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Há já algum tempo — no rescaldo da famigerada votação dos «Grandes Portugueses» — o
Correio da Manhã publicou uma notícia na qual se pretendia fazer a análise dos resultados e das primeiras impressões.
Ainda não se apagou o «fogo» das paixões desencadeadas pelo referido concurso: as hostes salazaristas andam «embandeiradas em arco» com o resultado da votação, segundo eles, legitimadora daquele que pouca ou nenhuma legitimidade teve em vida. Mas não é sobre Salazar que quero escrever hoje e aqui.
Estou mais preocupado na análise deste fenómeno perfeitamente espúrio de parte da sociedade nacional.
Segundo o matutino que venho referindo, em dez semanas de concurso houve qualquer coisa como 214.972 chamadas telefónicas para conduzir à votação final, das quais 65. 290 foram feitas para votar em Salazar, sendo que, na sessão final assistiram ao programa cerca de 656.300 telespectadores. Ao todo, as pouco mais de duas centenas de milhar de votantes gastaram, em chamadas telefónicas, cerca de 129.000 € ou seja, em moeda antiga, 25.000 contos. Note-se o disparate desta mobilização só possível, porque a capacidade imaginativa de quem dirige os programas televisivos está embotada e incapaz de encontrar soluções originais para entretenimento dos Portugueses, recorrendo a modelos importados do estrangeiro (pelos quais se pagam elevados direitos de autoria, claro!).
Afinal, qual foi o valor acrescentado que este programa trouxe aos Portugueses de hoje, à sociedade que se debate com uma tremenda crise de desemprego, onde se fecham serviços de urgência, maternidades, escolas, se reduzem as comparticipações com a saúde pública? O que é que se adiantou com um tão estúpido concurso? Fazer vir à tona dois sentimentos: o já conhecido descontentamento com a classe política nacional, associando-lhe o desagrado com a condução dos negócios públicos e, também, a possibilidade de um punhadito de saudosos de Salazar se manifestar. Por arrastamento, veio dar a possibilidade a uma extrema-direita revanchista, xenófoba e nacionalista de mostrar uma nojenta garra desejosa de sangue e desordem, que é o caldo de cultura onde se desenvolvem esses excrementos sociais. Nada mais se ganhou com o estúpido concurso conduzido por Maria Elisa (agora mais visivelmente, Domingues). Por outras palavras, e porque o que antes disse não representa lucro social, só se perdeu.
Mas vejamos a mobilização conseguida. Participaram activamente, dispondo-se a gastar o seu dinheiro, 214.972 pessoas (admitindo que o mesmo cidadão não bisou as ligações telefónicas, porque se tal ocorreu a estupidez cresceu na razão inversa do número de chamadas feitas!). E tudo isto custou aos bolsos de quem a tal se dispôs 25.000 contos!
Imaginemos o tipo de instituições sociais que poderiam ter recebido este dinheiro para as tirar do afogo em que vivem! Quantos computadores se poderiam ter comprado para escolas onde os alunos se debatem com falta de um instrumento que é já uma ferramenta do dia-a-dia? Não, a RTP preferiu que os Portugueses gastassem, evaporassem, pateticamente, uma parte do seu dinheiro no mais ridículo concurso que se levou a cabo nos últimos anos em Portugal!
Onde está o Portugal e os Portugueses que, em 1890, na sequência do célebre Ultimato britânico, foram capazes de se cotizar para adquirir um cruzador para a nossa Armada? Por onde andam o Portugal e os Portugueses que, poucos anos após a proclamação da República, por iniciativa do jornal
O Século, se cotizaram para comprar o primeiro aeroplano para ser oferecido ao Exército? Onde estão? E repare-se que o índice de analfabetismo absoluto era, nesses tempos já recuados, da ordem dos mais de 75%! Quer dizer, por comparação rápida, os Portugueses de hoje, para além de estarem francamente mais alienados do que os seus avós e bisavós, estão mais ignorantes, muitíssimo mais ignorantes! Disso não podemos ter dúvidas imediatas. Ou será que, para além de alienados e ignorantes estão, também, como já disse em
anterior comentário, temerosos, receosos, inseguros quanto ao futuro que se adivinha?
Se esta última hipótese tem, ainda que vago, fundamento de verdade, os governantes devem sabê-la interpretar para arrepiarem num caminho perigoso de prosseguir.