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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

07.07.24

A QUARTA HOSPITALIZAÇÃO

05 ‒ Os que dão muito


Luís Alves de Fraga

 

Todos nós já passámos por mendigos que pedem esmola e demos uma moeda. Nessa altura temos plena consciência de que estamos a dar, em especial aquilo ou a quantidade que não nos faz falta. Contudo, quantas vezes, sem abrirmos a carteira para tirar dinheiro, nós já demos algo que vale mais do que muitas moedas, sem termos consciência do quanto estamos a dar?

Há dias, de conversa com o funcionário da empresa que me fornece o oxigénio que tanta falta me faz, ele disse-me ser ateu. Respeitei a sua a sua afirmação, como respeito todas as outras opções de carácter religioso ou de outra natureza. Contudo, não pude deixar de lhe chamar a atenção para um facto: é que ele carrega, escadas acima, com bidons muito pesados (ainda que com apoio de uma máquina própria) para dar vida aos pacientes e, por muito que lhe paguem na empresa, ele não faz ideia do quanto está a dar de esperança de vida a todos aqueles a quem entrega o depósito do precioso gás. Ele julga que lhe pagam esse serviço, no entanto, não há dinheiro para pagar o que ele entrega nas nossas casas. Se, no final da vida, houver, de facto, uma avaliação do nosso comportamento, a este jovem, como a tantos outros, não lhe vai ser “descontado” o ordenado que recebeu, mas vai-lhe ser averbada a quantidade de esperança que forneceu em cada distribuição de oxigénio.

E porque raio estarei a chamar à colação este exemplo quando me proponho falar da minha última hospitalização no HFAR? Para mim, que vivi vinte dias de internamento numa enfermaria, é muito evidente e fácil de explicar. Aí vai.

 

Se os médicos são fundamentais para determinar a doença, o tratamento e os exames complementares dos internados, quem, realmente conduz, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia e noite a noite o acompanhamento dos doentes são os/as enfermeiros/as e os/as auxiliares. São eles que mudam fradas, fazem camas, trazem a comida e ajudam quem não pode a comer, mudam as roupas, chegam o copo de água à cabeceira do doente, dão banho e, às vezes, até àqueles que não podem, limpam o rabo, numa palavra: fazem tudo para que o enfermo se cure rápida e completamente.

No HFAR encontrei gente de todas as cores, de todos os credos, idades e nacionalidades diferentes. Gente extremamente educada e gente eficiente, mas de poucas falas.

Como, por regra, sou bastante educado com todas as pessoas, levo-as a corresponderem em igual medida comigo e, deste modo, acabo não tendo razão de queixa de ninguém. E não tive.

Aproveitei o momento para fazer pedagogia sobre o trabalho das auxiliares, começando por averiguar se estavam naquele trabalho porque o haviam escolhido com o coração ou por necessidade de ganhar a vida. Quase toda a gente me deu a resposta mais inesperada, até então, para mim: estou aqui porque gosto do trabalho que faço!

Estava aberta a porta para chegar onde queria:

‒ Imagina como ganhando pouco dá tanto? Imagina como pode ser recompensada/o um dia mais tarde? Calcula quantas pessoas a/o vão recordar quando daqui saírem? Já pensou que os católicos, os evangélicos, os agnósticos, até os islâmicos, poderão lembrá-la/o nas suas orações, ainda que os agnósticos digam que não rezam? Sabe que a gratidão gera gratidão e frutifica em mais gratidão?

E, enquanto me lavavam as costas, as pernas, os pés, me escanhoavam a barba de dois ou três dias, ficavam silenciosos tal como se nunca se tivessem lembrado disto tudo o que lhes ia dizendo em cada dia que me ajudavam. E no fim de tudo eu só tinha uma frase para lhes dizer: muito obrigado e que Deus lhe pague!

Chegaram a confessar-me que não acreditavam em Deus e eu respondi-lhes: «Olhe que, sem saber, acredita, porque está a ajudar quem não pode e ao fazê-lo estar a manter uma vida que o Criador criou». Calavam-se e, talvez, no íntimo ou me acharam um chato, um “beato”, mais um a “bater mal das válvulas” ou ficaram a pensar que era tempo de matutar na missão que estavam a levar a cabo, porque aquele trabalho só se faz por espírito de missão, tal como o do militar que vai para a guerra.

 

E as ou os enfermeiros que já me conheciam, bem como as auxiliares, quando entravam na enfermaria ‒ talvez fosse ilusão minha ‒ vinham com um sorriso nos lábios e com o ar de quem se sentia orgulhoso por saber que havia quem lhes reconhecesse a bondade que tinham no coração. Uma bondade que tinham de disfarçar para cumprir sem lamechices o seu dever.

Resta o leitor perguntar-me a razão deste meu discurso naqueles dias de internamento e a resposta é singela: porque quando dependemos em absoluto dos outros a humildade é a posição mais séria perante quem nos está a dar quase tudo.

05.07.24

A QUARTA HOSPITALIZAÇÃO

04 ‒ O Cabo Ricardo


Luís Alves de Fraga

 

Foi notícia na rádio, na televisão e na imprensa nacionais o atropelamento de um militar ‒ o cabo Ricardo Esteves ‒ do posto da GNR de Arraiolos, no começo da noite do dia 30 de Janeiro do corrente ano (entre as várias fontes encontradas na Internet, escolhi a seguinte para aqui ficar de testemunho: https://televisaodosul.pt/militar-da-gnr-gravemente-ferido/ ).

Esse militar de cavalaria, estava na cama quase em frente da minha, na enfermaria do HFAR. Nasceu, segundo me parece, em Setúbal e há muitos anos está radicado em Arraiolos. Tem, ao que suponho, quarenta e sete anos de idade e duas filhas de um primeiro casamento, moçoilas já bem crescidas. Ainda tem mãe, que adora como é visível em função do que diz, e uma segunda esposa extremosa, a D. Maria Teresa, que o acompanha em visitas diárias, quando não tem de ceder a vez a outros familiares. Naquela área do HFAR não há ninguém que desconheça o Ricardo.

Antes de passar ao relato do estado sanitário do militar e da minha relação com ele, deixem que vos conte como foi parar ao hospital.

 

Na estrada nacional 4 (EN4) ao fim da tarde, começo da noite, avariou-se um camião que ficou imobilizado na berma da estrada. Foi accionado o dispositivo de segurança da GNR, que destacou para o local uma patrulha motorizada, com a finalidade de sinalizar com pinos o veículo avariado e acautelar o trânsito naquele troço da via. Naturalmente, porque já se tinha posto o sol ou, pelo menos, já era quase noite, os militares envergavam os coletes e perneiras reflectoras e usavam lâmpadas de sinalização. O cabo Ricardo ia colocando os pinos, começando da traseira da camioneta avariada para a dianteira, quando, a velocidade não registada, foi abalroado por um veículo ligeiro, que lhe embateu na anca direita e o projectou a uma distância calculada entre quarenta e cinquenta metro. A pancada foi de tal ordem que o coldre da pistola que transportava à cintura ficou preso na frente do carro conduzido por alguém que diz não ter visto nem sinalização nem o cabo Ricardo vestindo o colete reflector. Imagine o leitor o estado físico em que ficou o militar… Eram fracturas expostas, sangue e a possibilidade de ter morrido com o embate e as sucessivas reviravoltas que terá dado contra o asfalto até ficar imóvel. De urgência foi levado para o hospital de Évora e dali transferido, depois de estabilizado, para o hospital de S. José onde permaneceu internado durante dois meses, em situação de coma induzido, tendo sido submetido a sucessivas cirurgias ‒ uma delas à tíbia direita da qual faltavam oito centímetros de osso.

No dia seguinte ao acidente, a esposa recebeu um telefonema do Presidente da República a oferecer a sua solidariedade. E pronto! Igualmente aconteceu com o comando da GNR.

O cabo Ricardo foi transportado para o HFAR, onde entrou em estado quase vegetativo e onde permanece até agora. Passemos ao que dele eu conheci aquando da minha estadia na mesma enfermaria daquele hospital.

 

A primeira impressão que tive foi de estranheza, pois tanto se dirigiam ao cabo ‒ a quem quase toda a gente trata por tu ‒ com grande carinho como com aspereza; aquela aspereza das mães ao ralharem com os filhos desobedientes. Fiquei, como se usa dizer, de orelha arrebitada para perceber o que se passava com aquele “jovem” no meio de velhos militares caducos.

O Ricardo tirava a fralda de papel, que logo de manhã lhe colocavam, mexia nas partes íntimas com total falta de pudor. Era, realmente, uma criança inocente sem a noção da maldade. Lá vinha o ralhete. Depois, sentado numa cadeira de rodas, ficava com o olhar parado no vazio ou seguia atentamente os diálogos dentro da enfermaria, sendo, todavia, impossível compreender se ele estava a perceber o que se dizia.

O Ricardo não fixava o nome de ninguém; uma enfermeira perguntava-lhe quem era e ele dizia o primeiro nome que lhe vina à mente. Ela ensinava-o e perguntava novamente e a resposta era diferente ou igual à anterior. Para ele o “ti Chico” (companheiro mais antigo na enfermaria) era aquele que melhor conhecia.

De repente começava a queixar-se, baixinho, muito baixinho, porque o Ricardo não é homem de grandes gritos: «Ai Jesus que dores tenho nas minhas pernas» e olhava para nós, acrescentando: «Como é possível, num hospital, ter-se tantas dores!»

 

Havia, de entre o pessoal auxiliar, alguns que vinham puxar pela memória do Ricardo só para se rirem dos disparates que dizia. É evidente que nem toda a gente que trabalha num hospital o faz com amor e compaixão.

Ao cabo de dois dias a observar todos estes comportamentos, tomei a decisão de, em concordância com as minhas possibilidades e sem ferir ninguém, começar uma acção pedagógica junto do cabo Ricardo e do pessoal que vinha fazer risota com as suas impossibilidades.

Primeiro comecei a trata-lo por senhor Ricardo, depois entabulei a conversa possível com ele, escutando-o com muita atenção e fazendo-lhe perguntas para comprovar da veracidade das suas afirmações. Compreendi que muita coisa passava por uma imaginação delirante no meio de algumas verdades e fui dizendo ao pessoal de enfermagem e auxiliar que tinha muito dó do estado do Ricardo, pois havia perdido uma parte da memória e havia que, com cuidado, ir ajudando-o a recordar-se.

Um dos meus primeiros passos foi levá-lo a fixar o meu posto e nome, pois, sempre que tal lhe perguntava respondia-me «Ti Xicho” (creio que poderei grafar assim). Pacientemente dizia-lhe «Sou o coronel Fraga»; tornava a perguntar e ele a responder como inicialmente; eu ajudava-o e dizia: «Co… co…» e ele respondia: «Coronel Xicho». Eu repetia: «Coronel está bem, mas não sou Xicho, sou Fra… Fra…» e ele acabava: «Fraga». E assim passávamos meia hora, deixando-o, depois, descansar.

Como sabia que era de cavalaria comecei por tentar trazer-lhe à memória coisas sobre as quais tinha a certeza que ele sabia.

‒ Senhor Ricardo, como é que se chama o arreio que se põe na cabeça do cavalo?

‒ Arreio!

‒ Não. Só o da cabeça… Ca…

Com um sorriso ele dizia:

‒ Cabeçada.

Neste caminho fomos prosseguindo durante talvez quinze dias e as pessoas já não vinham rir-se nem fazer perguntas parvas ao cabo Ricardo. Mas feliz, mesmo feliz, fiquei na manhã em que ele olha para mim e, sem que o interpelasse, diz: «Coronel Fraga». Bati palmas e dei-lhe os parabéns. Claro, foi sol de pouca duração, mas tal acção espontânea queria dizer que alguma coisa se estava a abrir no fundo escuro da memória presente do meu companheiro de enfermaria.

 

Não posso deixar de louvar a acção de uma auxiliar, senhora dos seus sessenta anos que, a todas as refeições vinha partir-lhe a comida e, quando ele já estava cansado de movimentar a mão direita, lha dava à boca.

E menos posso esquecer a atenção que o médico militar, major, Vítor Freitas, tomava àquele paciente. Da boca dele ouvi dizer que estavam a movimentar-se para mandar o cabo Ricardo para a recuperação de Alcoitão.

De lastimar é que a queixa contra o condutor que atropelou o cabo Ricardo tenha de ser apresentada pela família quando, na minha opinião, tudo devia ser tratado pela GNR, incluindo o apoio jurídico à família. A vida de um militar deveria estar acima de todos os valores materiais da corporação militar. Esse é o exercício do dever de tutela.

 

Fui longo, mas a história épica do cabo Ricardo Esteves merecia ser contada por quem viu parte dos estragos que um condutor automóvel, movendo-se em alta velocidade, pode fazer na vida de um ser humano, que me tocou o coração.