O cheiro da pobreza
Na minha juventude fui vicentino (para quem não sabe o que isso é deixo a explicação: fiz parte da Conferência de S. Vicente de Paulo, cuja finalidade é a ajuda aos pobres. Fui-o quando era aluno pré-finalista no Instituto dos Pupilos do Exército.
Aos católicos e mais velhos, o padre capelão lançou a ideia de fundarmos uma delegação da Conferência para “ajudarmos” os pobres do bairro do Calhau, que era essencialmente de barracas e ficava nos terrenos de uma das laterais dos jardins do palácio dos marqueses de Fronteira, ali em S. Domingos de Benfica.
Devido a uma escolha que nunca compreendi (não houve votação, mas “sugestão” do capelão) fui nomeado vice-presidente da Mesa da Conferência (éramos quatro: um presidente, um vice, um secretário e um tesoureiro). Em consequência da idade e da supremacia sobre os alunos mais novos, com caridade cristã, lá íamos encaminhando os mais assíduos à missa, ao domingo, ou ao rezar do terço, à noite, depois do jantar, para a Conferência de modo a termos audiência com qualidade e, ao mesmo tempo, encaminhando os escolhidos para continuarem, anos mais tarde, a nossa obra. Julgo que chegámos a ser, nesses dois ou três primeiros anos, talvez uma trintena que assistia aos plenários da Conferência onde relatávamos os problemas dos “nossos” pobres, o que precisavam e como nos comportávamos nas visitas.
Íamos sempre aos pares visitar a mesma família desde o início do ano até ao final. Com as parcas esmolas que obtínhamos dos nossos bolsos vazios, a contribuição (desconhecida) do capelão e mais mil escudos (era muito dinheiro, nessa altura) dados pela viúva do marquês de Fronteira (D. Fernando de Mascarenhas) negociávamos com o senhor Mansos, despenseiro do Instituto, o tipo e quantidade de géneros alimentícios não perecíveis para repartirmos pelas barracas aonde íamos ao fim da tarde de sábado antes de regressarmos ao Instituto ou antes de seguirmos de fim-de-semana, como era o meu caso por viver em Lisboa.
Eu nunca tinha entrado numa barraca de madeira e telhado de zinco como aquela primeira onde habitavam duas mulheres, mãe e filha, vindas da ilha do Faial, porque a jovem se apaixonou por um soldado ido do continente lá para os Açores, durante a 2.ª Guerra Mundial. Se lá eram pobres ‒ contaram-me ‒ não imaginavam a pobreza em que estavam a viver no continente. O homem, o marido, pai de uma menina enfezada com oito ou nove anos, raramente estava em casa quando lá íamos, mas, se estava, desfazia-se em excessivas e falsas mesuras, em especial comigo, por ser o mais velho dos dois vicentinos.
Antes de entrar na barraca jamais imaginara o cheiro que estava lá dentro. Foi um choque, porque, mesmo sendo arejada, havia uma mistura de odor a velho, a bolor, a humidade, a transpiração, a comida e a camas mal lavadas. Foi um cheiro que nunca mais esqueci. Chamei a essa promiscuidade de aromas, cheiro a pobreza.
Depois de entregarmos o saco com o quilograma de arroz, a barra de margarina (chocou-me quando num dos plenários o capelão alvitrou, perante uma sugestão minha, a margarina em vez de manteiga, “porque para eles chega”!), o pacote de massa e de açúcar e mais uns quantos ovos embrulhados com cuidado, ficávamos à conversa, primeiro sobre os Açores e a ilha do Faial (que eu conhecia), sobre a vida delas com o marido (quando ele não estava presente, claro… pois arriscavam-se a uma sova de cinto ou de corda), sobre as dificuldades da filha (envergonhada e tímida) na escola (algumas vezes lhe ensinei como fazer as contas) e, muitas, muitas vezes sobre o que era viver na miséria. Um pouco desajeitadamente falava-lhes da pobreza de Jesus e do Seu sofrimento e que um dia, na outra vida, junto de Deus, iriam ter uma vida muito melhor.
É evidente, que da boca de um jovem de dezassete, dezoito ou mesmo dezanove anos como eu tinha, esta “pregação” ‒ sentia eu ‒ devia-lhes saber a fel tal como me faziam sentir em falso… Eu que tinha tecto, cama, comida em abundância, roupa lavada e estudos; não sabia como transmitir-lhes esperança; sabia levar-lhes uns poucos géneros alimentícios e falar de banalidades, sentindo o cheiro da pobreza naquela barraca, cujo forro do zinco por onde entrava água quando chovia uma ou duas vezes ajudámos a arranjar.
Talvez dez anos depois percebi que a esmola não era a solução da miséria e, estudando teorias políticas, julguei ter encontrado o caminho certo para acabar com a pobreza. Passados vinte anos sobre estas novas “certezas” descobri que, nem quem apregoava as ideologias mais avançadas contra a miséria havia conseguido extingui-la, pois se existia casa, educação e saúde, não havia liberdade para dizer o que faltava e, deste modo, a pobreza lá estava, mostrando-se vestida com outras roupas.
O meu relógio da vida continuou a marcar horas e passaram mais trinta anos. Tive e tenho a felicidade de poder ler e ouvir a voz de um argentino que, vindo das terras do fim do mundo, trajando de branco e sendo um velhote como eu, recorda a pobreza cada vez maior no mundo e, não cuidando de arranjar fórmulas económicas ou políticas para a extinguir, me veio colocar no meu ponto de partida. O homem de branco chama-se, agora e assim ficará para sempre, Francisco, vive em Roma e apela à única maneira de acabar com a pobreza: recusar a riqueza e distribuir por todos o que a todos faz falta. E cá estou eu, balbuciando palavras aprendidas em menino e repetidas quando jovem, repercutindo a ideologia do outro Francisco, o “Poverello”.