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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

27.04.08

Recordar um bom exemplo


Luís Alves de Fraga

 
É de toda a justiça recordar, nesta época do ano, um Homem que nos deixou um bom exemplo de verticalidade, frontalidade e coragem. Tenho a dupla honra de o ter tido como professor e de ambos havermos frequentado, com distância de várias dezenas de anos, o Instituto dos Pupilos do Exército. Chamava-se Joaquim Dias Marcelino Marques e era, no tempo em que se passou o episódio que de seguida vou relatar, coronel de Administração Militar no activo. Antes porém, deixem-me dar dele um retrato tão próximo da realidade quanto as palavras e a minha memória me não atraiçoarem.
 
Era um homem de meia estatura, talvez mais para o baixo do que para o alto. Ligeiramente anafado, sem ser gordo. Tinha um rosto redondo, uns olhos vivos, um sorriso entre o matreiro e o cínico. Falava baixo, mas as palavras saíam-lhe compassadas, marteladas de modo a que não houvesse dúvidas quanto ao que queria dizer. Às vezes, eram sibilinas as frases que proferidas. O sorriso era mais um trejeito facial do que um mostrar de dentes. Desprendia-se dele uma imagem de vontade firme e de incapacidade de recuos ou vacilações quanto ao que queria. Era um homem com aquele quê que geralmente identificamos com a frase: sabe o que quer.
Conheci-o quando eu rondava os meus quinze ou dezasseis anos — teria ele, talvez, trinta e poucos. Foi meu professor dois anos mais tarde. Depois, soube notícias dele por ter sido colocado na Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas, já tenente-coronel, e o meu pai prestar lá, também, serviço e ter-se estabelecido entre ambos uma excelente relação de amizade. Tendo sido promovido a coronel foi transferido e deixou no meu progenitor um grande sentimento de admiração
Passemos, agora, à estória que nos mostra a índole do saudoso coronel Marcelino Marques.
 
Corria o ano de 1973. Estava-se a meio de Outubro ou nos primeiros dias de Novembro. Marcelino Marques havia sido nomeado professor da Academia Militar. Tinha experiência docente, pois já leccionara vários anos no Instituto dos Pupilos do Exército. Eu encontrava-me em Moçambique no cumprimento da minha segunda comissão de serviço e rapidamente me chegou a notícia do acontecimento.
Ia ter lugar a sessão solene de abertura das aulas na Academia Militar que, dessa vez, seria presidida pelo almirante Américo Tomás, Presidente da República do Estado Novo, um dos mais obsequiosos seguidores de António de Oliveira Salazar, o ditador desde 1928.
O Chefe de Estado era uma figura risível, pela sua incapacidade de articular publicamente um discurso com nexo. Havia sido ministro da Marinha e era um dos chefes da linha dura do salazarismo. No meio da sua aparente confusão mental, sabia muitíssimo bem o que pretendia para perpetuar o regime.
 
Embora não conheça pormenores, vou contar o que se passou tal qual mo relataram na altura.
O comandante ou o segundo comandante da Academia Militar, consciente da instabilidade que já se fazia sentir no seio da oficialidade das Forças Armadas — as primeiras reuniões conspiratórias teriam começado havia algumas semanas — terá convocado todos os oficiais em serviço naquele estabelecimento de ensino e, dando-lhes conhecimento da cerimónia que em breve teria lugar, impôs a presença de todos à sessão solene de abertura das aulas. O coronel Marcelino Marques ter-se-á levantado e terá dito com aquela sua muito característica voz sibilina e também cortante:
— Informo V. Exa. de que não estarei presente à cerimónia!
Estranhando a atitude, o comandante ou o segundo comandante perguntou-lhe o motivo ao que Marcelino Marques respondeu no mesmo tom seco e pausado:
— Porque eu me recuso a estar presente em actos presididos por esse senhor!
Foi como se uma bomba tivesse caído no seio daquele grupo de oficiais. Um coronel do Serviço de Administração Militar ousar falar assim do Presidente da República! Crime de lesa Pátria! Crime de traição!
 
Foi mandado instaurar rapidamente o processo disciplinar e, rapidamente também — à boa maneira fascista ou fascistóide — tratou-se de punir com alguns dias de prisão disciplinar agravada o coronel Marcelino Marques, já do antecedente conhecido pela sua rebeldia e antipatia pelo Governo. A transferência de unidade foi imediata.
Esta atitude granjeou-lhe a confiança dos oficiais que começavam a conspirar e terá sido esse o motivo pelo qual, logo no próprio dia 25 de Abril de 1974, se apresentou na Escola Prática de Administração Militar — ali para os lados do Lumiar, quase em frente dos velhos estúdios da Rádio Televisão Portuguesa — e lhe foi entregue, com toda a confiança, o comando da unidade.
 
Foi nesta escola de Homens que procurei aprender alguns ensinamento para a Vida. Foi com Homens como o meu velho professor, coronel Marcelino Marques, que eu — por certo sem o brilho dele nem comungando, talvez, das suas opções políticas — me fui identificando como militar, tentando cultivar a frontalidade e a verticalidade que fizeram dele um militar de Abril.
Recordo-o com muita saudade, num tempo em que se recomeçou a aprender a viver, «navegando» com cautelas e alguns salamaleques para não ferir susceptibilidades com palavras varonis ditadas pela salutar discordância ou o saudável repúdio de quem corta a direito para atalhar caminho.
 
Obrigado meu coronel pelas suas lições; esta que contei e outras que relatar seria moroso.
Obrigado por nos ter deixado o exemplo ao qual presto a minha homenagem.

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