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Há, talvez, 35 anos, era eu um jovem capitão, ouvi um comentário, em jeito de desabafo, de um coronel da Força Aérea, na casa dos setenta e poucos anos que se queixava com grande amargor da passagem à situação de reforma. Dizia ele, em frase que nunca mais esqueci:
— Deixei de ser um oficial, passei a ser um número! É por um número que me chamam quando vou à Caixa Geral de Aposentações tratar de um qualquer assunto. À minha frente pode estar um antigo contínuo e atrás de mim um almirante. Somos todos simples números! Perdemos a identidade... Ao menos que nos chamassem pelo nome!
Guardei o queixume todos estes anos, pensando no momento em que também eu passaria a ser um número. Claro que, ali pela década de 80 do século transacto, julguei que tudo ia ser mudado. Que, finalmente, os reformados iam ter direito à dignidade de quem deu uma vida ao serviço dos outros. Dos outros, disse bem! É que, seja qual for a profissão, o reformado contribuiu sempre para a sociedade com o seu trabalho, com o seu capital, com a sua vida. Para não ter contribuído era necessário que não tivesse vivido, o que é, só por si, um absurdo. Quando se trabalhou, ganhou e gastou dinheiro — muito ou pouco — contribuiu-se para manter os circuitos económicos em funcionamento e, por conseguinte, em condições de gerar riqueza — muita ou pouca, mas riqueza. Quem gasta dinheiro está, naturalmente, a alimentar a economia, a dar emprego a muitos trabalhadores e, sem dúvida, a proporcionar salários a quem deles necessita.
Se soubermos olhar a sociedade e a economia segundo esta perspectiva, que nada tem de novo, pois já é conhecida desde a Grande Depressão, nos Estados Unidos, no final dos anos 20, percebemos a importância económica das chamadas classes inactivas. Só um pensamento enviesado e maldosamente distorcido é incapaz de compreender este raciocínio elementar; só alguém que vive completamente obcecado pela ideia de um capitalismo florescente na base exclusiva das classes activas pode rejeitar — e mal — este princípio da Economia.
Os reformados militares sofreram, há um ano, um corte abrupto na sua pensão mensal. A análise deste tema pode ser vista no blog «
A Voz da Abita (na Reforma)», que refiro, com a devida vénia. Contudo gostaria de acrescentar a minha própria visão sobre o assunto. Realmente, com a simples perda de comparticipações em medicamentos e meios auxiliares de diagnóstico a pensão de reforma de qualquer militar — e reforço a ideia,
de qualquer militar, pois estou a pensar naqueles que pertencem aos baixos escalões da hierarquia — sofreu um
redução real de vários pontos percentuais que não são compensados com aumentos, pois é preciso auferir um rendimento muito baixo para ver acrescida a pensão de reforma.
Se tomarmos como verdadeiros os números usados há tempos pelo antigo CEME e actual CEMGFA, general Valença Pinto, teremos que cerca de 70.000 são os efectivos militares na situação de activo, reserva e reforma os quais deixaram de poder aceder ao consumo geral em percentagens variáveis, mas sempre significativas. Se a estes acrescentarmos todos os funcionários públicos, entre reformados e activos, teremos um já muito elevado número de cidadãos que foram, também, cerceados nos consumos. Ora, com isto fica evidente que o actual Governo, ao contrário de estar a procurar incentivar a economia — único sustentáculo da viabilidade portuguesa — está a boicotá-la, em nome de um equilíbrio orçamental que, a mais longo prazo e com uma economia florescente, seria resolvido pela via fiscal. É que a “saúde” orçamental pode conseguir-se actuando ou sobre a receita do Estado ou sobre a despesa ou, ainda, sobre ambas em doses cautelosas. Para o Estado auferir maiores recitas mais basta aumentar os impostos os quais podem ser selectivos ou «cegos» — o imposto indirecto, aquele que todos pagam, porque recai sobre produtos que todos consomem, é, sem dúvida, o mais fácil de cobrar, mas, também, o mais injusto; mas se o Estado reduzir a despesa — actuando sobre os salários pagos aos trabalhadores — consegue o mesmo efeito. Claro que, se tomar as duas posições, mais rapidamente alcança o equilíbrio orçamental.
O resultado do aumento da carga fiscal reflecte-se directamente no consumo por duas vias: uma, porque os consumidores se retraem por irem pagar mais caro pelo mesmo produto; outra, porque os produtores reduzem a produção por haver uma diminuição do consumo, fazendo cair a receita fiscal. A diminuição dos salários — logo, da despesa — tem efeitos directos no consumo que, também, de imediato se retrai. Quem sofre com esta política? A economia nacional.
Há, todavia, um processo de manter o consumo em taxas elevadas: através da publicidade e do recurso ao crédito. A primeira, aguça o desejo de posse, levando a que as opções de consumo nem sempre sejam as mais apropriadas; a segunda, facilita o acesso ao que se deseja comprar diferindo no tempo o encargo com o pagamento, através de juntar ao preço do produto a taxa de juro que se tem de liquidar ao banco. Qualquer destas duas acções são modos pouco sustentados de manter em funcionamento uma economia.
Através destas noções ultra elementares consegue-se perceber o que o Governo está a fazer em Portugal: reduzir o buraco orçamental através do corte das despesas, reduzindo drasticamente os salários, e aumentando os impostos, particularmente aqueles que incidem indiscriminadamente sobre todos os consumidores — julga o Governo que, deste modo, o tecido produtivo se manterá incentivado para a produção. Ao mesmo tempo anima-se o consumo — através do crédito, transferindo para as famílias o ónus da manutenção da produção sem mexer nos rendimentos dos bancos (que deveriam ser altamente taxados em função dos lucros obtidos). É evidente que, mais tarde ou mais cedo, as famílias entram em ruptura orçamental, tendo de quebrar o consumo ou não honrando as dívidas — veja-se o jornal
Correio da Manhã de hoje.
O Governo está preocupado com o cumprimento do pacto de estabilidade, mas não está a levar em conta a economia nacional que, dentro de poucos anos, estará completamente inoperativa, sendo só florescente em um ou outro campo que não é suficiente para compensar toda a produção que entretanto vai falir ou fechar as portas ou reduzir-se a quantidades insignificantes. Isto quer dizer que, daqui a tempos, Portugal será um dos Estados mais pobres da União, pois o consumo que restar será de produtos importados.
O contrário do esboço que tracei conseguir-se-ia a partir de um salutar aumento do consumo através de o Estado o incentivar, pagando justamente às classes inactivas, taxando com rigor as entidades responsáveis pela cedência de crédito, mantendo uma carga fiscal favorável aos sectores produtivos de maior produção/consumo, impondo uma fiscalidade nas áreas que se sabem que fogem ao fisco, limitando o consumo das classes sociais mais próximas da abundância, restringindo a saída de cidadãos para o estrangeiro em gozo de férias, através da elevação das taxas de embarque em épocas bem determinadas, cobrando taxas mais altas na prática publicitária, nomeadamente a que se refere a produtos supérfluos, enfim, reestruturando os hábitos dos Portugueses que foram completamente alterados com a entrada na Comunidade Europeia e no regabofe que se viveu nos anos do Governo de Cavaco Silva continuado no de Guterres.
A via seguida pelo Governo de José Sócrates — que dá o exemplo gozando férias no Quénia ao contrário de as passar na serra do Gerês — vai cavar fossos enormes entre grupos sociais e os mais fragilizados são os que se situam nas classes inactivas, sejam antigos contínuos ou almirantes. A diferença situa-se simplesmente nas descidas dos padrões de vida: o do contínuo passará a ter a dignidade do do mendigo e o do almirante a do contínuo. Nada mais! E que os deuses, na sua divina bondade, não lhes dêem longas vidas para que não tenham de descer mais ainda na escala das dificuldades.