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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.01.23

A Entrevista


Luís Alves de Fraga

 

António Costa deu uma entrevista exclusiva à RTP e falou. Falou como lhe é habitual: pôs optimismo onde há motivo para o ter, enrolou como tem por hábito enrolar e calou aquilo que habitualmente cala. Em suma, António Costa foi igual a si mesmo. Mas, então no que falhou António Costa?

 

Falhou-lhe no que tem falhado, desde o fim da “Geringonça”: sentido de liderança. Costa é, sem dúvida, um político de vários e muito aceitáveis recursos (duvido dos métodos), mas precisa do acicate ou de uma aliança exigente ou de uma boa oposição, porque, sem estes ingredientes, ele torna-se naquilo que é: um habilidoso nem sempre muito fiel à honestidade política (razão pela qual é um político com algum talento, mais do que aqueles que, antes dele, nos governaram).

Costa, ontem, mais uma vez, deu provas da sua falta de capacidade de liderança, de uma mão pesada, porque um verdadeiro líder tem de ter a mão pesada. Podia ter aproveitado a entrevista para lançar aos quatro ventos avisos aos seus colaboradores presentes e futuros, mas não o fez.

 

Não o fez, porque, ou tem telhados de vidro e receia que lhos partam ou tem falta de genica para se impor. Com uma maioria parlamentar, ele não tem de exigir que os portugueses aguentem e se habituem, mas, pelo contrário, tem ou deve exigir que quem com ele colabora o faça de maneira a não o “enterrar”. Possui legitimidade para isso.

Tendo por hábito passar as culpas para outros, não sabe ou não quer ou não é capaz de chamar a si as responsabilidades, responsabilizando quem prevarica e devia não o fazer.

Parece ter medo que os seus mais seguros e íntimos colaboradores se possam revoltar e, fazendo contravapor, levem o país a ter maus resultados que o coloquem a ele em péssima condição.

Resumindo, volto à afirmação inicial: não sabe liderar. Pode saber escolher bons colaboradores cheios de telhados de vidro, mas não sabe liderar. Pode escolher gente competente, mas não sabe pôr travão ao nepotismo, logo, não sabe liderar.

Liderar é incutir respeito, admiração e vontade de colaboração naqueles que trabalham connosco. Liderar não é só chefiar ou meter medo aos subordinados; é ir mais longe. É levar os liderados a reconhecerem espontaneamente as suas faltas e assumi-las por respeito ao líder. É saber exigir franqueza e honestidade; é induzir a sensação, nos liderados, de estarem a ser sempre escrutinados pelo líder.

António Costa está nos antípodas deste perfil, porque é como o pai babado e brando que, vendo os defeitos e as asneiras dos filhos, lhos desculpa e justifica continuamente, acabando por se tornar responsável pelos erros e disparates cometidos por eles.

 

António Costa não quer perceber que os casos e os casinhos que têm recheado os últimos tempos da sua governação são o pasto ideal para a oposição de direita lançar-lhe fogo e queimarem o trabalho feito por alguns bons ministros, nomeadamente o Mário Centeno. Ele tem de pegar nos casinhos e desmascará-los, condenando-os na praça pública, pois só assim se desliga deles. Não são a merda de trinta e seis perguntas que lhe sacodem o capote. Ele tem de ser capaz de dizer em público: “quem mijar fora do penico está tramado, porque dou cabo dele na praça pública”. É isto que ele tem de ser capaz de dizer. E isto é o contrário de dizer “habituem-se”!

Será que António Costa fez serviço militar? Não se lembrará do seu alferes que, na recruta, lhe exigia que ele “desse tudo” de si mesmo para fazer bem feito? Homem, se fez tropa só tem de seguir o exemplo do seu alferes e do seu capitão!

Era por isso que a tropa obrigatória fazia muito bem a muita gente!

António Costa, faça-se alferes do seu pelotão de recrutas…

30.01.23

1200


Luís Alves de Fraga

Foi em Agosto de 2005 que iniciei este blog. Estava em grande força a moda dos blogs. Não foi por estar na moda que o iniciei; foi porque era uma forma de tornar visível o que me ia na alma naquela altura. Foi por causa desta imensa vontade de comunicar que eu tenho desde sempre.

Anos mais tarde surgiu o Facebook e abandonei, desleixei, o blog para dar a primazia à novidade. Escrevi muito para o Face, mas, de vez em quando, lá vinha um artigo para aqui.

Nunca fui tipo de escrever pouco. Os meus textos no blog são longos (pelo menos, uma página A4). Não quero medir a minha necessidade de escrever pelo número de páginas, mas sim por aquilo que quero dizer.

Ontem escrevi o 1200.º artigo aqui neste espaço o que quer dizer que, em mais de 90%, escrevi à Volta de 2400 páginas.

É um repositório de que me orgulho e, por isso, quero partilhá-lo com os meus leitores habituais. São 17 anos e meio da minha vida. Valeu a pena.

Obrigado a todos os que lêem o que aqui deixo.

29.01.23

Não perguntem ao Francisco


Luís Alves de Fraga

 

A imensa polémica que está a gerar o altar/palanque junto ao rio Tejo, bem como todos os outros locais onde o Papa Francisco se vai dirigir à multidão de jovens (acreditam na vinda de meio milhão, pois eu, por mero palpite, atiro-me para os trezentos e cinquenta mil e… vamos com sorte) só resulta desta nossa maneira de ser: guardar o planeamento para o último momento de modo a que tudo possa ser feito de improviso e com derrapagens financeiras. Se há um ano ou dois, se tivesse levado a cabo o concurso para adjudicação da obra, conhecendo-se o respectivo projecto e caderno de encargos, nada disto acontecia, pois a discussão tinha tempo para ser feita. Deste modo, ficamos todos encostados à parede e seja o que o improviso quiser que seja em matéria de concursos, de adjudicações e, acima de tudo, de custos, porque alguém vai ganhar muito e muito bem para dar como concluída a obra na data em que deve estar pronta. Tudo isto se paga! Mas, nós, que somos ricos, não olhamos a “ninharias”. Planeamento é para os alemães, americanos, franceses, suecos e outros povos mendigos.

 

Este é o grande traço negro da nossa democracia. Tudo isto tem manha desde o princípio ao fim, pois a aceitação do facto consumado, perante uma inevitabilidade, obriga à aceitação daquilo que alguém pensou no silêncio do seu gabinete. Se de hoje amanhã as companhias de aviação se recusassem a aterrar no aeroporto de Lisboa, a sua localização e construção decidiam-se em meses e em um ou dois anos tínhamos aeroporto pronto, com imensas derrapagens financeiras e “pequenos” defeitos de construção que se iriam atamancando durante os próximos trinta anos. Somos assim!

Mas voltemos ao palanque e à visita do Papa.

 

Compreendo que, à semelhança do que aconteceu aquando da Expo 98, se queira recuperar o aterro sanitário junto ao rio Trancão, pois, tal como diz o povo, com uma só paulada matam-se dois coelhos. Compreendo. Não compreendo é aquela obra faraónica do palanque que vai ficar ali para um dia ser (se algum dia houver) aproveitado nem sei bem para quê.

Está claro que o Papa Francisco está a par de todas estas discussões e discórdias, mas como é seu dever, não se quer nem se vai meter em assuntos domésticos dos portugueses. De certeza que compreende tudo isto que aqui deixo escrito, porque é um homem que vive no mundo e, para o melhor ou para o pior, é argentino, com uma imensa carga de latinismo na cultura. Este latinismo que nos faz ser assim, em certas alturas em maior grau e noutras em menor.

Francisco lembra-me uma história que se contava de S. Luís de Gonzaga que, estando de conversa, no recreio, com os seus companheiros, um deles perguntou o que fariam se soubessem que o mundo acabava daí a um minuto. Todos deram respostas pias e só Luís respondeu que continuaria a brincar, porque estava de alma tranquila. Ora, para Francisco, conhecendo-lhe os hábitos, bastar-lhe-ia um altarzinho e uma cadeira de onde pudesse falar aos jovens e celebrar para eles a missa que, para os católicos é o supremo dos milagres. Os jovens vê-lo-ão através dos grandes ecrãs de televisão colocados no recinto.

Francisco só quer estar com os jovens e que os jovens saibam que ele está com eles. A singeleza da sua maneira de ocupar o lugar de S. Pedro é tão grande que se impressionará perante a obra feita para quem, ao ser eleito Papa, somente pediu que rezassem por ele.

 

Portugueses, não se atrevam a perguntar a Francisco seja o que for sobre as obras que estão a fazer para o receber, porque se sujeitam a ouvir o que não querem e o que vai deixar magoados e tristes os honestos, e irritados todos quantos desejam ganhar o indevido com a vinda do Papa a Lisboa.

27.01.23

Os comprimentos das idades


Luís Alves de Fraga

 

Há várias maneiras de medir as idades: pelo grau de felicidade de cada um, pelo número de anos de existência, pela dimensão da tristeza, pela riqueza que se acumulou, pela miséria que se sentiu, pelas dores físicas que se tiveram e tantas, mas mesmo outras tantas maneiras, mas a mais vulgar já a disse: a idade com que se deixa esta vida (haverá outras?).

Pois bem, é tomando como base essa, que hoje vou ficcionar sobre a relatividade da diferença das idades.

 

(10) Quando eu tinha dez anos um garoto de cinco anos era, aos meus olhos, quase um bebé. Eu já brincava com carrinhos, aos cowboys, aos polícias e ladrões, já corria na minha rua com os meus amigos da mesma idade, já tinha um arco de madeira para o guiar nas subidas e descidas, fazia as minhas batalhas com soldados de chumbo ou de papel, já frequentava a escola e estava a terminar a instrução primária e o Zezinho (chamemos-lhe assim) ainda mal se aguentava nas pernas e nem à rua podia ir sozinho. Entre nós havia uma diferença de idades abismal!

(15) Passados cinco anos o Zezinho já fazia tudo o que eu fazia na idade dele, mas eu, com quinze, começava a frequentar bailaricos nas associações das diferentes casas regionais, ensaiava as primeiras tentativas de namoros, ia ao cinema sozinho e, até podia sair à noite, desde que chegasse a casa às dez horas. Era um rapazinho a despontar e o Zezinho era um puto!

(20) Decorre mais um lustro e eu tenho vinte anos, já fui à inspecção para a tropa, já conclui todos os ciclos de estudos que antecedem a universidade onde já entrei e que frequento como segundanista e o Zezinho está, agora, a descobrir que, afinal, as miúdas servem para serem namoradas.

(25) Cinco anos passados o Zezinho entrou há dois anos na faculdade, faz a barba e discute assuntos sérios com os seus colegas, tem namorada fixa e permanente com quem espera casar e eu, bem eu já casei e até já tenho um filho; sou pai e chefe de família; no emprego tenho superiores, mas também tenho subordinados que procuram desempenhar-se das suas funções de modo a agradarem-me.

(30) Quando dou por isso, passados mais cinco anos, o Zezinho já não é Zezinho, mas senhor Dr. José, empregado, casado e pai de um filho, enquanto o meu começou o ciclo de crescimento, já sou chefe de um departamento, no meu emprego, despacho a correspondência com o administrador e sou chamado para dar a minha opinião aquando da tomada de decisões importantes. De vez em quando vou, à noite, encontrar-me com o José, na cafetaria do bairro, e falar de política e de como vai o mundo nestes trambolhões que se dão nas relações entre nações. O José pede-me conselhos que eu, com cautela lhe dou.

(35) Com 35 anos já tenho mais um filho e mudei de casa, tendo comprado um bom apartamento num bairro novo nos arredores mais próximos da cidade. Subi de categoria no emprego e tudo corre de vento em popa. O José, nestes cinco anos que passaram teve alguns azares: divorciou-se, mudou de casa e de emprego, mas, porque é empenhado, conseguiu, ultimamente, um bom aumento de ordenado. Parece-me que anda de namorico com uma colega.

(40) Ao fim de cinco anos dei pelo aparecimento dos primeiros cabelos brancos; as patilhas já estão da cor da prata e preciso de óculos para ler. Os miúdos estão crescidos e o mais velho começa a dar-me dores de cabeça nos estudos. Já pensa em namoriscar e nada disto é como no meu tempo. O José voltou a casar e, para consolidar a situação tem mais um filho. Como casais, damo-nos bem e vamos de quando em quando fazer fins-de-semana fora. As nossas mulheres adoram falar de trapos enquanto nós os dois discutimos política, embora o José “jogue” no mesmo “clube” que eu. Embora mais novo é sensato e faz julgamentos muito ponderados.

(45) No dia em que fiz quarenta e cinco anos o meu filho mais velho trouxe a namorada ao jantar para que a família a conhecesse. O rapaz faz-me velho com estas pressas de agora. O José com a mulher foram uns queridos, pois, sabendo como eu gosto de fotografia, ofereceram-me uma excelente máquina fotográfica; ele está muito bem no emprego e torna-se difícil descobrir-lhe os traços de desvairamento que tinha por volta dos quinze ou dezasseis anos quando foi ao meu casamento. Creio que já tem sociedade na empresa.

(50) Bolas, acabado de fazer cinquenta anos, lá porque tenho umas dores nos intestinos, tive de fazer a primeira colonoscopia e, para não ficar muito chateado, não sei se comece a pintar o cabelo de preto ou o deixe embranquecer por completo. O José queixava-se, há uns tempos, que tinha começado a usar óculos para ler… Eu, agora, é para ler e para ver à distância. Custou, mas, finalmente, o meu filho mais velho acabou o curso e arranjei-lhe o primeiro emprego; disse-me, na semana passada, que nem quer sair de casa, nem está a pensar casar, porque quer gozar a vida e a namorada também!

(55) Nestes últimos cinco anos cheguei a presidente do conselho de administração. É o topo. Daqui para a frente, só a reforma. A maldita da coluna está a dar cabo de mim por causa das hérnias. O pobre do meu amigo José foi operado, no ano passado, a uma. Ficou melhor, mas há ali qualquer coisa que não lhe permite que esteja sentado à secretária muitas horas seguidas. Comprámos, cada casal, a sua vivenda no Algarve, num condomínio fechado. Foi boa ideia, pois fazemos, a partir da Primavera, umas escapadinhas de fim-de-semana e, em Setembro, instalamo-nos, porque, em Agosto, vamos sempre uma semana para o estrangeiro. Os filhos já têm idade para tomarem conta uns dos outros e ficarem sozinhos. Ultimamente, comecei a notar que o José se cansa a subir escadas. Eu, não admira, mas ele!

(60) Fiz sessenta anos e apresentei a minha carta de demissão. Vou para a reforma. Comprámos uma quintinha na zona do Ribatejo e tenciono dedicar-me à agricultura. Já me falta a paciência para aturar os problemas na empresa. O José foi operado ao coração e anda um pouco afanado. Tive mais sorte, porque só me meteram dois stents para me alargarem duas artérias.

(65) Finalmente o meu filho mais velho resolveu montar casa com uma das muitas namoradas que já teve ‒ diz que são amizades coloridas… quem se tem visto negro tenho sido eu para o aturar. O José reformou-se e foi, definitivamente, para a vivenda do Algarve. Aquele gajo faz-me falta, preciso de gente da minha idade para conversar!

(75) Vendi a quinta, no ano em que fiz setenta e cinco primaveras e vim para o Algarve caturrar com o José. Passamos os dias a falar ou de política ou dos nossos tempos de juventude ou a das malditas dores que ora são em baixo ora em cima, mas não há dia nenhum que não chateiem. Quando chegamos a velhos é assim! Quem dirá que o José é mais novo do que eu?

 

Afinal, aquele puto, que nasceu quando eu tinha cinco anos, é, agora, da minha idade!

25.01.23

O Largo da Graça


Luís Alves de Fraga

 

Há muitos anos, quando eu era garoto, quem enfiasse pela Rua Damasceno Monteiro (Presidente da Câmara de Lisboa de 1854 a 1858), no seguimento da Rua Maria da Fonte, no Bairro Andrade, chegado ao topo, não tinha saída para o Largo da Graça. Dois prédio truncavam-na, obrigando a descer para o Largo das Olarias, na Mouraria, ou virando, em sentido contrário, para subir até ao jardim e miradouro da Senhora do Monte ou, finalmente, entrando na Travessa do Monte que desembocava na Rua da Graça, quase em frente da Rua do Sol à Graça, e era por aí que se conseguia alcançar o Largo, virando à direita.

 

Alguns “jovens” da minha idade recordam-se dos dois prédios que tapavam a saída da Damasceno Monteiro para o Largo, mas, desses, poucos serão os que lembram do que caracterizava um desses prédios… A memória e a curiosidade infantis pregam-nos partidas: a uns, dá-lhes para se recordarem de pessoas e cenas e, a outros, para se lembrarem de pormenores. Eu sou mais dos segundos!

Lembram-se os mais velhos de uma das únicas farmácias que, nos anos de 1940, faliu, em Lisboa? Pois é, foi a Pessoa, que existia na Travessa do Monte, quase em frente a uma casa de venda de cafés!

Mas, voltando aos prédios do Largo da Graça, alguns marcam pelo seu tipicismo. Um, lá ao fundo, quase junto da cabine do expedidor dos eléctricos, quando se está de frente para o quartel dos bombeiros, é dos mais altos e, simultaneamente, mais estreitos da velha Lisboa. Distingue-se por ser coberto de azulejos. Uma preciosidade.

O Largo da Graça era um mundo que já o escritor José Rodrigues Miguéis (1901-1980), bastante mais velho do que eu (podia ser meu pai) descrevia o seu barbeiro naquela artéria de Lisboa com um realismo que nos é fácil imaginá-lo.

 

Ali começavam e acabavam duas carreiras de carros eléctricos: a da Graça circulação, que dava a volta pela Rua das Escolas Gerais, descia à Sé, Rua da Conceição virava à Rua da Prata, vinha à Praça da Figueira, Rua da Palma, Anjos, Bairro Andrade, Angelina Vidal e chegava ao ponto de partida, e outra que, fazendo o mesmo percurso até à Rua da Conceição, subia a Calçada de S. Francisco, passava pelo Chiado, descia a Calçado do Combro e, correndo perto da Assembleia Nacional (hoje da República), subia a Calçada da Estrela e retornava, invertendo a marcha até à Graça. Qualquer das duas linhas era bastante frequentada, embora, da Graça se chegasse a pé, rapidamente ao Largo Martin Moniz. O contrário era mais difícil, por ser tudo a subir.

 

Pois, mas ainda não falei do pormenor dos dois prédios que impediam a Rua Damasceno Monteiro de chegar ao Largo da Graça.

É simples. Eu era um puto que gostava de meter o nariz no átrio do Royal Cine, para ver os “cartazes” (fotografias dos filmes que estavam em exibição) … (podia, no mesmo dia, passar pela sala de espectáculos, que duas vezes ia ver as fotografias expostas). Coisas que alimentavam a minha curiosidade e imaginação.

Pois bem, num dos prédios, que tinha um “hall” de entrada amplo, trabalhava, no rés-do-chão, um fotógrafo que, aproveitando a espaçosa entrada no edifício, tinha expostas, em vitrines fechadas, as melhores fotografias que ele julgava ter feito e que variavam de tempos a tempos. Claro, depois do átrio do cinema, o meu melhor espectáculo, era ir coscuvilhar as fotografias, escolhendo, de mim para mim, as caras e poses das miúdas mais giras que ele mostrava para exibir as suas artes. Nunca lá tirei uma fotografia, mas vi todas as que o fotógrafo apresentava.

 

Quando derrubaram os prédios, senti a falta da exposição, exactamente da mesma maneira que senti quando o Royal Cine foi vendido para dele fazerem ‒ crime de lesa traição à cultura de um bairro de Lisboa ‒ um supermercado. Meus Deus, um supermercado onde antes estava uma sala de cinema com madeiras exóticas e pura arte arquitectónica! Já ninguém sabia que foi ali que se exibiu o primeiro filme sonoro em Portugal!

 

O meu Largo da Graça, agora não é meu, é de gente que abastarda o que teve origens legítimas e verdadeiras.

24.01.23

“A Vizinha do Lado” e “Mata Hari”


Luís Alves de Fraga

 

Há dois ou três dias tive oportunidade de ver na televisão dois filmes que em nada parecem ligar-se, mas que, afinal, bem meditadas as cenas há uma conexão fantástica, à qual não quero fugir e dar dela conta aos meus leitores.

 

André Brun (1881-1926) foi um militar e humorista português que se dedicou à escrita de contos e crónicas, de livros e peças teatrais. Uma das peças que tem mais renome é “A Vizinha do Lado”, que foi adaptada para o cinema, em 1945. Foi essa versão que eu revi pela enésima vez. E, quase de seguida, o filme mais ou menos biográfico “Mata Hari”.

No primeiro, trata-se de uma história de costumes que, o filme, se situa em Lisboa pelo início dos anos de 1920, embora a peça tenha sido escrita no ano de 1913. É uma comédia que se passa no mesmo piso de um prédio das avenidas “novas”, perpendiculares à avenida da Liberdade. Num dos lados vive um jovem autor de revistas teatrais, solteiro, de boa figura, com a sua amante e, no outro uma senhora, de meia idade, proveniente de uma pequena ou média burguesia urbana, solteira que se faz acompanhar de uma afilhada, jovem, sonhadora, com uma educação que se presume esmerada e mais uma criada de servir.

 

O jovem autor de revistas é de Famalicão e veio para Lisboa estudar medicina, faculdade que deixou de frequentar quando percebeu que a vida nocturna era muito mais atractiva, continuando, no entanto, a esportular à família a mesada costumeira com a desculpa do preço dos livros e da vida, que estava cara.

Veio de lá de cima, em caminho-de-ferro, um tio, solteirão, professor de moral, no liceu de Famalicão, que já não vinha à capital desde 1880, para tirar a limpo os progressos do sobrinho.

No transporte público, já em Lisboa, o tio que era maroto, tenta conquistar, á maneira da época, a amante do sobrinho, acabando por lhe entregar um cartão de visita com uma única interrogação: «Combinado?» Tendo-a seguido, depois, a pé, na esperança de ver satisfeitos os seus desejos libidinosos.

 

Todo o filme, tal como a peça, vai passar-se à volta dos ciúmes que a jovem companheira do suposto estudante de medicina tem da vizinha do lado, que toca piano sem grande vocação, acabando, tal como seria de esperar, por a amante sair de casa, deixando o caminho livre à jovem pianista, afilhada da vizinha solteirona, que, afinal havia sido namorada, em 1880, do tio do suposto estudante de medicina. Ambos voltam, romanticamente, a enamorar-se e tudo acaba, aparentemente em bem.

 

Perguntar-se-á o leitor qual a ligação ao filme da célebre espia fuzilada pelos franceses. Ora, é sobre isso que se desenvolve a minha comparação.

Com efeito, Mata Hari, a bailarina e cortesã, no filme, mostra, com bastante soma de pormenores, a facilidade como se deixava enredar pelos cavalheiros, que previamente seleccionava, sabendo ou prevendo as prendas que iria receber ou as contas que iriam ser pagas. Claro que bastava a troca de meia dúzia de frases ou, até, um simples olhar para todas as combinações estarem feitas no futuro próximo.

 

Eram assim os “engates” do começo do século XX, com toda a carga de sofisticação herdada do final dos anos da centúria anterior. Havia um saber fazer as coisas, que sempre se fizeram, sem ter de mostrar explicitamente e de modo desabrido e descarado, as intenções. É essa mesma subtileza que o tio do autor de teatro de revista, vindo de Famalicão, usou na tentativa de conquistar a amante do sobrinho, que não trazendo na testa nenhum cartaz a anunciar a sua “facilidade” teve, no transporte público, um comportamento que o velho moralista percebeu de imediato a abertura para o avanço e lhe deu azo para lhe entregar, se calhar com discrição, o cartão de visita onde estava tudo implícito. Mata Hari e a atriz amante do embuste de médico eram iguais e os comportamentos em quase nada se diferençavam, talvez somente na paixão que a última nutria pelo jovem autor de peças teatrais. Quem sabe quais foram as verdadeiras paixões de espia alemã fuzilada pelos franceses durante a Grande Guerra?

21.01.23

Os nossos partidos no parlamento


Luís Alves de Fraga

 

Inspirei-me para a escrita deste texto na audição de uma entrevista da historiadora Raquel Varela. É ela que me leva a escrever o que se segue, porque muito do que digo foi dito por ela, com quem concordo.

Raquel Varela debate-se pela reposição do termo burguesia em vez de “capitalistas” e “classe média”, porque na burguesia há capitalistas e capitalismo e, digo eu, há tiques que as classes médias copiam dos capitalistas, tornando-as burguesas.

 

Se olharmos para o nosso parlamento temos uma imensa mancha de partidos burgueses e só um pequeno espaço para ser ocupado pelos partidos que representam o proletariado (palavra que sucessiva e lentamente foi substituída por trabalhador… e eu que, ao levantar-me, de manhã, depois de fazer o essencial para estar vivo, venho “trabalhar” para o computador, escrevendo o que vos deixo quase todos os dias, não sou nem proletário, nem trabalhador, sou um reformado que sente necessidade de comunicar o que pensa, sou um burguês diletante).

 

Mas onde começa a mancha burguesa no parlamento?

Sem sombra de dúvida, na extrema-direita, no Chega (CH). Podem chamar-lhe populista, fascizante, xenófobo, mas, tudo isso e muito mais, faz parte de uma certa forma burguesa e perigosa de estar na vida. Perigosa, especialmente para quem não comungar dos mesmos princípios do Chega.

Depois, vem a Iniciativa Liberal (IL), que traduz, de forma inequívoca, o pensamento da burguesia mais identificada com a liberdade e o individualismo dos liberais do século XIX, ainda que se maquilhe com os “cremes” novos do século XXI. Sem sombra de dúvida, são eles quem advoga que, a liberdade individual acaba onde começa a liberdade do outro, assim, procuram estender a sua liberdade até limitar a liberdade alheia a pouco mais do que à obrigação de trabalhar.

E vem, de seguida, o Partido Social Democrata (PSD), que nasceu para dar guarida aos salazaristas envergonhados ‒ os sem vergonha estavam no CDS ‒ e se propôs, ao longo dos anos, a fazer de Portugal várias coisas desde socialista a social-democrata e neoliberal; é um partido que, talvez mais do que nenhum outro, se “descolora” consoante a corrente que apoia o líder de momento. É um dos partidos mais burgueses do leque parlamentar e, quanto a mim, dos mais perigosos, porque se afirma, ultimamente, de centro direita, mas pode, em qualquer altura, guinar para um extremismo oportunista.

Ainda burguês, sem receios nenhuns, é o Partido Socialista (PS). Diz-se defensor da social-democracia, daquela que existe nalguns Estados do Norte da Europa, mas é uma pura intrujice, pois a social-democracia só é viável em Estados onde a riqueza produtiva seja muito grande e os lucros muito abundantes para, por via fiscal, se ir redistribuir esses lucros sob a forma equitativa de benefícios sociais à população, logo, aos proletários também. Assim, o PS nem chega a ser um partido operário nem trabalhista; é claramente um partido burguês com vagas preocupações sociais.

O partido que se segue é o das Pessoas e da Natureza (PAN), que, dizendo-se, ecologista é uma variante vocacionada e bem orientada do liberalismo comum à IL e ao PSD. Aliás, se há alguma preocupação socializante neste agrupamento ela entremeia-se com pessoas e animais, manifestamente mais virada para os últimos.

Muito isolado está o partido Livre (L) que representa uma tentativa de um socialismo a rondar a descolagem da burguesia para se aproximar dos princípios proletários, mas, por força das circunstâncias, não tem espaço entre os eleitores, nem no país se compreende o discurso deste partido político.

 

Na ala, efectivamente, de esquerda está o Partido Comunista (PCP) que diz defender e lutar pelo proletariado (palavra que anda arredada do seu léxico), constituído, na sua cúpula, por uma elite de proletários que, por estarem completamente dedicados ao partido já não são, como diz Raquel Varela, nem operários nem proletários, porque, na verdade são funcionários intelectuais do partido. De certa maneira, são burgueses, tal como o foram Marx e Engels, porque a distância entre a opção de classe e a pertença à classe é imensa.

Do Bloco de Esquerda (BE) nem deveria falar, pois as diferentes correntes de pensamento são tantas que, sendo todas, burguesas se reclamam da defesa dos trabalhadores e dos proletários, mas com comportamentos muito pegados à burguesia. O pragmatismo do BE, na esquerda, é tanto que dilui qualquer ideário político que esteja por trás do agrupamento.

 

Do que escrevi, percebe-se que o nosso parlamento está, de um lado ao outro, cheio de burgueses que se batem por alcançar o poder executivo para darem corpo ao seu projecto, que, inevitavelmente, terá de ser burguês… muito, suficiente ou pouco burguês, mas sempre burguês. É que, saltando do parlamento para a rua, há uma imensa diferença entre o Portugal de há cinquenta anos e o de hoje.

Hoje, no nosso país ou há burgueses ou há pobres com aspirações ao limiar do estatuto de burguês. O mundo de hoje deseja ser burguês, com os requintes das várias gradações disso que chamo burguesia. Só que há uma burguesia ‒ a extremamente rica ‒ que quer esmagar todos os outros potenciais burgueses a uma situação de dependência que satisfaça aos mais ricos todos os desejos imaginados e por imaginar.

 

Voltando aos partidos, o que os separa e divide é a forma como tentam cativar o projecto burguês que há em cada eleitor para se alcandorarem ao poder e, depois, com uma vaga legitimidade, conduzirem esta barca a naufragar para os braços de quem a faz soçobrar de vez.

Estarei assim tão enganado?

17.01.23

36 noves fora, nada!


Luís Alves de Fraga

 

O déficit orçamental aceite em Bruxelas tem um número, 3% do PIB, e a honestidade tem, em Lisboa, outro: 36.

São 36 as perguntas que servem para fazer passar no crivo da honestidade os seleccionados para ministros ou secretários de Estado. Mas, fazendo a prova dos 9, temos que 3 mais 6 dá 9, logo, excluindo-o, fica nada. E fica nada, porque é preciso saber desde quando um inquérito respondido pelo próprio pode dar um resultado fiável e confiável?

O mais vigarista dos vigaristas de qualquer estabelecimento penal português, quiçá do mundo, respondendo a um inquérito, vira o mais santo dos homens, daqueles que o estatuário do Padre António Vieira punha nos altares. Mas disso não restem dúvidas!

 

Um vigarista, um corrupto, é sempre vigarista e corrupto, pela simples razão de não possuir uma boa relação com a verdade. Assim, por mais testes que lhe façam ele encontra sempre uma explicação para responder de certa maneira e não da forma verdadeira.

O teste inventado pelo Governo só serve para dar deste a mais clara noção de parvoíce que se possa imaginar. Todos os que foram afastados até agora entraram no Governo, porque este é tanso e néscio como o mais tanso e néscio dos idiotas da nossa praça, pois se o não fosse não paria as 36 perguntas que levam aos noves fora, nada!

O Governo parece-me uma criança que acredita em fadas, duendes e no Pai Natal.

Bolas, não é preciso procurar muito… Ponham os olhos no Jo Berardo. Por acaso, nunca o convidaram para ministro, mas se convidassem ele ria-se-lhes na cara e no papel com as 36 perguntas! Ria-se e seria ministro até levar o país à bancarrota, desde que ele não fosse proprietário de nada e usufruísse das vantagens de ser.

O teste é uma papalvice ou areia para nos ser atirada aos olhos e aos olhos do Presidente. Será que pela cabeça dos inteligentes ministros não passou, mesmo que “supersonicamente”, a ideia de mandar investigar os passados dos possíveis candidatos a ministros e subsecretários? Ou a abertura da porta da investigação representa também um perigo para os que estão sentados nas cadeiras do poder?

Às 36 perguntas qualquer gabinete de investigação privado ou público (é que se o SIS ou a Judiciária não servem para isto, então acabe-se com eles, porque não servem para nada) em dois ou três dias responde com mais verdade do que o candidato. É só uma questão de reestruturação. Mas reestruturar parece ser um vocábulo que não cabe na boca do Governo.

O teste dos 36 é mais eficiente para fazer rir os governos da União Europeia, para fazer sorrir os líderes políticos mundiais e provar que Portugal é um excelente país onde a “Cosa Nostra” pode fazer os negócios que quiser…

São os brandos costumes ou a tolice hereditária?

16.01.23

Ponto da situação estratégica


Luís Alves de Fraga

 

As nossas televisões enchem-se de dizer que a Ucrânia está a oferecer resistência terrível aos russos em determinadas zonas da frente, levando-nos a tomar a parte pelo todo… propaganda pura, que se repercute desde Kiev até aos confins do planeta!

Recebendo armamento pesado e já marcadamente ofensivo, a Ucrânia luta em alguns pontos da vastíssima frente, com denodo, mas sem que as pontuais vitórias alcançadas alterem em nada a grande estratégia definida tanto por si mesma como pela Rússia. Estamos, pura e simplesmente, a assistir a confrontos de desgaste onde o movimento e o choque foram substituídos e suplantados pelo poder de fogo. Estamos perante operações flageladoras e desgastantes.

 

Uma diferença poderá ocorrer para Moscovo fazer vergar Kiev: um ataque a Norte, ou seja a abertura de uma nova frente, conduzido sem disfarces pela Bielorrússia. Isso sim, altera toda a estratégia e volta ao desenho inicial, pondo em perigo o Oeste da Ucrânia e a sua capital. Será como que o começar a abrir uma tenaz que vai esmagar o que estiver entre os seus dois braços. Mas será a Rússia capaz dessa manobra? Que reacção poderão ter a Europa e os EUA?

O elemento que mais está a começar a pesar na balança da Ucrânia é o da falta de efectivos mobilizáveis, pois sendo a sua população muito inferior à da Rússia, Moscovo pode dar-se ao luxo de deixar morrer no campo de batalha muitos mais homens do que aqueles de que dispõe Kiev e o desgaste ser-lhe indiferente (do ponto de vista militar), porque joga com a certeza da superioridade. É evidente que, no plano político, se trata de um mau caminho para Putin, devido à consumição do que lhe resta de capital de confiança junto da população russa.

 

Temos de olhar, também, para os efeitos “colaterais” desta guerra, em especial sobre a Europa e um dos que mais nos aflige é, sem sombra de dúvida, o da inflação brutal em consequência do alinhamento nas represálias contra a Rússia e o fornecimento de gás e de petróleo. Não são nem mísseis nem drones que nos tiram a vida, mas são carências e substituições que se têm de fazer. Elas são tão mais graves quanto o nível de vida na Europa era bom, desenvolvendo uma sociedade de abundância.

Estrategicamente, quanto mais se prolongarem as operações militares e não se levantarem os embargos e as sanções, mais sensível e distante a opinião pública irá ficando do conflito armado. E, naturalmente, por muito que se queira julgar o contrário, ela vai perdendo elã pela causa ucraniana sem que isso corresponda a uma maior simpatia pela russa. Um pensamento do tipo: «Os ucranianos que se lixem, porque por causa deles e da Rússia estamos todos a passar mal», é capaz de se instalar nas mentes do homem vulgar e da rua e, no plano estratégico, não está de todo errado, pois, aquela ideia que se tinha se Moscovo declarasse uma guerra, está a esboroar-se perante a resistência de um só país. Imagine-se se as operações envolvessem todos os Estados da OTAN.

Isto leva-nos ao ponto inicial da propaganda contra a Rússia quando o conflito começou: todos os europeus ‒ e, mais espantoso ainda, inclusive a Suécia ‒ temiam a invasão sucessiva e sem travagem dos exércitos às ordens de Moscovo. Eu afirmei, após as primeiras semanas de operações, que a Rússia, era um tigre de papel, no plano das chamadas forças convencionais.

 

Rematando em jeito conclusivo, direi que Fevereiro, Março e Abril ditarão os termos da paz e do fim da guerra em função da movimentação das forças russas no teatro de operações, já que a Ucrânia só pontualmente poderá passar à ofensiva e, mesmo essa, não terá carácter decisivo capaz de conduzir à mesa das negociações. Para que tal aconteça terá de se verificar uma declarada estabilização e consolidação da frente do exército russo. Nessa altura, Moscovo dará início às movimentações diplomáticas. Se isso não vier a acontecer, ficaremos em frente de uma guerra sem fim à vista, porque só a claudicação de toda a Ucrânia satisfará ao Kremlin e esse objectivo será negado pelos americanos a Moscovo, mesmo que à custa de um golpe de Estado que deponha Zelensky ou Putin para o substituir por alguém que seja mais “maleável”. O mundo e a Europa exigirão soluções dessa natureza. Este facto, por si só, aumenta a louca corrida de Zelensky nas exigências que faz ao Ocidente, pois, agora, trata-se da sua própria sobrevivência em paridade com a de Putin: os Presidentes ditadores e belicistas, para se manterem sentados nas suas cadeiras não podem desistir, e nem o russo nem o ucraniano quer sair deste impasse maculado, repudiado e esquecido pelo seu povo.

14.01.23

1956/57 – “Annus Horribillis


Luís Alves de Fraga

 

Entrei para o Instituto dos Pupilos do Exército em Outubro de 1954 para aquele que é agora o 6.º ano de escolaridade, que conclui sem grandes dificuldades, para além das que tive na disciplina que dava pelo nome de “Trabalhos Manuais”, coisa para a qual a Natureza não me dotou com capacidades especiais.

No ano lectivo seguinte fui, naturalmente, frequentar 7.º ano na vertente comercial. Sem ter de “marrar” muito, cheguei ao final do ano, em Junho de 1956, aprovado em todas as disciplinas com notas bastante aceitáveis, se tivermos em linha de conta que os professores por lá eram bastante somíticos nas classificações. Depois de umas longas e excelentes férias na ilha das Flores, eis que regresso para enfrentar o 8.º ano.

 

Primeira grande surpresa, havia três novos professores e todos civis e que nunca nos tinham dado aulas. Um, era antigo aluno e chamava-se Luizélio Saraiva, acabado de contratar nesse ano, ensinava Contabilidade, outro chamava-se António Duarte e ensinava Inglês e o terceiro, chamava-se Horácio Porto e leccionava Química.

Digamos, em abono da verdade, que o 8.º ano era, comparado com os anteriores, o mais complicado, porque misturava cadeiras do chamado ensino liceal e do comercial e, depois, porque o número de disciplinas aumentava de repente, ganhando uma “especialização” para a qual os anos anteriores não nos haviam preparado.

Se a saída de um velho major, também antigo aluno, o Guerra, “descomplicou” a cadeira de Contabilidade, que ele não sabia ensinar, e o Dr. Luzélio Saraiva foi exímio em tornar simples, o certo é que a disciplina de Química, que até aí não tinha nada de especial, transformou-se num pavor, por causa do Dr. Horácio Porto, que, sendo licenciado em Economia ou Finanças, vinha fazer “um gancho” ensinando uma matéria para a qual não estava devidamente preparado nem habilitado.

Mas caracterizemos este espécime.

 

Homem magro, de rosto afilado, muito branco, destacando-se-lhe umas quantas sardas, óculos de armação dourada, vestindo fato completo, que, com requintados cuidados, evitava sujar de pó de giz, sorriso cínico e gracejo fácil, escondia muito mal um imenso sadismo. Devia estar convencido que, por se tratar de internato e nós sermos, na maioria esmagadora, filhos de militares de baixa graduação, aquela instituição era um asilo para jovens desprotegidos. E, desse modo, tratou-nos, naquele seu segundo ano de permanência na Casa, como se fossemos lixo intelectual.

Explicava mal e de forma confusa a matéria que supostamente devia ensinar e, nos chamados “pontos escritos” (hoje são testes) um erro, por mínimo que fosse, baixava a classificação de forma estrondosa. Ter dez valores (em vinte), com aquele cavalheiro era conseguir meter uma lança em África. Excelentes eram os meus companheiros que tiravam entre onze e treze.

No acto da entrega dos pontos escritos esboçava um sorriso sacana e perguntava ao aluno: «Então, diga lá, a nota que espera ter?». A rapaziada ficava embasbacada, porque, se arriscava julgar ter merecido um onze, ele, com o tal sorriso, que estava a pedir uma belíssima paulada no alto da tola onde já lhe faltava o cabelo, cantarolava: «A minha vizinha tem grelinhos, tem grelinhos no quintal… Ora fique-se lá com seis valores que já não é muito mal». Entregava a folha com um jeito de quem queria dizer: «Julgavas que valias alguma coisa… Tu não vales nada!» E a turma era corrida a negativas quase do princípio ao fim!

As chamadas ao quadro eram bem piores, tal como noutra altura já tive oportunidade de aqui deixar contado. O aluno ficava de pé e ele sentado, com o sacaninha do sorriso nos lábios e dizia: «Já tem vinte valores, vamos lá ver o que é que vale!» e ia perguntando até ao momento em que o aluno, pálido, descoroçoado, estava preparado para aceitar tudo, ele dizia: «Bom, já tem cinco valores. Pode ir sentar-se».

O pior de tudo é que nada disto era feito por brincadeira! Tudo isto ficava lançado na caderneta e o filho da… mulher da fava rica dava, no final do trimestre a média destas pequenas torturas. E foi assim que de vinte e tal alunos, em primeira época, só aprovaram em todas as disciplinas quatro ou cinco, que passaram de imediato para o 9.º ano. Depois, na segunda época, reprovaram tantos que o curso se desmembrou, ficando no ano seguinte, se a memória não me falha, sete alunos. O resto atrasou a vida um ano, porque, tendo reprovado em Química e mais outra cadeira, se reprovava o ano inteiro.

 

Nunca mais esqueci esse tempo em que tive a sorte ‒ e foi sorte ‒ de aprovar o que me deu a possibilidade de ingressar nos últimos anos do curso, caso contrário hoje seria um civil com um outro qualquer rumo na vida.

Como se vê, guardo do Dr. Horácio Santos Porto a pior opinião, julgando, ao que sei, que ainda é vivo, nesta altura da minha e da vida dele, não teria, se o encontrasse, compaixão de espécie alguma em atirar-lhe em rosto o quanto o desprezei e desprezo como professor, já que os meus quarenta anos de docência me dão autoridade para avaliar aquilo que ele nunca soube ser naquele “annus horribillis”.

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