmente no plano financeiro com défices orçamentais elevadíssimos e uma acentuada instabilidade governativa, e ocorreu em 1974, quando se avizinhava a derrota militar na colónia da Guiné e a consequente culpabilização das Forças Armadas por incapacidade de resolução de um problema cujo desfecho era de natureza política e não militar.
Não perfilho soluções militares para problemas políticos, mas não posso deixar de recordar que, em última instância, e independentemente do hemisfério ou continente, deontologicamente, o derradeiro esteio de uma nação, seja ela qual for, face à ilegitimidade do Poder, se situa nas Forças Armadas dessa mesma nação.