Felizmente já levo oitenta e dois anos de vida e uma memória razoável. Não esqueci o Portugal de antes de 1974 e de como se vivia entre as classes pobres. Talvez um esquisso seja conveniente para recordar.
Em 1973 e antes, nos grandes latifúndios do Alentejo, quem fazia a monda do trigo, a ceifa, a apanha da azeitona e todos os trabalhos do campo eram os alentejanos, dos mais novos aos mais velhos, eles e elas. Era gente pobre que ganhava para comer no dia-a-dia. Era gente que nunca tinha provado um bife de vaca e raras vezes havia sabido o que era um bolo doce ou um chocolate e, muito menos um gelado. Gente que sabia ler mal e pouco ou nada, que vivia em tugúrios, que poucas vezes tinha ido a um médico.
Nas Beiras, em Trás-os-Montes, no Minho, no Ribatejo ou no Algarve, nas aldeias e vilas, era pouco diferente: os trabalhos braçais, pesados e mal pagos entregavam-se ao bom povo português, que andava de cerviz baixa a mando dos mais poderosos e ricos. Um soldado da GNR ou um guarda de polícia era uma autoridade, geralmente oriunda dos meios pobres que, vestida a farda e investido do poder, reprimia sem dó nem piedade os da sua origem. Ai de quem pusesse em causa as ordens do patrão; esperava-o o calabouço, o tribunal e a pesada acusação de ser comunista. Tudo o que se tinha ou não tinha devia-se à vontade de Deus Nosso Senhor e cada uma tinha de carregar com a sua cruz: uns gozando a vida sem preocupações e outros morrendo de cansaço e desalento.
Ser empregado de escritório era um excelente trabalho, aliás, qualquer trabalho, que não tivesse de exercer força braçal, era óptimo, ainda que mal pago.
Poucos, muito poucos, se atreviam a refilar, a dizer mal do governo, dos ministros, dos chefes, dos patrões, porque a força da autoridade do Estado era chamada para colocar ordem onde houvesse desordem. O poder não se discutia. Algumas vezes, embora raras, houve movimentos de massas contra a ordem imposta, mas muitos pagaram elevados preços por tais desafios: a prisão, a demissão de empregos, a constante perseguição. Alguns, e não foram poucos, desistiram de Portugal e emigraram para países onde podiam gozar de liberdade ou, pelo menos, de alguma liberdade; foram para França, para o Brasil e raros para os EUA e para Inglaterra.
Os únicos imigrantes que por cá existiam ‒ e começaram a chegar em quantidade ainda no século XIX ‒ eram os galegos, porque a Galiza era uma região de Espanha sobrepovoada e pobre, donde alguns, os que conseguiam arranjar uns cobres para pagar a viagem, demandavam as Américas e, quem não tinha mais do que braços e pernas para alugar (no dizer de Manuel Alegre) demandava o Minho e, depois, as grandes cidades em busca de qualquer trabalho, nem que fosse carregar mobílias às costas para fazer mudanças ou entregar em mão uma carta urgente; os galegos estavam cá para isso. Daí o dito popular, «trabalhar que nem um galego».
Pois bem, percebido, a traço bastante largo, o que era a vida neste país antes de 1974, há que olhar para o que é hoje.
São poucos ou nenhuns os jovens dispostos a, despois da escolaridade obrigatória, pegarem no cabo de uma enxada e disporem-se a cavar a terra para dela retirar alimento, ou apanhar azeitona como se fazia há sessenta anos. Procuram empregos considerados menos servis; elas já não estão para ser serviçais domésticas ‒ criadas, como então eram chamadas ‒, preferem o balcão de um supermercado ou cabeleireiros ou manicures, esteticistas, ajudantes de farmácia, enfim, outros trabalhos menos estigmatizantes. Portugal “europeizou-se”, saiu do poço do Terceiro Mundo onde esbracejou nos anos da grande industrialização e passou a ser procurado por gente das antigas colónias e por brasileiros, tentando a sorte de aqui encontrarem a plataforma que os poderia lançar para os grandes mercados de trabalho da Europa. Mas, agora, está a encher-se de gente mais pobre, que vem do Oriente em busca de melhor condição de vida.
Os “novos ricos” desta República de quase miséria, esquecendo que há cinquenta anos estavam no cu da Europa e por aqui só havia merda disposta a fazer os trabalhos mais humildes e grosseiros da França, da Alemanha, do Luxemburgo, reclamam contra a entrada daqueles que os tiram da enxada, da foice ou da posição de vergados perante o peso do trabalho; reclamam contra esta imigração de desgraçados que por cá quase nunca são respeitados como seres humanos.
Para esses, na minha opinião, o degredo com grilhetas nas pernas, é coisa pouca. Contudo, podem esperar ‒ eles e nós ‒ pois tempos virão em que, do Oriente, nos chegará a vingança da exploração imposta por um continente, o europeu, que já nada tendo como riqueza, se dedicou a explorar as riquezas alheias.