Se procurarmos saber o número de conflitos militares que, neste momento, estão a acontecer em toda a Terra, ficamos abismados pois só nos damos conta de dois ou três, sendo que para nós (aqui em Portugal e na Europa e talvez nos EUA e no Canadá) o mais destacado é a guerra entra a Rússia e a Ucrânia; o resto passa-nos ao lado.
Este fenómeno ocorre por uma razão muito simples: olhamos para o mundo com os olhos do eurocentrismo ou, se quisermos ser mais rigorosos, com os do “ocidentalismo”, o mesmo é dizer, segundo aquilo que nos fomos habituando a chamar “ocidente” ou “otanismo” (palavra que acabo de inventar para dizer que devemos à OTAN ou NATO, à sua propaganda e à sua forma de conduzir a estratégia global desde 1948). Nós, aqui na Europa Ocidental e as elites intelectuais nos EUA e no Canadá, fomos moldando a nossa forma de olhar a estratégia de segurança e defesa das nossas nações e Estados segundo os “receios” gerados, na sequência da 2.ª Guerra Mundial, por Washington e Londres numa articulação de medo do que poderia advir da vontade despótica de Estaline e da URSS, nascendo assim a Guerra Fria, que deu oportunidade a Washington e ao Pentágono de se assumirem como os orientadores da paz e da segurança no mundo, enquanto a URSS e os EUA semeavam “guerras quentes” na periferia deste centro que, geograficamente, se delimitava, a Ocidente, pelo território americano e, a Oriente, pelas fronteiras da Eurásia, sem incluir a China que, em todos os sentidos, ainda estava à procura do seu lugar no mundo.
A queda do muro de Berlim e a implosão da URSS modificaram completamente o quadro estratégico anterior, porque o medo da expansão do comunismo quase desapareceu (restavam pequenos focos numa China que ainda não imperava no Oriente, em Cuba e pouco mais). A propaganda, sobre a qual se montara o medo da URSS, ao desaparecer deixou mais à vista que as razões estratégicas da OTAN não tinham fundamento no que se dizia, mas sim nas velhas teses geoestratégicas que sempre opuseram o chamado poder marítimo ao poder terrestre devidas a teóricos que antecederam a revolução russa de 1917 ou com ela chegaram a conviver. Deste modo, a potência marítima ‒ indiscutivelmente os EUA ‒ mantiveram, como inimigo potencial, já não a URSS, que não existia, mas a Federação Russa, grande potência terrestre e rival como potência estratégica, também, por ser a herdeira natural do arsenal nuclear daquela.
Esta foi a motivação que terá levado o Pentágono e os seus generais, a aconselharem a Casa Branca a, tão rápido quanto possível, atraírem para o seio da OTAN os antigos Estados satélites da URSS, reduzindo o espaço entre a “barbacã” e as “muralhas do castelo russo”, cuja torre de menagem se situa em Moscovo, no Kremlin (estou a falar segundo uma linguagem de defesa medieval). Ficou de fora a Ucrânia por causa da sua instabilidade política e proximidade cultural à Rússia, contudo, Moscovo reivindicou para si a península da Crimeia, pois, estrategicamente, lhe era fundamental para exercer algum comandamento sobre o Mar Negro a partir de Sebastopol, sua grande base naval.
Ora, este cerco, que se iniciou logo a seguir à implosão da URSS, atingiu o seu máximo quando a Ucrânia manifestou o desejo de entrar na OTAN, facto que, do ponto de vista russo, representava já um avanço muito para além da “barbacã”, ficando o potencial inimigo mesmo junto à “muralha” do “castelo” russo, o que era de todo inaceitável para o Kremlin. A invasão subsequente da Ucrânia, além de preventiva, foi uma resposta ao Pentágono. Todavia, neste ano que decorreu, face à estratégia continuada da Casa Branca e da Europa, principalmente, através da aplicação de sanções, levou Moscovo a mudar radicalmente a sua própria estratégia ao nível global e, aquilo que não se ouviu nos primeiros meses de guerra, é agora explanado por estrategistas e comentadores bem informados intelectualmente neutros: o mundo, depois desta guerra, vai ficar diferente nas suas divisões de forças e de importâncias económicas, pois dividir-se-á em duas ou três grandes áreas de influência estratégica, ficando, talvez, obsoletas as velhas teses geoestratégicas que regeram o pensamento ocidental nos séculos XIX, XX e começo do actual. A explicação é simples.
O chamado Ocidente desfaz-se para dar origem a um bloco europeu, mais frágil e dependente, mas mais autónomo dos EUA, estes perderão o estatuto mantido até agora de primeira potência mundial para serem a segunda, porque a primeira vai ser asiática/sulista, pois juntará a Rússia, a China, a Índia, a Coreia do Norte, a África do Sul e outros Estados sul-africanos e, se calhar, o Brasil que está à espera do momento próprio para se tornar um potência do circulo das de primeira grandeza.
Nesta nova organização, perderão os EUA e a Europa e ganharão a Rússia, a China e a Índia, levando por arrasto países africanos e asiáticos. A política económica e de defesa dos EUA terá de voltar-se para o Pacífico, relegando o Atlântico para um plano secundário. A Europa terá de se redefinir nas suas vocações e relacionamentos internacionais. O fim da Ucrânia vai arrastar ao fim de uma antiga ordem mundial para gerar uma nova delineada, segundo os traços que admiti anteriormente. Os planisférios vão passar a desenhar-se, tendo a Rússia e a China no centro e o Oriente será o continente Americano e o Ocidente a Europa e o Atlântico. Deixemos passar uma década, talvez duas.