A Ética Militar e a Política
Em apontamento anterior já referi a releitura da obra A Abrilada de 1961. Não me vou repetir, mas, ao meditar sobre o relato dos factos, assaltaram-me questões que não posso deixar de partilhar com os meus leitores.
A razão fundamental do falhanço da tentativa de afastamento de Oliveira Salazar das cadeiras do Poder, em Abril de 1961, encontra uma grande parte da justificação em considerações de carácter ético dos militares que estavam envolvidos na intentona e que, afinal, eram ministros ou altos responsáveis castrenses. Quiseram fazer um golpe dentro mais estrita legalidade. Como se isso fosse possível!
Há meses escrevi aqui sobre a atitude do general espanhol José Mena Aguada, quando, a propósito da autonomia catalã, com grande frontalidade, avisou a classe política de Espanha de que não poderiam ser ultrapassados os limites da Constituição. Foi afastado do alto cargo que exercia, depois de sofrer punição disciplinar, e quase o crucificaram com o instigador de golpes antidemocráticos. E tudo porque, nos tempos que correm, se entendeu que as Forças Armadas estão absolutamente subordinadas à vontade do Poder político.
Claro que estão e não podem deixar de estar, mas como em tudo na Vida há limites que devem ser observados! Esses são os limites da Ética Militar. Mas haverá uma ética para os soldados e nenhuma para os cidadãos? E nenhuma para os políticos? Como é que articulam — se é que isso é possível! — as diferentes «éticas»?
Para simplificar as questões por mim levantadas julgo que se pode resumir tudo a uma simples pergunta: — Porque é que nos países do Norte da Europa, incluindo a Grã-Bretanha, não há tradição de intervenção dos militares na Política e ela existe na França, na Espanha, na Itália, na Grécia, em Portugal, nos Estados da América do Sul, em África e em alguns outros?
Creio que a explicação é muito singela. Vejamos.
O Poder militar só tem, por regra, tendência a interferir com a regular vivência do Poder político em circunstâncias bem determinadas: a) quando é vítima das arbitrariedades desse mesmo Poder; b) quando o nível de corrupção se estende transversalmente a toda a sociedade e secciona o Poder militar corrompendo-o, também; c) quando o nível de desordem social atinge pontos de ruptura e coloca em causa a estabilidade do Estado; d) quando o Poder político alimenta a corrupção entre os apaniguados de quem governa, gerando grandes e graves injustiças sociais; e) quando a independência e a soberania correm riscos e o Poder político não assume ou não tem capacidade para assumir a direcção da defesa do Estado. Poderá haver situações em que se combinam algumas destas alíneas ou que se apresentem variantes das que enunciei.
Julgo que há circunstâncias que são características de Estados africanos, outras que são comuns a Estados sul-americanos e outras a Estados europeus. Creio que, neste último caso, estão as que tipifiquei nas alíneas c) e d).
Tentarei ser mais específico, socorrendo-me do exemplo nacional.
A situação prevista na alínea c) foi a que justificou a intervenção militar em 28 de Maio de 1926, impondo a ditadura. É evidente que a explicação não se limita nestes curtos termos! Contudo, foi ela que vigorou e vingou para transformar uma ilegalidade num acto legítimo. E não tenhamos dúvidas da legitimidade do golpe que impôs a ditadura! Toda a gente, com excepção de um pequeno grupo de políticos mais clarividentes, apoiou a tomada do Poder político pelo Poder militar no momento do seu implante. Anos depois, o descontentamento já era significativo.
O problema da legitimidade da ditadura de 28 de Maio está indissoluvelmente ligado à questão da ordem pública. As principais cidades portuguesas, de então, viviam em constante desassossego quer por causa das sucessivas greves quer em consequência dos atentados — com características de terror — que os anarco-sindicalistas levam a efeito a toda a hora quer, ainda, pela própria insegurança provocada por grupos de bandidos e fora-da-lei que incomodavam as pacatas populações. A impossibilidade de os políticos e o sistema democrático vigente serem capazes de controlar a desordem — que também se espalhava à própria disputa partidária — levou a que o Exército impusesse a força das armas, invocando para tal a sobrevivência da Nação. As Forças Armadas fizeram aquilo que nenhuma organização política ou social poderia fazer, até por lhe faltar a credibilidade e a representatividade nacionais.
Entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974 aconteceram várias tentativas de reposição da legitimidade democrática que falharam, essencialmente, não por serem descobertas pelo sistema policial vigente mas por a consciência nacional não ter ainda apreendido o quanto indesejável era, já então, o regime legal em exercício. A rua tem de dar legitimidade à revolta e ela passa, também, pelos quartéis. Nenhum soldado é só soldado; é também cidadão. Assim, só quando existe real sintonia entre o sentir do soldado e o sentir do cidadão é que estão criadas as condições para as Forças Armadas aderirem, sem relutância, ao desejo de mudança política.
A 25 de Abril de 1974 estavam reunidas as condições descritas por mim na alínea d): a consciência da corrupção a todos os níveis e de todas as formas, tal como a das injustiças sociais era sentida na rua e, também, nos quartéis. O golpe militar era inevitável, como inevitável tinha sido o de 28 de Maio de 1926!
Olhada desta forma a Ética Militar não pode ser entendida como um conjunto de valores inamovíveis e inalteráveis, pois assume-se como uma resposta dialéctica ao Poder político ou, se se preferir, à Ética comportamental do Poder político. Quando ele actua sem atender a uma Moral de irrepreensibilidade o Poder militar, mais tarde ou mais cedo, identifica-se com a vontade da rua e derruba o Poder político instituído para, em seu lugar, colocar aquele que lhe parece corresponder à defesa do bem-estar e da sobrevivência da Nação. Não há Poder militar golpista; há Poder político sem comportamento ético irrepreensível ou, pelo contrário, sem mácula. O Poder militar responde ao comportamento do Poder político, nada mais. É assim que se explica a falta de tradição intervencionista dos militares na política nos países do Norte da Europa — é que, por lá, os políticos praticam políticas não condenáveis! Por lá, os o Poder político tem uma Ética que cumpre rigorosamente... Por cá!... Bom, por cá, a postura moral dos políticos nacionais é de mero golpismo constante. Depois espantam-se!