Os Amigos
Como entrei com treze anos para o Instituto dos Pupilos do Exército em regime de internato (único existente na altura), rapidamente aprendi a fazer amigos entre quatrocentos que nós éramos de idades que iam dos dez aos vinte anos. Mas isto de viver com tantos “irmãos” tinha o seu quê. É que existiam “ovelhas negras” e de outras cores, havendo que saber evitá-las sem mostrar constrangimento nem aborrecimento. Fui aprendendo que, afinal, o provérbio popular era muito verdadeiro: «amigos, amigos, negócios à parte» ou seja, todos nos devemos dar bem sempre que tal for possível, porque há aqueles a quem só damos os bons dias e pouco mais… mas são amigos! Isto estabeleceu-me a existência de escalas de amizade, que ainda mantenho. É sobre elas que vos venho falar hoje.
Não sendo, nos treze, catorze anos já nada do que havia sido em menino (irrequieto e traquinas) tornei-me, no virar da idade, num rapaz que gostava de falar de coisas “sérias” e, deste modo, escolhi, de entre os companheiros de turma, os mais atinados para iniciar, se fosse possível, uma amizade mais próxima do que a de simples condiscípulos. Foram três e formávamos um quadrado de troca de impressões e de comportamentos: um alegre e bem-disposto, mas preocupado com os estudos e desejoso de não fazer má figura, outro calado e mais introvertido, representando o verdadeiro “marrão” que não deseja ter más notas e o terceiro, despreocupado, mas inteligente e bom aluno. Era com estes que conversava sobre tudo e era com eles que tinha as brincadeiras próprias de quem já faz continências, está em formaturas e usa armas de verdade, razão pela qual nunca vi, nos Pupilos, brincar aos “cowboys” ou aos polícias e ladrões. Jogávamos ao berlinde, à bilharda e pouco mais, porque os meus amigos não eram de “futebóis”.
Depois, havia os graduados com quem me dava e que eram um pouco mais velhos do que eu, talvez mais três ou quatro anos. Com estes falava de assuntos “sérios”, que iam dos namoros e namoradas até algumas “entradas” pela política, mas tudo muito ligeiro comparado com os tempos de hoje. Recordo que um deles me chegou a dizer que eu não parecia ter “só” catorze anos quando ele tinha dezoito! Desses amigos ficou um para a vida (infelizmente já nos deixou).
Tinha amigos de infância, do meu bairro e amigos dos Pupilos, para além dos três que referi. Alargava-se o leque de amigos mas não o da intimidade, porque ser amigo, para mim, é entrar na conversa que vai para além das banalidades, é poder dar conta das minha preocupações, dos meus anseios, das minhas vitórias (quando as tenho) e das minhas derrotas; ser amigo é partilhar o que penso, como e porquê. Desses tive e tenho, realmente, muito poucos e, em raros casos, enganei-me porque levei longe demais a partilha sem contrapartida, pois só compreendo a verdadeira, a profunda, a efectiva amizade quando há reciprocidade de abertura.
Dos meus três amigos dos Pupilos a nossa amizade desfez-se em espuma com a espuma do tempo. Vale a pena contar, recordando o processo.
Dos quatro que éramos houve um que casou um mês antes de mim e, já por essa altura, andava arredia a nossa convivência: ele frequentava maios sociais onde eu não entrava nem forçando a porta. Eram meios muito selectos e selectivos para os quais se carecia de “cartão dourado” e, não tendo eu cartão de espécie alguma, jamais pus os pés nos salões onde o meu amigo passeava a sola dos sapatos. Ele chegou lá, a essas alturas, por um mero acaso, que não vem ao caso.
Restavam dois dos meu velhos amigos e companheiros de estudos. Enquanto eles foram solteiros e eu casado demo-nos com bastante frequência, mas, depois, foram as comissões em África e os seus casamentos que, uma vez mais, curiosamente, cortaram por completo com os nossos contactos. Um faleceu há anos e com o outro falo pelo Natal e pelos aniversários mútuos. Podia dizer, recordando o título do filme, tão amigos que nós éramos!
Depois, a Vida foi-me pondo outros amigos pelo caminho e a “escala” não se alterou, variando entre a quase vacuidade de relação e a grande intimidade com projectos e sonhos à mistura.
Neste fim de ano, momento de balanços, tinha de deixar isto escrito, porque, tendo muitos amigos, tenho poucos em quem confiar plenamente, com quem troco sonhos e esperanças, desilusões e ilusões. Acho que a amizade tem a configuração de uma montanha russa, umas vezes sobe até quase ao limite do possível e noutras desce, com náusea, aos confins do desprendimento.
A vida é complexa e simplificá-la passa por um exercício de desprendimento que não se coaduna com a minha formação nem com o meu feitio, por isso tenho os amigos que tenho. Dos muitos, há dois ou três que escrevo com “A” maiúsculo.