Uma recordação histórica
Sobre o regicídio, no Terreiro do Paço, em Lisboa, no começo do mês de Fevereiro de 1908, há ainda muito para investigar, porque quase nada se sabe, mas, agora, saiu um livro que pretende deixar claro quem foram os mandantes do assassinato do rei e do príncipe herdeiro. Ora, é exactamente isso que constitui um mistério por não haver documentação fidedigna que faça luz sobre quem pôs na rua os regicidas.
O processo policial instaurado na sequência do acontecimento não foi conclusivo e, mais tarde, desapareceu dos arquivos. Levianamente acusam-se várias instituições como responsáveis: o Partido Republicano Português, a Maçonaria e a Carbonária. Depois, acusam-se personalidades ligadas a dissidências políticas monárquicas e à ideologia republicana.
Não pretendo, aqui, defender qualquer das várias teses mas, tão-só, deixar claro que nenhum historiador conseguiu, até hoje, com recurso a fontes de primeira mão (isto é, que não sejam meras opiniões ou deduções publicadas por outros) apontar o dedo a alguém ou a alguma instituição como mandante do regicídio.
Pode-se tentar compreender o assassinato do rei, através da análise do contexto internacional e nacional; podem sugerir-se implicados no regicídio, contudo, nada mais do que isso. E isso já é muito!
A breves traços vou tentar deixar estes dois quadros.
Se na segunda metade do sédulo XVIII se deu o arranque da Revolução Industrial, foi no seguinte que ela atingiu o seu máximo esplendor.
É comum olhar-se a Revolução Industrial como um tempo de conquistas tecnológicas que facilitaram o dia-a-dia das pessoas, arrancando-as a usos e costumes tradicionais para as lançar num tempo de melhores formas de viver. Mas, e que tal tentar ver a outra face da Revolução?
As populações habituadas à prática da agricultura, às altas rendas a pagar aos senhorios, estavam sujeitas a constantes variações de baixos rendimentos, ora por causa das más colheitas ora devido às exageradas exigências dos grandes senhores da terra e, também, à introdução de maquinaria que substituía a força braçal. A fuga para as cidades industriais foi uma espécie de caminho salvífico para os trabalhadores rurais e pequenos proprietários agrícolas: a fábrica dava emprego e o patrão pagava salários. Simplesmente, aquilo que no início parecia uma óptima solução rapidamente se transformou num inferno, pois a lei da oferta e da procura fez baixar o valor dos salários graças à abundância de mão-de-obra. A saída do campo para a cidade foi um processo de piorar as condições de vida. Uma tal situação gera revolta em quem trabalha por um salário de miséria e em quem procura emprego e não o consegue.
Começaram a surgir os teóricos, naturalmente gente endinheirada e com estudos, que se dedicaram a encontrar explicações e “saídas” para esta avalanche de pobreza física e moral. Foi o tempo dos socialistas, dos anarquistas, dos sociais-democratas e dos comunistas. Foi o tempo das revoltas contra o Estado que permitia transformar seres humanos em gado para servirem os capitalistas e encher-lhes os bolsos com moedas de ouro. E, à frente dos Estados, estavam as casas reais, pactuando com elas a aristocracia e a burguesia.
Os últimos anos do século XIX e os iniciais do seguinte foram testemunhas das primeiras revoltas populares (recorde-se a Comuna de Paris, em 1870) e das grandes conspirações políticas; a Carbonária como fonte armada contra as forças repressivas do Estado ressurgiu em alguns países do sul da Europa, nomeadamente em Itália, Espanha e Portugal, mas cá já só em 1896, pela mão de Luz Almeida. As bombas e os atentados tornaram-se coisas vulgares em alguns Estados europeus.
No nosso país a Revolução Industrial mal se fez sentir, em especial, porque não era nem rico em ferro nem em carvão e, em particular, porque se privilegiava a propriedade da terra como fonte de rendimento através da exploração de uma mão-de-obra excepcionalmente barata. Nunca se olhou para a terra agrícola como uma “fábrica”, mas como um título de poder social (facto que se prolongou até bastante tarde no século XX). Assim, a revolta não podia ter a mesma matriz daquela que borbulhava na Europa; o que por cá se desejava era uma mudança de regime político que pusesse fim à fraca importância que a pequena burguesia urbana dedicada ao comércio e empregada do Estado tinha num país de nobres e agricultores. Tal mudança só poderia ser feita se se seguissem as pegadas da França republicana.
Em 1890, aproveitando o Ultimato Inglês, os republicanos deram um novo impulso ao seu incipiente partido e, daí para a frente, tornaram-se oposição ao regime, procurando agregar as massas populares completamente desprotegidas e, em simultâneo, a pequena burguesia urbana. Claro que a luta teve de se centrar em pontos que realmente tocassem estes dois polos da população e, já no começo do século XX, a Monarquia deu a mais notória ajuda à política de revolta dos republicanos: dissolveu o parlamento e entregou o governo a um dissidente de um dos grupos mais importantes da política monárquica: João Franco, que vinha governando, segundo as suas palavras, “à inglesa” e passou a governar em ditadura (Novembro de 1907). D. Carlos, nesse dia e por força da decisão tomada, assinou a sua pena de morte, tanto mais que mostrava um significativo desinteresse e desamor pelo povo e pelos políticos nacionais: chamava, sem rebuço, “piolheira” ao país.
Foi João Franco quem atiçou, mais ainda, um outro tema que já fizera furor em anos anteriores: os chamados “adiantamentos à Casa Real”. Isto era, nem mais nem menos, qualquer coisa como fazer empréstimos à Casa Real para cobrir as despesas excedentes do rei e que não tinham cobertura orçamental.
O desespero caiu sobre os monárquicos dissidentes dos dois partidos mais importantes do “Rotativismo” e sobre toda a população urbana que não estava alienada pela política clerical que se fazia na província, em especial no Norte.
Se os republicanos conspiravam, monárquicos como José Maria de Alpoim e Francisco de Herédia Júnior, visconde da Ribeira Brava e outros também o faziam.
É exactamente e sem dúvidas históricas que se deve ao visconde da Ribeira Brava (trisavô de D. Isabel Herédia, mulher do pretendente ao trono de Portugal pela via miguelista) a aquisição das armas que foram utilizadas no regicídio, importadas por uma distinta espingardaria ainda hoje existente no Largo D. João da Câmara, em Lisboa.
Essas espingardas (Winschter) foram parar às mãos dos regicidas que eram carbonários sem se saber se houve ou não qualquer ordem do comité revolucionário do Partido Republicano Português (PRP), pois alguns dos mais destacados dos seus membros, nomeadamente Afonso Costa e Herédia, haviam sido presos antes do regicídio.
Do regicídio resultaram a morte de dois atiradores: Manuel Buíça e Alfredo Costa, ambos assassinados no local. Terão fugido outros elementos conjurados, nomeadamente um que se encontrava nas escadas do pedestal da estátua de D. José ao qual se atribui o primeiro tiro disparado. Aventa-se a hipótese, sem qualquer tipo de fundamento, de que seria Aquilino Ribeiro.
Como expus, os únicos regicidas conhecidos e confirmados foram aqueles que, de facto, saltaram para a rua e dispararam sobre o landau real. Tudo o mais são suposições.
A República teve de esperar por Outubro de 1910, mais de dois anos, até ser proclamada na sequência de um acto revolucionário conduzido pelo PRP e pela Carbonária.
Nada disto se ensina aos jovens alunos das nossas escolas procedendo de maneira semelhante à da ditadura salazarista que condenava o atentado sem o explicar. Pouco ou nada, neste aspecto, evoluímos.