Há tempos, no âmbito da Comissão Portuguesa de História Militar, o Tenente-General Mário de Oliveira Cardoso, antigo Presidente da Comissão Coordenadora da Evocação da 1.ª Guerra Mundial, proferiu uma conferência subordinada ao tema “Reflexões Sobre a Participação de Portugal na Grande Guerra”.
Antes de avançar tenho de recordar aos meus leitores que, nas Forças Armadas, existem dois métodos de nomeação para qualquer cargo: o da antiguidade no posto e o da escolha. Em abono da verdade, o mais comum é o primeiro. Deste modo, com aptidões ou sem elas, para o desempenho da missão avança sempre o mais moderno sem se olhar ao currículo… Não sabe, tem de aprender o mais rapidamente possível para ser capaz de estar à altura do lugar que vai ocupar. Este é um princípio implícito, desde há séculos, nas nossas Forças Armadas.
Pessoalmente, fui sempre contrário a este processo de nomeação, enquanto desempenhei funções de chefia na Força Aérea. Dou um exemplo.
Estive colocado na Academia da Força Aérea durante onze anos, tempo em que leccionei, entre outras disciplinas, a de História de Portugal. No Instituto de Altos Estudos da Força Aérea, a duzentos metros de distância, todos os anos, havia curso de formação de oficial general, dado a coronéis, e nele incluía-se um módulo de História de Portugal que era leccionado por um professor doutorado da Universidade de Lisboa ou de Coimbra a quem se pagava uma brutalidade por hora. Um licenciado não é um doutor, mas se esse licenciado leccionar a um nível de ensino superior, se calhar, tem competência para ensinar num curso de formação profissional militar, mesmo que seja frequentado por coronéis!
Como se vê, pelo menos noutros tempos, havia fortes pruridos em colocar no lugar certo um militar mais capaz, escolhido, em vez de se gastar dinheiro desnecessariamente.
Claro que, como já disse, o outro processo de nomeação é a escolha, mas, também, muitas vezes, ela não é feita em função do critério dos conhecimentos, mas de outros que ficam guardados no cofre de quem tem o poder de decidir.
Reconhecendo largas competências castrenses ao general Mário de Oliveira Cardoso, a verdade é que eu e muitos mais militares não fui capaz de descortinar a razão da escolha para ele presidir à Comissão Coordenadora da Evocação da 1.ª Guerra Mundial. Teve, naturalmente, de fazer como é hábito entre nós: desenrascar-se. Sem deslustre e com dignidade, conseguiu “levar a carta a Garcia”, coordenando, como era seu dever e obrigação.
Mas, pelo alongado tempo de duração do centenário (2014 a 2018), acabou por, ouvindo muitas conferências, colóquios, debates, lançamentos de livros, etc., apreender, muito por cima ‒ repito ‒ muito por cima, o que foi a problemática da participação de Portugal na Grande Guerra. E, assim, formou uma opinião assente nos “saberes” daqueles historiadores que, por qualquer motivo, mais lhe agradaram ou mais de próximo o influenciaram.
Passados que foram quase cinco anos sobre o fim das comemorações do centenário, ei-lo que aceita fazer uma conferência, que traduza a sua reflexão sobre a participação dos portugueses na Grande Guerra. É aqui que fez a má escolha! Poderia ter-se ficado pelo que foi o trabalho da Comissão, mas foi tentado a entrar, também, na polémica que divide, ainda, os historiadores: a da entrada na guerra!
Embora com toda a experiência do “curso intensivo” a que esteve sujeito durante a presidência da comissão; embora tentando distanciar-se das posições que geram a polémica, a verdade é que “se agarrou” a um dos historiadores que mais contestam a beligerância nacional e que, só por esse facto se afasta do conceito de História para se colocar no de juiz do passado. Julgar o passado não é fazer História; é, quanto muito, tomar posição no passado e distorcê-lo perante o presente e o futuro, porque, fazer História é, acima de tudo, EXPLICÁ-LO. Explicá-lo de modo a que seja compreensível, no presente, aquilo que determinou o ter sido como foi e não aquilo que deveria ser. É como se, em Medicina, um médico legista quisesse que o morto de enfarte do miocárdio tivesse morrido de apendicite, porque sofria do apêndice.
Quando o general Oliveira Cardoso se colou aos pontos de vista do Doutor António José Telo e os aceitou, sabendo que se trata de um dos mais críticos autores da beligerância nacional, tomou para si a argumentação daquele. E disse o que não era aconselhável que dissesse, exaltando o papel político de Sidónio Pais quer como figura pioneira do Estado Novo e da política corporativa quer como “anti-guerrista” que os factos e os documentos provam que foi.
Pena que tenha esquecido quem se esforçou por demonstrar, depois de muitos anos de pesquisa, que a beligerância foi, talvez, dos actos mais afirmativos de uma política de dignidade internacional praticados nos primeiros setenta e quatro anos do século XX, no nosso país.