Parece-me que o articulista Fernando Madrinha, que publicou no Expresso do último sábado uma crónica com a mesma designação que dei a esta postagem, está a precisar de ser esclarecido. Ele e todos quantos concordam com a sua opinião. Vamos a isto.
Começando pelo princípio, tudo teve início na proibição da «passeata» que os militares — graduados militares — se propuseram fazer no Rossio. E porquê tomaram essa atitude? Tão simplesmente, porque os Chefes de Estados-Maiores não souberam, não quiseram ou não foram capazes de levar até às últimas consequências a defesa dos legítimos interesses dos militares do activo, reserva e reforma. Dito de outra maneira, não começaram por dialogar com as associações de militares e não conseguiram fazer-se ouvir pelo Governo. Não concertaram atitudes para evitar que fossem os militares seus subordinados a tentarem impor aquilo que eles não se mostraram capazes de alcançar.
No momento seguinte, os militares vão «passear» — note-se que foram «dar uma volta» fardados pelo Rossio, não fizeram uma manifestação, não interromperam o trânsito, não exibiram faixas, não usaram palavras de ordem, enfim, limitaram-se a passear — sem que isso possa constituir qualquer tipo de infracção a qualquer tipo de regulamento ou lei deste país ou do foro exclusivo castrense. Foram «passear» numa atitude que contrariava a vontade dos Chefes dos Estados-Maiores, ou seja, contrariava o entendimento que os ditos Chefes tinham, e têm, da maneira de os militares estarem e de se comportarem. Quer dizer, contrariava uma interpretação subjectiva de disciplina. Não contrariava, objectivamente, nenhum regulamento, nenhum articulado, nenhuma obscura e esconsa disposição deontológica ou norma jurídica. Contrariava exactamente o mesmo que o meu cão me contraria quando o mando deitar e ele me vira o rabo. Desobedece-me. Mas é o meu cão… não é o «meu» sargento ou o «meu» capitão. Entendamo-nos!
Na verdade, há, muitas vezes, entre os oficiais militares uma distorcida noção de disciplina. Disciplina não é obediência cega à vontade de quem manda — porque comandar é «mandar com», é mandar em comunhão com algum princípio ou com alguém ou alguma coisa… Não é mandar, porque se está investido com um certo tipo de autoridade!
Dado que houve militares — graduados militares — que, afastados da canídea obediência, foram passear para o Rossio, para evidenciarem ordeiramente o seu desacordo das medidas legislativas do Governo — mostrando assim que os Chefes não os haviam defendido, nem os haviam protegido nos seus legítimos anseios — a hierarquia castrense — a mando ou não do Governo — optou por fazer funcionar, sem legalidade e, até, sem legitimidade, o Regulamento de Justiça Militar (RDM). Fez funcionar o RDM como eu faço funcionar o meu pé no rabo do meu cão quando ele não me obedece. Por simples vingança, nada mais. Ou, se não se gostar da palavra, por mero despeito, que é aquilo que eu sinto quando o meu cachorro me vira o rabo, não dando imediato cumprimento à ordem que lhe dei. Mas o meu cachorro é um animal irracional e os graduados militares que foram passear no Rossio são cidadãos que, sem direito a reclamarem da mesma forma que os restantes, esperam dos seus legais e, talvez, legítimos Chefes a defesa junto do Governo que os desprestigia, pretendendo reduzir na sua grandeza.
Em conclusão, e para provar que o senhor Fernando Madrinha não percebe nada de disciplina militar — e, provavelmente, de nenhum outro tipo de disciplina —, basta tentar articular as parcelas do meu raciocínio para se compreender que a «desobediência» dos sargentos nada tem a ver com regulamento ou comportamento ético castrense.
Assim, quando os Chefes se recusam a ouvir as associações legais e legítimas de militares, não atendem aos canais informais que possuem ao seu dispor, não dão explicações para dentro e para fora das estruturas que comandam, compactuam claramente com um Governo que está apostado em cercear as parcas regalias herdadas do fascismo, assim, quem é que está a instigar a indisciplina? Quem é que, em vez de comandar, está só a mandar?
Senhores Generais, como assentei «praça» aos treze anos de idade, como fui mandado e comandado por muito má e boa gente, como de instrução militar tive onze anos seguidos de prática antes de assumir condição de verdadeiro comando, estou em excelente posição para, depois de trinta anos de oficial no activo e mais onze de reserva e reforma, saber apreciar, imparcialmente, a postura dos Chefes que mandaram punir os sargentos que passearam ordeiramente no Rossio. E, no tribunal da minha consciência, foram Suas Exas. os autores morais de qualquer acto de indisciplina que queiram, agora, imputar aos seus subordinados hierárquicos.
Se o meu veredicto coincide ou não com o dos meritíssimos juízes que mandaram soltar os sargentos punidos, pouco me interessa. Importante é que não se queira distorcer aquilo que deve ser entendido como disciplina militar — uma acção biunívoca e bidireccional — em mera obediência e subordinação unívoca e unidireccional.
Naturalmente, lastimo que existam camaradas — no activo, na reserva e na reforma — que partilhem do ponto de vista do senhor Fernando Madrinha. Lastimo, porque ou nunca compreenderam o que é disciplina militar ou, simplesmente, espalham ou espalharam à sua volta o medo em vez de saudável obediência.