A geração sacrificada
Antes de tecer quaisquer considerações, gostaria de definir o que entendo (e se entende sociologicamente) por geração.
Uma geração de seres humanos «contém» todos quantos nasceram no período de 25 anos, pois admite-se ser este o tempo máximo para se começarem a notar diferenças comportamentais nos grupos em análise (os que o antecedem e os que lhe sucedem). Assim sendo, eu, que sou um homem de 65 anos de idade, se me considerar no centro de uma geração poderei dizer que todos os indivíduos que têm idades compreendidas entre os 52 e os 77 anos pertencem ao mesmo grupo geracional em que me encontro. Evidentemente que as franjas ou extremos — todos os que têm entre 52 e 54 e os que têm entre 75 e 77 anos estarão mais próximos das gerações que, respectivamente, os antecedem e lhes sucedem. Um homem de 77 anos terá maiores afinidades com um outro que tenha 80 do que com um de 68, por exemplo, tal como um de 52 se identifica melhor com outro de 48 do que com um de 60. Mas esta é a análise marginal que, por regra foge aos padrões que definem a análise centralizada. Posto este ponto prévio, poderei passar ao cerne do apontamento de hoje: a minha geração foi a dos homens e mulheres sacrificados em Portugal. Vamos ver o motivo.
Todos os que nasceram na proximidade do ano de 1930 sofreram, na infância, os efeitos de vários fenómenos sociais, económicos e políticos que se conjugaram para lhes proporcionar uma meninice e começo de juventude dificultados aos mais variados níveis. Apanharam os restos dos efeitos perversos da Grande Depressão reflectidos na Europa; a afirmação da ditadura fascizante de Salazar; as restrições financeiras resultantes do desejo de equilíbrio orçamental; as consequências colaterais da Guerra Civil de Espanha logo seguidas das resultantes da eclosão da 2.ª Guerra Mundial: racionamento, medo de perda da neutralidade e possível invasão do território, repressão policial, doutrinação ideológica fascizante no seu ponto mais alto. Quando tinham 15 ou 16 anos, a derrota da Alemanha parecia ter trazido a paz ao mundo, mas a destruição de toda a máquina económica europeia fez arrastar por mais um lustro as faltas de artigos e produtos mais essenciais, entretanto, consolidava-se, com a conivência das potências aliadas e vencedoras, o ditador que não permitia a abertura a novas formas de pensar resultantes do conflito militar. A Guerra Fria veio ensombrar os seus vinte anos e levá-los para as fileiras do Exército onde foram apanhados pelas grandes manobras militares do então recém construído campo de treino em Santa Margarida, próximo de Abrantes.
Entretanto, tendo passado pelo mesmo, aqueles que nasceram por volta de 1933, 1934, foram apanhados pelas mobilizações militares para servirem no Estado da Índia, ameaçado de invasão pela União Indiana.
Verdade seja, houve um curto período, entre os anos de 1955 e 1961, que correspondeu ao boom económico em ocorrência na Europa e que se reflectiu em Portugal de modo mais ou menos sensível. Foi o momento de expansão da cidade de Lisboa para Alvalade, Benfica, Restelo e Carnide; o aumento da circulação automóvel; o lançamento de carreiras de autocarros de dois andares (à maneira londrina) e dos «eléctricos» com atrelados; da inauguração da minúscula rede de metropolitano.
Em 1961, eclode a guerra em Angola, seguindo-se-lhe na Guiné e em Moçambique. Os jovens nascidos entre 1939 e 1941 foram apanhados pelas malhas da mobilização para as antigas colónias; cumpriram, às vezes, quatro anos de serviço militar; viram atrasados todos os seus planos de começo de uma vida de trabalho — muitos fugiram para o estrangeiro, França em particular, para ganharem o sustento e escaparem à guerra. Seguiram-se treze anos iguais de sangria, de vidas adiadas, de aumento da inflação, de repressão política, de incertezas quanto ao futuro.
1974 foi o tempo da mudança. Nessa altura tinham 20 anos os que nasceram há 52. Enfrentaram as lutas políticas, as ilusões e as desilusões de um processo revolucionário que apontou para uma sociedade mais justa e veio agora desaguar no que está à vista de todos. Os tempos que se seguiram à adesão à Comunidade Europeia foram de euforia económica e financeira — gastou-se à tripa forra —, ganhou-se a ilusão de que iria ser sempre assim; cantou-se, como a cigarra, em vez de armazenar, como a formiga; estabeleceram-se metas para a idade da reforma iguais às dos mais desenvolvidos países da Europa e nós, os homens e mulheres de 65 anos, um pouco menos e um pouco mais, convencemo-nos que, finalmente, iríamos ter a recatada e reconfortante velhice, com tanto sacrifício vivido, merecida.
Engano absoluto! Tudo ruiu. O sonho de prosperidade evaporou-se como o mais volátil dos líquidos. Aqui estamos nós, a geração de sacrificados, prontos a enfrentar mais uma outra crise. A crise que os maus gestores e maus políticos permitiram; a crise que os homens da minha e da geração anterior à minha — porque é deles que estou a falar — geraram. Foram eles, fomos nós, que não soubemos ler nas estrelas e acreditar nos Velhos do Restelo! Vêm, agora, os políticos da geração que nos seguiu, impor, sem dó nem piedade, sem memória do quanto já sofremos, impor, dizia, o freio e o bridão que nós, os anónimos servidores, nós a gente do Povo, nós que pouco ou nada beneficiámos da Liberdade que desejámos, teremos de suportar em nome da salvação das gerações que nos hão-de seguir neste Portugal ao sabor dos milagres de todos os santos e dos foguetes que alegram a ignorância dos folguedos populares.
Somos a geração sacrificada ou nascemos no tempo e no país errado?