Estou cansado de discutir a situação nacional e a internacional. Causa-me enfado repetir o mesmo com palavras diferentes. Parece haver uma apatia sobre as guerras e sobre as intrigas políticas que derrubaram um governo, que leva a eleições gerais. Afigura-se-me que ninguém quer ver o óbvio no panorama nacional e internacional. Ninguém quer ver a incoerência e a mentira em que vivemos. Tudo isto afasta-me das teclas do meu velho computador.
Mas sinto a necessidade de comunicar, de dizer os pensamentos cruzados que me assaltam nos momentos de silêncio e sossego. Então, vou debruçar-me sobre mim e sobre esse interior fervilhante.
Terão os meus amigos paciência para me ler?
Ao mesmo tempo que o meu pai, nos meus sete anos, me impunha a prática da ginástica duas vezes por semana, a minha mãe, suavemente, encaminhava-me para a catequese, na igreja da freguesia dos Anjos, em Lisboa. A distância do templo ao Lisboa Ginásio Clube era e é pequeníssima. O trânsito e o movimento nas ruas eram incomparavelmente mais reduzidos do que hoje. Assim, eu podia ir sozinho para uma e outra actividade sem correr perigo de espécie alguma.
Deste modo, e porque fui para o Instituto dos Pupilos do Exército onde a actividade física era intensa, e, depois, aos vinte anos, para a Academia Militar donde saí oficial em 1965, posso dizer que vivi, na prática, toda a minha adolescência e começo da idade adulta fora de casa, longe da minha residência familiar, rodeado de companheiros de diferentes origens sociais, com experiências juvenis distintas e de áreas geográficas que iam das povoações mais distantes do norte de Portugal até Timor.
Quando entrei nos Pupilos do Exército (por minha livre vontade, mas com agrado do meu pai e tristeza da minha mãe) era um rapazinho com treze anos que ficou confuso no meio de outros quatrocentos; faltavam as chamadas de atenção do meu progenitor e as suaves admoestações da minha mãe. Dentro do internato tudo era hierarquizado, por alunos mais velhos: um comandante de secção, um comandante de pelotão, outro de companhia, um comandante de batalhão, um chefe de camarata, um chefe de mesa e, como não podia deixar de ser, um chefe de turma. Depois, havia os oficiais do Exército que, começando no director, acabavam nos comandantes de companhia, passando pelos professores (quase todos militares). Devo acrescentar que, sem autoridade imediata sobre os alunos, havia também os sargentos, que, contudo, impunham a ordem e o respeito.
Sem ter grande consciência disso, o que me faltavam eram apoios para a construção interior que se devia estribar em valores de toda a ordem para além daqueles que já faziam apanágio do Instituto. Talvez, até, seja conveniente debruçar-me sobre estes últimos para conseguir perceber, neste exercício de introspecção, os outros.
Numa Casa como aquela, naturalmente, a disciplina era a pedra angular de tudo o resto, mas não faltavam o sentido de camaradagem, de solidariedade, de emulação, de entreajuda, de cumplicidade (no bom e no mau) e, como resultado do conjunto, um certo tipo de fraternidade. Unia-nos a farda, a igualdade de tratamento, pois não havia privilégios especiais para ninguém, o frio, o calor, o estudo, as marchas, as cerimónias e, até, uma certa concorrência com o Colégio Militar onde os alunos eram, na maioria, filhos de oficiais. Mas isto chegava para estruturar a construção interior? Evidentemente que não. Cada um de nós tinha de se agarrar a convicções lidas em livros, aprendidas com exemplos ou recebidas na casa dos pais antes de ingressar nos Pupilos. Foi por esta última via que enveredei.
Ao fim de uma ou duas semanas descobri que, após o jantar, a capela dos Castros (lá repousam os restos mortais de D. João de Castro e de sua família), nos claustros, estava aberta até à hora de recolher (vinte e duas horas). Havia bancos de madeira onde nos podíamos sentar ou ajoelhar a orar. Estava-se em perfeito silêncio e o barulho que se ouvia era o dos alunos que entravam e saíam do pequeno templo. Escolhi o meu lugar lá à frente e passei a ir todos os dias uma boa meia-hora para ali rezar, mas também pensar em mim, nos meus desejos nos meus sonhos de futuro, nos meus anseios, nas minhas dúvidas. Era o meu oásis dentro da confusão, dentro do pensar pouco e agir muito.
Por mero acaso, numa exígua biblioteca que existia por trás do altar, num espaço bastante amplo, descobri a hagiografia de São João de Deus e, nos tempos livres, li-a de uma ponta a outra. Aquele homem nascido quase no final do século XV, em Montemor-o-Novo, cedo foi para Espanha e, de entre outros ofícios, foi militar, servindo em várias guerras. Convertido ao catolicismo já na idade adulta, depois de ter passado por um hospício, fundou, aos quarenta e quatro anos, em Granada, um hospital para portadores de doenças incuráveis e contagiosas, passando a tratá-los, com as suas mãos. Sobreviveu mais onze anos, dando provas de grande espírito de sacrifício e de muita caridade.
Esta leitura impressionou-me tanto que nela está a origem da minha religiosidade juvenil e adolescente, podendo dizer que foi através de São João de Deus que entrevi os pilares que me faltavam continuar a construir para dar por completo a minha estruturação: ter esperança nas minhas capacidades; ser suficientemente hábil para perceber que a caridade ultrapassa em muito a esmola que se dá, pois é preciso ser capaz de sentir como nossas as dores e os sofrimentos dos outros; entender que o perdão dos pecados nada vale se não houver antes arrependimento e uma forte vontade de emenda.
Foi assim que cheguei à Academia Militar e entrei na idade adulta. Mas lá, ao mesmo tempo que interiorizei novos modos de estar na vida e novos pilares necessários à condição de oficial (coragem, abnegação, amor pátrio, liderança, assunção de responsabilidades e capacidade de decisão) fui-me afastando da fé católica que me havia animado. Foi um processo lento que situo temporalmente no meu segundo ano de oficial da Força Aérea. A guerra, Moçambique e as novas responsabilidades contribuíram em boa parte para a revisão do catolicismo.
Passaram-se muitos anos até começar a laborar, de novo, na questão religiosa. Nesse ínterim consegui a realização de sonhos que, mais ou menos, sempre andaram a par do meu desejo de ser militar. Foi por causa dessas realizações que aprendi a reflectir de modo diverso daquele que nos é ensinado nas catequeses e conclui que, afinal, o deus dos católicos, tal como todos os outros deuses de todas as religiões, é um prisioneiro dos homens que o inventaram, porque nem o universo pode ser um acaso físico-químico, nem pode ser fruto de tantos deuses quantas as religiões existentes.
Se Deus criou o universo e os homens e deu a estes a possibilidade de escolherem entre o bem e o mal, é ilógico que os condene pelos erros e os enalteça pelas virtudes; Deus colocou na Terra (será que também noutros planetas?) os seres humanos para que disfrutem da Sua criação, assim, terá de ser um Deus de compreensão, de amor, de compaixão e de aceitação, sem infernos, nem purgatórios, sem diabos, sem penas eternas e sem castigos horrendos. Terá de ser um Deus risonho, bem-disposto e acolhedor. Quanto ao resto, não podemos nem devemos extrair ou inventar outras conclusões. Orar a esse Deus é, afinal, rezar ao universo que está dentro de nós e fora de nós. Somos livres de fazer o que nos aprouver; a justiça dos homens julgar-nos-á, porque a do Deus universal acolher-nos-á com amor e compreensão.