Não me peçam silêncio
Na sexta-feira, ao fim da tarde, nas cercanias de um supermercado da cadeia Minipreço, caía uma bátega de água muito forte, fui abordado por um jovem dos vinte e cinco aos trinta anos de idade. Negro. Eu caminhava na rua e ele colocou-se ao meu lado, dizendo-me: “Não lhe venho pedir dinheiro, não lhe venho pedir dinheiro… Quero pedir-lhe se me compra, ali, no supermercado, qualquer coisa para eu comer”. Havia, no seu rosto e nos seus olhos, VERDADE.
Respondi sem sobressaltos: “Compro, vamos lá”.
Até chegarmos à porta do estabelecimento perguntei-lhe se estava desempregado e a resposta foi aquela que não podia deixar de ser. Que sim! Onde vivia, foi a pergunta seguinte. Numa casa-albergue da Câmara Municipal. E, para completar o inquérito, se era de Angola. Respondeu-me que já havia nascido cá, mas a ascendência era angolana.
No supermercado, começou por ir direito aos iogurtes e pegar num grande, perguntando-me: “Posso levar um destes?”
Meu Deus, eu havia almoçado bem e ia, ao chegar a casa, depois das minhas aulas, ter uma refeição para comer… ele pedia-me um iogurte!
Respondi-lhe com uma outra pergunta: “Não quer levar um pão?” Os olhos sorriram, porque, o rosto, parece-me, já não o sabe fazer. E acrescentei: “Que tal um pacote de batatas fritas?”
Corria de um lado para o outro quase não acreditando que podia levar aquelas três coisas… E era tão pouco!
Na caixa, uma jovem de origem africana, olhou-me com olhos agradecidos e um sorriso bondoso nos lábios. Alguém ia ter o seu parco jantar naquela noite.
À saída, o jovem afro-português, vítima de uma guerra que nunca deve ter compreendido, agora já confiante na minha generosidade, pediu-me o dinheiro para o metropolitano. Ia regressar ao albergue. Podia dormir com menos fome e abrigado da chuva impiedosa que caía grossa e fria. Dei-lhe o euro e pouco para regressar a “casa”. Pôs o gorro de lã que lhe cobria a cabeça e lá foi direito à boca do metropolitano.
Eu fui dar aulas. Intimamente agradeci a S. Vicente de Paulo, a cujas Conferências pertenci há cinquenta e poucos anos, o ter-me ensinado que a miséria tem um rosto, um cheiro e uma forma especial de falar. Não sou já católico, mas agradeço à Igreja Católica o que me ensinou na minha juventude. Já tenho a idade que se chama de terceira, mas mantém-se em mim muito jovem a revolta contra as sociedades que permitem a miséria.
E venham-me falar da necessidade de sermos fortes para ultrapassar a crise! E venham-me vender a passividade perante estas e outras realidades! Que mundo é este? Para onde vamos? Que cidadãos somos nós, os afortunados? Os ainda afortunados?
Não me peçam silêncio, nem passividade, nem apatia, porque no peito cresce-me a revolta e a indignação.