No Outono cai a folha ‒ 04
Os velhotes
Quando eu nasci a minha irmã já tinha sete anitos, uma menina muito mimada e habituada a ser a filha única, deixando que caíssem sobre ela todas as atenções dos pais e dos familiares próximos já que era uma jovem muito bem-comportada e cheia daquilo que, então, se chamava siso.
Nunca tive curiosidade de saber quando é que ela começou a sentir ternura e amor por este intruso na família, contudo, julgo, com a evolução do bebé e o ganhar “forma de gente” a minha irmã começou a gostar do mano, que, segundo dizem, depois dos três ou quatro primeiros meses de vida se fez um ser engraçado. Com três anos, cabelos castanhos muito claros, compridos como era moda na altura, eu tenho vagas recordações de ser um “diabrete” imparável e já com certa facilidade de expressão oral que, no ano seguinte, evoluiu significativamente, tornando-me um puto giro que fazia os encantos da minha irmã e das suas amigas já espigadotas, junto das quais ‒ as mais bonitas ‒, procurava insinuar-me para dar e receber beijinhos. Verdade seja que um ano depois, as mais astutas das amigas da minha irmã convenceram-na de que eu era, talvez, para a idade, um menino atrevidote. Lá se me foram os beijinhos!
Crescemos e lembro-me da minha santa mãe referir ao meu querido pai o facto de eu ser um menino muito bem-comportado na ausência da minha irmã. Tanto quanto ainda me lembro, a situação começou a mudar por volta dos meus dez anos. Passados mais três Verões ela casou-se, formou a sua casa e um ano depois, nas minhas catorze primaveras, tornei-me tio de uma linda menina.
Como fui, na qualidade de aluno interno, para o Instituto dos Pupilos do Exército no ano em que a minha irmã casou, os nossos contactos na sua casa passaram a ser mais escassos e só possíveis nos diferentes períodos de férias das aulas. Muitas vezes, na minha adolescência, ela me deu conselhos úteis; escutava-os com atenção e seguia-os à risca, por me terem sempre parecido ponderados e sensatos.
Dez anos depois de ter sido tio foi a vez de eu casar, seguir para Moçambique e começar a minha vida adulta e profissional.
Somos ‒ eu e ela ‒ pessoas muito distintas em termos de feitio, mas muito compatíveis como consequência do amor que nos une.
Por mero acaso ou feliz coincidência moramos na margem sul do Tejo a relativamente pouca distância um do outro e falamo-nos muitas vezes através do telefone. Ela está com noventa anos muito lúcidos e eu um velhote com vários achaques que se agravaram depois do isolamento pandémico. Pequenina como sempre foi, mas muito bonita, quando sente necessidade de ouvir algum conselho respeitante à sua saúde eis que, invertendo os papéis da nossa juventude, me telefona, expondo as suas dúvidas e eu, que de medicina só percebo pela prática das minhas maleitas, lá lhe sugiro, às vezes receoso de errar, possíveis soluções que ela ouve com atenção para, depois, decidir.
É-me muito aflitivo imaginar-me sem a minha irmã, pois, como acabei de contar em traços muito largos, ela é já só a única pessoa que me viu de cabelos compridos e com caracóis. É uma referência e um farol. São assim estes irmãos já velhotes.