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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.12.22

Os Amigos


Luís Alves de Fraga

 

Como entrei com treze anos para o Instituto dos Pupilos do Exército em regime de internato (único existente na altura), rapidamente aprendi a fazer amigos entre quatrocentos que nós éramos de idades que iam dos dez aos vinte anos. Mas isto de viver com tantos “irmãos” tinha o seu quê. É que existiam “ovelhas negras” e de outras cores, havendo que saber evitá-las sem mostrar constrangimento nem aborrecimento. Fui aprendendo que, afinal, o provérbio popular era muito verdadeiro: «amigos, amigos, negócios à parte» ou seja, todos nos devemos dar bem sempre que tal for possível, porque há aqueles a quem só damos os bons dias e pouco mais… mas são amigos! Isto estabeleceu-me a existência de escalas de amizade, que ainda mantenho. É sobre elas que vos venho falar hoje.

 

Não sendo, nos treze, catorze anos já nada do que havia sido em menino (irrequieto e traquinas) tornei-me, no virar da idade, num rapaz  que gostava de falar de coisas “sérias” e, deste modo, escolhi, de entre os companheiros de turma, os mais atinados para iniciar, se fosse possível, uma amizade mais próxima do que a de simples condiscípulos. Foram três e formávamos um quadrado de troca de impressões e de comportamentos: um alegre e bem-disposto, mas preocupado com os estudos e desejoso de não fazer má figura, outro calado e mais introvertido, representando o verdadeiro “marrão” que não deseja ter más notas e o terceiro, despreocupado, mas inteligente e bom aluno. Era com estes que conversava sobre tudo e era com eles que tinha as brincadeiras próprias de quem já faz continências, está em formaturas e usa armas de verdade, razão pela qual nunca vi, nos Pupilos, brincar aos “cowboys” ou aos polícias e ladrões. Jogávamos ao berlinde, à bilharda e pouco mais, porque os meus amigos não eram de “futebóis”.

Depois, havia os graduados com quem me dava e que eram um pouco mais velhos do que eu, talvez mais três ou quatro anos. Com estes falava de assuntos “sérios”, que iam dos namoros e namoradas até algumas “entradas” pela política, mas tudo muito ligeiro comparado com os tempos de hoje. Recordo que um deles me chegou a dizer que eu não parecia ter “só” catorze anos quando ele tinha dezoito! Desses amigos ficou um para a vida (infelizmente já nos deixou).

 

Tinha amigos de infância, do meu bairro e amigos dos Pupilos, para além dos três que referi. Alargava-se o leque de amigos mas não o da intimidade, porque ser amigo, para mim, é entrar na conversa que vai para além das banalidades, é poder dar conta das minha preocupações, dos meus anseios, das minhas vitórias (quando as tenho) e das minhas derrotas; ser amigo é partilhar o que penso, como e porquê. Desses tive e tenho, realmente, muito poucos e, em raros casos, enganei-me porque levei longe demais a partilha sem contrapartida, pois só compreendo a verdadeira, a profunda, a efectiva amizade quando há reciprocidade de abertura.

Dos meus três amigos dos Pupilos a nossa amizade desfez-se em espuma com a espuma do tempo. Vale a pena contar, recordando o processo.

 

Dos quatro que éramos houve um que casou um mês antes de mim e, já por essa altura, andava arredia a nossa convivência: ele frequentava maios sociais onde eu não entrava nem forçando a porta. Eram meios muito selectos e selectivos para os quais se carecia de “cartão dourado” e, não tendo eu cartão de espécie alguma, jamais pus os pés nos salões onde o meu amigo passeava a sola dos sapatos. Ele chegou lá, a essas alturas, por um mero acaso, que não vem ao caso.

Restavam dois dos meu velhos amigos e companheiros de estudos. Enquanto eles foram solteiros e eu casado demo-nos com bastante frequência, mas, depois, foram as comissões em África e os seus casamentos que, uma vez mais, curiosamente, cortaram por completo com os nossos contactos. Um faleceu há anos e com o outro falo pelo Natal e pelos aniversários mútuos. Podia dizer, recordando o título do filme, tão amigos que nós éramos!

 

Depois, a Vida foi-me pondo outros amigos pelo caminho e a “escala” não se alterou, variando entre a quase vacuidade de relação e a grande intimidade com projectos e sonhos à mistura.

Neste fim de ano, momento de balanços, tinha de deixar isto escrito, porque, tendo muitos amigos, tenho poucos em quem confiar plenamente, com quem troco sonhos e esperanças, desilusões e ilusões. Acho que a amizade tem a configuração de uma montanha russa, umas vezes sobe até quase ao limite do possível e noutras desce, com náusea, aos confins do desprendimento.

A vida é complexa e simplificá-la passa por um exercício de desprendimento que não se coaduna com a minha formação nem com o meu feitio, por isso tenho os amigos que tenho. Dos muitos, há dois ou três que escrevo com “A” maiúsculo.

30.12.22

De Lisboa a Aldeia Nova de S. Bento


Luís Alves de Fraga

 

Tinha para aí entre os onze e os doze anos quando comecei a passar as férias de Verão em Aldeia Nova de S. Bento (hoje, erradamente, Vila Nova de S. Bento) ali no Alentejo profundo, quase na raia seca de Espanha. Íamos para o meio do campo, em uma área chamada (creio que mantém a designação) Cova do Homem, onde o meu pai havia comprado um terreno ainda com alguma dimensão e uma casa ‒ um Monte ‒, contrariamente, de pequena dimensão. Ficávamos, parafraseando José Régio, rodeados de figueiras e oliveiras.

Foram anos de muito sol (no campo andava em tronco nu) sem mar, de muito calor sem ventoinha, de algum trabalho sem remuneração. Mas não guardo ressentimento. Ia com os meus pais e a minha avó materna.

 

As férias começavam no Terreiro do Paço, junto à estação marítima do Sul e Sueste, frente ao Ministério das Finanças. Era aí que se carregava a camioneta da carreira preparando-a para entrar no “ferryboat” rumo a Cacilhas. Se ia eu, a minha mãe e a minha avó, era a mim que competia o encargo de entregar ao carregador, que estava na escada, a meia altura do chão e do tejadilho, as malas; este dava-as ao condutor que estava encarregado de fazer a estiva, de acordo com os pesos dos volumes e os respectivos destinos. Se estávamos acompanhados pelo meu pai, este dava, também, uma ajuda para fazer subir as malas.

Sobre as malas e as camionetas devo recordar aspectos que hoje parecem ridículos, mas, naquele tempo não eram.

Primeiro, como já disse toda a carga era posta num estrado que existia no tejadilho do veículo, sendo que o acesso se fazia por uma escadinha na traseira da camioneta. Ficava mais próxima da escada a bagagem cujos donos iam para mais perto e mais distante, quase sobre a cabeça do condutor, a que pertencia aos que se destinavam às últimas paragens. Hoje, tudo isto faria confusão aos jovens e aos menos jovens que querem tudo pronto para ontem, mas, para nós, o tempo de espera era natural, embora incómodo; compreendíamos a necessidade de ser assim.

 

A nossa bagagem era “épica”. Para já, as malas eram de pega, tipo mala de cartão, pequenas e iam atafulhadas de roupa de Verão, velha e somente com uma ou duas mudas de calças e de camisas novas para quando fossemos à aldeia não fazer má figura. O meu pai levava dois ou três livros para ler no mês de férias, que era, invariavelmente, o de Setembro. Depois, havia a mala “especial” de vime, funda, larga e pesada como chumbo onde se faziam transportar quilogramas de açúcar, arroz, farinha, bacalhau e mais um ou dois tipos de ingredientes cuja memória já não guardo, mas, delícia das delícias, lá dentro, aproveitando cada cantinho, cada desvão, cada buraco iam embrulhados em papel de jornal dezenas de frascos com as tampas respectivas. Na volta viriam carregados de doce de tomate (que, em boa verdade, durava o ano inteiro e servia para os nossos lanches ou merendas da noite).

Era a minha saudosa mãe quem fazia as malas, uma por uma, de modo a não se perder espaço algum. A roupa velha, se estivesse ainda em condições no final das férias, ficava guardada para o ano seguinte, caso contrário era cortada e servia para panos de usos diversos na casa e na cozinha.

 

Chegados a Cacilhas começava a “viagem”, isto por volta das oito e meia ou nove horas da manhã. A companhia transportadora era a EVA (Empresa de Viação do Algarve) que seguia via Azeitão para Setúbal, na estrada nacional, que não tinha a largura, nem a comodidade das de hoje. A velocidade de cruzeiro deveria rondar os sessenta quilómetros por hora e os bancos não tinham recosto para a cabeça. Usualmente conseguíamos lugares na primeira metade do veículo, porque lá para trás a confusão era grande com gente do campo a transportar galinhas vivas e a merendar quando vinha a fome. A única “música” que se ouvia eram as vozes dos mais faladores, o ronronar do motor e o rodar dos pneus na estrada. Em aldeias e lugares até Setúbal, dos quais já não recordo o nome, parava a camioneta para deixar sair um passageiro ou entrar outro com ou sem mala… Se a tivesse, lá ia o auxiliar do motorista colocar a mala no sítio conveniente. Tudo bem amarradinho para não saltar tralha de cima do pobre transporte.

 

Depois de Azeitão vinha Setúbal e a avenida Todi onde parávamos um pouco mais de tempo para descarregar os vários passageiros que para ali se destinavam. Entravam outros, mas poucos. O Algarve ainda não era praia para turistas; ainda era dos algarvios! Caía sobre nós uma chusma de vendedores ambulantes de tudo e de mais o que imaginar se possa. Claro, na minha família não havia compras a fazer.

Curioso é que, mesmo que eu estivesse a dormitar na aproximação a Setúbal, dava por isso em consequência do cheiro a peixe que se espalhava pelo ar proveniente das fábricas de conserva. Concentravam-se nos arredores da cidade.

 

Depois da paragem mais prolongada nas terras sadinas, seguíamos rumo a Alcácer-do-Sal onde já chegávamos lá pelas onze da manhã ou próximo disso. Uma aventura!

Por lá havia um longo estacionamento de camionetas e começavam alguns transbordos de bagagem.

‒ Ai Luís Manuel ‒ dizia a minha avó Céu ‒ vai ver se se enganam e mandam as nossas malas para outra camioneta!

Lá saltava do assento e punha-me à coca só para tranquilizar a minha avó, que transmitia à minha mãe a intranquilidade do momento. Mas as nossas malas repousavam à frente e só nelas se mexia lá mais para diante. Entretanto, ia sendo rodeado de vendedeiras de pinhoadas onde as moscas pousavam descaradamente. Nunca comi, porque não se comprava. ‒ Sabe-se lá como aquilo é feito… a falta de higiene! ‒ dizia a minha mãe. E os olhos ficavam-me presos entre as pinhoadas a escorrer doce e as moscas que as sobrevoavam em voos rasantes.

Talvez vinte minutos ou meia hora depois, arrancava a camioneta, com novos passageiros rumo ao Torrão do Alentejo, por uma estrada ladeada de árvores que já davam sombra acolhedora naquele calor de pingar suor. Eram curvas para um lado e para outro até chegarmos ao próximo grande destino. Grande, porque, entretanto, íamos parando aqui e ali para saída ou raras entradas de passageiros.

No Torrão, já perto da uma da tarde, o sol dardejava um calor seco e escaldante, fazendo jus ao nome da terra. A paragem era pequena, mas a minha mãe aproveitava para abrir o farnel e começarmos a comer o que havia sido preparado para a viagem. Era a vez das sandes com fiambre e manteiga e dos pasteis de bacalhau. A água vinha numa garrafa resguardada do calor, o mais à sombra possível. Por vezes, à laia de sobremesa, uma banana rematava a refeição.

 

Do Torrão para Ferreira do Alentejo a viagem estava, muitas vezes, mais aligeirada, porque o número de paragens era menor e menos demorado. Por volta das duas da tarde chegávamos a Ferreira onde, aí sim, era necessário transferir a nossa bagagem da camioneta inicial para a outra que ia fazer o ramal de Beja a Ficalho, pois a primeira seguia para o Algarve onde chegaria ao fim do dia. Como a paragem era mais demorada, dava para esticar as pernas e passar para uma viatura que, em termos de comodidade era significativamente pior.

De Ferreira a Beja era um tiro com pequena retenção em Beringel, quando acontecia. Mas na capital do distrito, novamente parávamos para mais uma trasladação de bagagem e de passageiros, ficando nós na mesma viatura. Já passava das três da tarde e, no largo da camionagem estavam os vendedores ambulantes com pequenas bilhas de água ou fruta já bastante madura. Um deles, com uma infusa e um copo nojento de sujo e cheio de dedadas fazia publicidade às bananas, sem as referir, apregoando: «água fresca regalada, quem beber não paga nada».

 

Seguia-se, depois, a fase final da viagem, passando por Serpa, Baleizão Montes da do Pinto e, por fim, Aldeia Nova, onde chegávamos passava das cinco da tarde, completamente derreados e com o corpo moído de bancos incómodos e passagens de um lado para o outro. Na paragem em A do Pinto já eu me sentia muito próximo de Aldeia Nova e sabia que me esperava o esforço final: ajudar à descarga das malas que, entretanto, entravam logo na carroça de um primo meu para irem direitinhas para o Monte.

Anos mais tarde a frota de camionagem foi modernizada e já surgiram autocarros com apoio para a cabeça e para o braço, podendo, até, ter uma ligeira reclinação para se dormir com mais comodidade. Mas as paragens e os tempos de viagem continuaram a ser os mesmos.

 

Em 1964 deixei de ir para o Monte e para Aldeia Nova de S. Bento. Deixei de me aperceber da evolução que desse ano para a frente se fez. Portugal hoje é muito pequeno… perdeu a dimensão de uma viagem de um dia para se fazer o mesmo em pouco mais de duas horas!

29.12.22

Do IVA à dívida


Luís Alves de Fraga

 

Aqui ao lado, na vizinha Espanha, foi anunciado o fim do IVA para certos produtos de primeiríssima necessidade e a redução para outros como método de travar a inflação que a guerra trouxe à Europa. Em Portugal tudo vai na mesma com balões de oxigénio para nos aguentarmos à superfície, respirando com dificuldade.

 

Quem fizer esta comparação directa e simples está certo e está errado na crítica que nasce da análise descuidada. Temos de ir um pouco mais fundo para perceber diferenças e semelhanças. Valerá a pena tentar, mesmo que não seja técnica a nossa observação.

A dívida externa portuguesa é das mais altas da União Europeia e, mesmo que agora não cresça assustadoramente, o que cresce são os juros, tanto mais que há inflação. O chamado serviço da dívida é capaz de nos sufocar sem que saibamos que vamos morrer. No Orçamento do Estado ele, o serviço da dívida, tem de estar contemplado e, não é pedindo mais emprestado (como aconteceu no século XIX) que se pagam os juros; essa não é a boa administração; essa é a administração dos desvairados! A boa administração passa por reduzir as despesas do Estado e por cobrar mais impostos. Na primeira solução dois caminhos podem ser seguidos: ou se despedem funcionários do Estado, não aumentando os que continuam activos (ou não se contratam novos para substituir os que morrem ou envelhecem) ou não se gasta dinheiro em reparações e obras novas, levando o país ao atraso técnico e tecnológico. Como se vê, tem de se praticar uma política de contenção absoluta e de desagrado geral; uma política que leva à contestação individual, parlamentar e popular, desembocando em greves e desacatos.

Se se quiser actuar na área das receitas do Estado têm de se manter os impostos ou, se possível aumentá-los para compensar o aumento do serviço da dívida por força do aumento da inflação. A um aumento da carga fiscal corresponderá sempre um maior superavit para os cofres do Estado e, deste modo, pode pagar-se o que se deve, quer em capital quer em juros.

 

Com esta explicação simples (porque o governo das finanças públicas é em tudo semelhante ao de uma casa onde os filhos exigem e os pais limitam as solicitações dos descendentes de modo a não se endividarem ou não se endividarem mais) julgo que os meus leitores poderão ter ficado conhecedores das diferenças entre o panorama nacional e o espanhol que é francamente menos negro do que o nosso. Perceberão as possibilidades para, do lado de lá da fronteira, se proceder de uma maneira que, do lado de cá não tem bom cabimento.

 

Mas a grande questão que se pode colocar é exactamente a que determina o quadro conjuntural que separa os dois países vizinhos: qual o motivo de na Espanha as finanças públicas poderem ter comportamentos diferentes dos de Portugal?

Para além da área geográfica, facto que não é determinante, mas, no caso tem peso, acresce que a Espanha tem regiões extremamente ricas, tanto em minérios como em agricultura, como em indústrias e serviços que jamais se comparam ao Portugal pobre onde nascemos. Claro que esta riqueza de Espanha lhe permitiu investimentos altamente rentáveis sobre os quais se pode cobrar uma carga fiscal que dá para suportar as despesas normais de um Estado ‒ defesa, saúde e educação ‒ como todas as restantes ligadas às infraestruturas à segurança e representatividade do Estado. A carga fiscal, caindo sobre o cidadão comum, através dos impostos indirectos (os mais cegos e injustos, porque tanto os paga o rico como o pobre), também cai e em maior peso, nos impostos directos sobre rendimentos industriais, comerciais, piscatórios e agrícolas. Só assim a nossa vizinha consegue ter um nível de vida superior e mais desafogado do que o português. Por cá, o investimento é pouco e mal feito, porque se protegem com medidas especiais os grandes produtores e se exploram os pequenos que, por isso mesmo fogem, quanto podem, ao pagamento das suas obrigações fiscais e é desta forma que o Estado sai defraudado, exactamente por permitir e acarinhar a injustiça tributária.

 

Não vale a pena reclamar que em Espanha, aqui ao lado, se vive de uma maneira e, por cá, de outra… Vive-se, porque os contextos são diferente: a economia vizinha satisfaz as necessidades do tesouro e a nossa não o ajuda, levando a que tenha de ser espoliado o cidadão em vez dos grandes produtores. É um destino do qual também somos culpados e para o qual contribuímos largamente.

28.12.22

Os “buracos” do Costa


Luís Alves de Fraga

 

Desde a maioria parlamentar do PSD, no tempo do Cavaco Silva como Primeiro-ministro, nunca gostei deste tipo de repartição de votos. As maiorias absolutas são ditaduras disfarçadas com a agravante de realmente nunca o serem de verdade. Com efeito, se formos verificar as abstenções de voto, aquando das maiorias no nosso país, chegamos à conclusão de que os silenciosos nem sempre apoiam os votantes, bem pelo contrário: são completamente apáticos à luta partidária o que não faz deles monos políticos, pelo contrário, pode torná-los em críticos acérrimos dos governantes. Por conseguinte, desengane-se quem julga, no mundo da política, que ter uma maioria absoluta é ter o país consigo.

 

Ora, se já não era, pela razão que expliquei, menos o é, no caso da maioria António Costa, por causa dos sucessivos miniescândalos a que temos vindo a assistir por total desprendimento e aparente indiferença do Primeiro-ministro.

Costa é um verdadeiro “animal político”, maior do que Mário Soares que, afinal, vivia de “intuições políticas”, tendo feito poucas vezes verdadeiras “jogadas” políticas. Costa, abrindo um sorriso fácil e simpático, torna-se impenetrável à compreensão das jogadas de xadrezista que o caracterizam. Afirmei isto quando preparou uma verdadeira armadilha a António José Seguro para se apossar do aparelho do Partido Socialista. É verdade que o primeiro jamais seria capaz de executar a política do segundo, em 2015, quando derrotou Passos Coelho depois deste ganhar em minoria as eleições legislativas. António José Seguro nunca se entenderia com os comunistas e bloquistas; provavelmente, entender-se-ia com os homens do PSD, tentando amenizar a fúria neoliberal de Passos Coelho, no que, inevitavelmente, seria vencido.

 

Valeu a Costa a sua extraordinária capacidade de mimetização que levou uma parte do país a acreditar na chamada “geringonça” como forma de continuar a conduzir Portugal para uma esquerda confortável e inédita. Não o deixaram os comunistas que lhe previram o golpe de retorno ao centro-direita em que parece querer estar agora, depois, de mais uma torção para parecer uma coisa e obter outra, aquando das últimas eleições legislativas. Alcançou o que, afinal, sempre ambicionara: a maioria absoluta. Todavia, foi uma conquista que mais parece pessoal do que institucional. Ganhou contornos de “golpe de estado”, especialmente por causa de tudo o que se tem seguido. António Costa está no topo da pirâmide, dirige a governação lá de cima sem se preocupar em estender até à base da mesma a influência da sua autoridade, da sua vontade, das suas directivas. É uma pirâmide desarticulada cujos diferentes patamares parecem em autogestão.

Este Costa ou está inebriado com a maioria absoluta e o que ela representa em Bruxelas, não só por ser uma maioria, mas por ser uma maioria de um partido tido como de esquerda (a esquerda e direita é muito relativa, dependendo da conjuntura onde se afirma… Em Portugal, tem feito um papel de direita moderada, porque a direita tem jogado sempre mais à direita e a esquerda menos à esquerda) ou tem projectos mais ousados, não lhe interessando empenhar-se demasiado nas problemáticas internas. Isto remete-nos para a União Europeia onde pode estar a preparar um cargo para ocupar daqui por alguns meses ou, talvez, nos próximos dois anos.

Passos Coelho retirou-se para o ensino onde poderá preparar o salto para um voo mais alto; Guterres refugiou-se na ONU e chegou ao topo; Santana Lopes andou por aí para acabar numa Câmara Municipal de segunda categoria; mas, Durão Barroso deixou Portugal ao Deus dará e foi para Bruxelas de onde passou para uma pré-reforma mais do que dourada. Uns, tiveram e têm projectos pessoais que realizaram com sucesso, outros ficaram na mediania depois de poderem ter alcançado postos bem mais interessantes. António Costa não pertence ao segundo grupo e tem todo o perfil de que deseja alcançar uma reforma dourada. Mas com escândalos que o deixam naquilo que parece ser o seu capital fundamental, a liderança elástica e pragmática, dificilmente chegará a cargos de grande relevo.

Entretanto, ao contrário de se sentar solidamente na sela e agarrar as rédeas do poder com mão firme, parece andar aos trambolhões de um lado para o outro enquanto a montada toma o freio nos dentes e parte à desfilada.

São estes os “buracos” de António Costa ou ele é um “bluff” político?

27.12.22

O Circo


Luís Alves de Fraga

 

Quando eu era garoto os espectáculos circenses não aconteciam só pelo Natal; com muita frequência o Coliseu dos Recreios, de Lisboa, recebia companhias onde lá vinham os leões, os elefantes, as pombas, os cãezinhos, os coelhos, os cavalos e os equilibristas, os comedores de fogo, os trapezistas e os ilusionistas com as suas esbeltas e vistosas assistentes. Vi de tudo, porque, com muita frequência íamos ao circo, umas vezes, com o meu tio, tia e primo para um camarote de 2.ª ordem e, outras, só nós os quatro ‒ pai, mãe e eu e a minha irmã ‒ para a geral, também chamada, em linguagem vulgar de então “poltrona de pontapé nas costas”. De qualquer das maneiras o circo era um espectáculo de cor, música, risco, destreza e habilidade.

Muitos anos mais tarde o circo, no Coliseu, foi morrendo e começou a aparecer só em tendas desmontáveis, pelo Natal, nas grandes cidades, sendo que Lisboa era privilegiada com as melhores companhias.

Nunca mais fui ao circo. Há dezenas de anos que não ia ao circo. Recordo-me, também de ter visto, salvo erro na praça de touros do Campo Pequeno, uma só vez, e foi pelo Natal, um espectáculo circense, de patinagem artística no gelo.

São recordações soltas que guardo da minha mais remota infância, em que um classe média baixa, com um aperto financeiro dali e outro daqui, podia assistir a espectáculos… os bilhetes não eram baratos, as crianças não pagavam (ficavam ao colo dos adultos), a miséria “era dourada” para os militares, que o meu pai era, mas Salazar queria que o Povo se divertisse, cada qual dentro do seu estatuto social. Desta forma, gerava-se uma aparente aceitação do regime.

 

Ontem fui ao circo (não faço publicidade, por isso não digo qual foi) e pude estabelecer as diferenças culturais de há setenta e tal anos a esta parte. Os bilhetes não são baratos e uma família como nós éramos terá hoje dificuldade em ir apreciar o espectáculo. Os palhaços já não são palhaços, ricos e pobres. Fazem rir ligeiramente. Depois há a magia das novas tecnologias, coisas que parecem ser, mas não são. Privilegia-se a dança, o equilíbrio, a agilidade, o que parece fácil, mas é extremamente difícil, o espírito de equipa, a velocidade. Tudo se passa a grande velocidade, à velocidade do nosso tempo, um tempo de amanhã e jamais um tempo de hoje. O ontem está esquecido num passado que já não volta. As cores são mais as das luzes do que a dos fatos dos artistas.

Foi um espectáculo lindo, extraordinário, mas, para quem como eu não ia ao circo há dezenas de anos, foi uma representação do hoje/amanhã. Saí agradado, mas com a certeza de que o “meu circo” está perdido para sempre ou, quando muito, anda mal vestido, esfomeado e caquético pelas feiras mais populares das aldeias de Portugal, em autocaravanas a caírem de podres e onde os artistas são também arrumadores e fazem de tudo um pouco. O circo da minha infância, e, depois, aquele que víamos, na televisão, há muito tempo, no primeiro dia de cada ano, presidido pela princesa do Mónaco, onde brilhavam as lantejoulas e o apresentador calçava botas altas e vestia uma jaqueta vermelha e os palhaços faziam rir com as suas inocentes trapalhadas, esse circo é já passado. Tão passado como, provavelmente, o sou eu ao deixar escorrer pelas franjas da memória estas lembranças de outros tempos. Felizmente, ainda sou capaz de apreciar a beleza do hoje e do amanhã que se ergue na linha do horizonte onde o sol desponta para nos trazer novidades que me fazem sonhar com o futuro que vos espera.

26.12.22

Saudades de África


Luís Alves de Fraga

 

Vão sendo, cada vez menos, os homens e mulheres com idade para se lembrarem plenamente do que era a vida dos portugueses brancos em África e eu falo, em especial de Moçambique, que foi onde estive por duas vezes, dois anos em cada uma das comissões. Embora o meu ambiente social fosse, “naturalmente” o militar, a verdade é que, por força dos meus contactos no meio civil, conheci, mais ou menos, de perto o que era a “vida” da comunidade branca, que, por facilidade de expressão, denominarei por colonos.

 

O dia de trabalho, em África e em Moçambique, começava muito cedo: às sete, às oito horas da manhã estava tudo a laborar, desde as fábricas ao comércio. Acordava-se entre as cinco e meia e as seis da manhã. Claro que as repartições e escritórios encerravam às quatro ou o mais tardar às cinco da tarde. Dava tempo para ir beber um café, uma cerveja ou um refresco numa esplanada ou numa cervejaria bem colocada para desanuviar as ideias de um dia de trabalho. Depois, jantava-se às sete ou, no máximo, às oito horas, ouvia-se rádio até às dez e às onze horas, o mais tardar, estava-se deitado para dormir o sono dos justos. Havia excepções a estas regras: os militares, os grandes agricultores que vinham à cidade divertir-se e os noctívagos de “profissão”. Todos estes ou iam para o cinema ou para a vida nocturna, que era intensa nas cidades maiores (refiro Lourenço Marques, hoje Maputo, e Beira).

Olhando com a distância dos anos já decorridos e vividos por mim, recordo que esta sociedade era formada por gente jovem, gente que no máximo não ia além dos cinquenta e cinco anos de idade. Gente activa e trabalhadora. Não havia “velhos” a trabalhar (o que é, naturalmente, uma força de expressão). Com mais de sessenta anos, não sei onde andavam os homens e as mulheres.

Hoje recordo que, a trabalhar, só havia brancos quase todos de cabelos escuros e ainda em idade de não serem carecas. Que existiam velhos tinham de existir, disso não me restam dúvidas, mas já não faziam parte da massa activa… e não estavam nos jardins a jogar às cartas!

 

Os homens, nesta sociedade urbana, com exclusão de algumas profissões, andavam de calção, meias altas, sapato, camisa ou balalaica (esta era muito usual e caracterizava os colonos com mais tempo de África). Havia um ar descontraído no trajar dos homens e das mulheres. A praia era a diversão máxima dos sábados e domingos… Toda a gente desembocava nos areais mais próximos e os financeiramente mais abonados deslocavam-se de carro para as praias paradisíacas mais distantes. Almoçavam-se bons peixes frescos nos restaurantes ou jantava-se nas marisqueiras sem grandes limites de orçamento, porque tudo era barato.

Os jovens, estudantes, levavam uma vida despreocupada; para além de estudarem, os que estudavam, viviam da praia e das festas que inventavam nos mais variados locais.

Ao domingo à noite tudo voltava à rotina da semana: deitar cedo para levantar cedo e trabalhar.

A donas de casa tinham todas um “mainato” (criado negro que variava de idade consoante o ordenado e o trabalho que se lhe exigia) e nas casas mais abastadas poderia haver vários “mainatos”, cozinheira e empregada para tratar dos meninos.

 

Poder-se-á julgar que a vida se tornava monótona, mas posso garantir que não, graças à variedade de opções existentes. O clima propiciava as actividades ao ar livre, que passavam, também, por gozar o pouco fresco do fim das tardes nas esplanadas ou nos cafés com ar condicionado.

Era uma sociedade que transpirava juventude, trabalho e diversão.

Quando ainda oiço os homens e mulheres retornados e que de lá vieram com idade para compreender o tipo de vida e a descontracção ambiental sou capaz de sentir-lhes as saudades, porque, de certa maneira, eu mesmo tenho saudades desse tempo de juventude onde se esperava o melhor da vida, esquecendo os temores que a guerra e a velhice traziam. Mas, a vida é um parafuso que repetindo as voltas nunca faz passar o mesmo ponto pelo mesmo sítio.

23.12.22

Gerações


Luís Alves de Fraga

 

Há muitos, muitos anos, quando eu era jovem, por razões culturais, educativas e tradicionais, os chamados “desvios” sexuais eram considerados anomalias, doenças, distorções do carácter, e mais um infindável rol de epítetos pouco abonatórios seguidos de expressões irrepetíveis nos dias de hoje para os designar. Por norma, a maior carga ofensiva social vertia-se sobre os homens, ainda que as mulheres não estivessem livres de enxovalhos embora menos exuberantes.

Estes hábitos, provenientes de uma distante Idade Média e de uma religião completamente obtusa no seu rigor aparente (e digo aparente, porque no seio do clero e da Igreja praticavam-se todas as irregularidades da época, desde que não fossem tornadas públicas) respaldavam-se em preconceitos tipicamente clericais e desenvolvidos por um obscurantismo que procurava tirar todos os partidos possíveis da ignorância dos povos.

 

Foi a viragem do século XIX para o XX que fez arrefecer, na Europa, os zelos sociais que recriminavam os tais “desvios” antes apontados. Mas, mais do que o simples rodar dos tempos, foi a 1.ª Guerra Mundial a responsável pelas mudanças onde se estribaram as subsequentes e mais radicais.

A luta pelos direitos sociais e políticos iguais aos dos homens desenvolvida pelas sufragistas na Grã-Bretanha, seguida da proletarização fabril das mulheres, enquanto os homens se matavam nas trincheiras, veio alargar, pelo menos nas classes sociais mais elevadas os hábitos e a aceitação de “desvios” pouco acolhidos vinte ou trinta anos antes. Foi o hábito de fumar e beber, de dançar e folgar nos salões quase reservados aos cavalheiros e às damas de má reputação que libertou as mentes de condenações previamente aceites.

A guerra, com toda a incerteza que fez pairar sobre os combatentes, quanto ao estarem vivos no dia seguinte, veio acelerar, no tempo de paz subsequente, um desejo irreprimível de viver desvairadamente, introduzindo na alta sociedade o consumo de drogas e de bebidas viciantes. Foi o conjunto convergente destes efeitos que corroeu, de cima para baixo os hábitos austeros de uma sociedade cheia de preconceitos e de aparências. A moral foi posta em causa quando, nos anos de 1914 a 1918, se assistiu a um morticínio sem semelhança anterior, levando a perguntar onde estava Deus e a Sua bondade. Deus morreu nos campos de batalha da Grande Guerra, em especial na Europa, ainda cabeça de um imenso império colonial. O clero da Igreja Católica procurou mantê-Lo vivo junto das camadas mais populares, nas aldeias mais recônditas deste Velho Continente, mas foi em vão, porque, vinte e um anos depois do fim do conflito, a Alemanha fez eclodir um novo holocausto sangrento, depois de negar o Deus tradicional e exaltar os deuses da guerra. Marte e Ares impuseram-se a um Cristo crucificado mil e novecentos anos antes. Os homens exaltavam, novamente, a morte, o desapego da vida, ao mesmo tempo que, no continente americano, cresciam as boas condições de consumo, a abundância e uma juvenil perspectiva de vida cheia de irresponsabilidades.

 

O alargamento das operações militares aos quatro cantos da Terra estendeu a todas as classes sociais a certeza de que Deus estava ou morto ou adormecido e, assim, trouxe um imenso desejo de viver o momento de cada dia no limite da moralidade. Hiroshima e Nagasaki foram, simbolicamente, o fim de uma moral antiga para definir o começo de uma nova moral.

No pós-guerra, a rebeldia da juventude criada sem pais ou com pais física ou psicologicamente deficientes, definiu novos paradigmas comportamentais. Era o tempo de negar tudo, ao qual se seguiu, para os americanos, o tempo da guerra da Coreia, o tempo da guerra do Vietnam e, para os europeus, o tempo da guerra da Indochina e da Argélia, no Médio Oriente o tempo da guerra israelo-egípcia e, muito mais tardiamente, para o povo mais retrógrado de uma Europa em evolução, o tempo da guerra em Angola, na Guiné e em Moçambique.

A sociedade de consumo e de bem-estar crescia, mas afastava-se da moral de todos os pós-guerras. A liberdade política afirmava-se sem entorses e nasciam novas formas de contestação descarada que iam do consumo de maconha até ao amor livre, até às comunidades onde tudo e todos eram de todos.

 

Este foi o caldo de cultura que “amaciou” a moral de uma geração, a minha, nascida durante a 2.ª Guerra Mundial e a trouxe até aos dias de hoje, aos dias da sociedade LGBT com todas as suas variantes, chegando à normalidade da adopção de crianças para serem criadas por dois homens ou duas mulheres; chegando à normalidade do casamento entre indivíduos do mesmo sexo.

Não fomos nós, os velhos, que amolecemos… Foi a transformação da moral social que nos amoleceu, que banalizou perante nós aquilo que era “anormal” na nossa juventude.

Como historiador, sinto que só quando se consegue integrar todas as mudanças e percebê-las na sua essência é que se pode falar de História Social, se pode compreender a Sociologia e, acima de tudo, o fenómeno religioso como travão cultural.

Se Deus existe ou não é coisa que discuto em segundo plano, porque, em primeiro plano, discuto o papel conservador das Igrejas e dos seus cleros. Deus é uma outra coisa, um outro fenómeno humano e social.

Espero que os meus leitores não fiquem chocados com este texto, mas só com sínteses muito encadeadas é que se torna possível compreender o percurso do Homem na Terra e o caminho de Deus nos céus.

21.12.22

Do Direito Internacional às sanções


Luís Alves de Fraga

 

Quando nos idos da década de 1970 aprendi, pela primeira vez, Direito Internacional o professor começou por levantar a grande questão de se este tipo de Direito podia estar a par das outras especialidades, pois faltava-lhe a componente da coercividade. É que, nos Direitos internos, em todas as suas vertentes, o Estado impõe-os com a força que recebe da sociedade, que se quer segura nos seus alicerces, daí que, na ordem interna não haja poder que lhe seja superior. Mas, por esta mesma razão, na ordem externa, o Estado soberano só reconhece poderes que lhe sejam iguais ou subordinados.

Assim, esta igualdade de poderes soberanos, faz do Direito Internacional um conjunto de normas de cortesia na vida dos Estados que se comprometem a cumprir entre si, até ao momento em que algum deles as recuse por inteiro ou na parte.

Ora, o próprio poder judiciário, no plano internacional, só funciona se o Estado sobre quem recai a sua acção tiver perdido o direito soberano ou aceitar sujeitar-se às imposições externas (tome-se, como exemplo mais flagrante, o julgamento de Nuremberga, quando o Estado alemão era inexistente e as poucas estruturas de poder estavam subordinadas às forças ocupantes).

 

Foi por causa destas limitações que a ONU, através da sua Assembleia Geral, criou um mecanismo que, de alguma forma, se assemelhasse a um sistema coercivo, inventando-se a sanções, sob a forma de embargos comerciais, as quais, mais do que “castigar” o Estado, castigam as populações.

Daqui resulta um erro tremendo por se confundir populações com Estados, pois sancionar aquelas não é, em rigor, o mesmo que sancionar estes. Ou seja, para obrigar um Estado, castiga-se uma nação em vez de castigar o poder político que está de posse do aparelho que governa o Estado.

‒ No fundo, qual é o efeito perverso das sanções?

Tão-somente instigar a revolta interna nos Estados sancionados de modo a provocar uma alteração dos detentores do poder político nas cadeiras da governação de modo a que actuem em concordância com a vontade de uma determinada maioria de Estados com assento na Assembleia Geral das Nações Unidas. Bem vistas as coisas, para que haja ordem internacional é necessário que a ordem interna esteja sancionada pela ordem externa, o mesmo é dizer que a soberania como valor de independência de um Estado não passa de uma treta.

 

Mas, até aqui, limitei-me a aceitar que as sanções resultavam e eram provenientes de um areópago de representação internacional, contudo, sabemos ‒ e cada vez mais ‒ que há sanções determinadas à revelia da ONU, sendo que basta uma grande potência impô-las para ser seguida, canina e fielmente, por outros Estados, em atitude semelhante. E não faltam exemplos, na contemporaneidade, desta natureza.

Assim, e vistas as coisas como acabo de expor, o Direito Internacional já não é aquele que o concerto dos Estados definiu, mas aquele que o poder da força impõe.

Estas duas situações ocorrem em simultâneo nos dias de hoje e trazem desgraças terríveis a populações cuja única culpa é a de não conseguirem alterar a ordem política interna nos seus Estados para agradar a quem detém a força política internacional.

Estamos, cada vez mais, em nome de um Direito que é, por natureza, imperfeito a definir um mundo cada vez mais unipolar ou, no máximo dicotómico e maniqueísta, em tudo semelhante ao do tempo da Guerra Fria: “quem não está connosco, está contra nós” e isto em nome da vigência de uma democracia universal a qual não passa de uma tremenda, obscura e alienante ditadura gerida aos mais altos níveis por poderes com capacidades globais.

 

A Europa, como “mãe” ou berço da cultura ocidental podia e devia exercer um forte papel na definição de uma democracia plural, mas, em especial, depois da 2.ª Guerra Mundial, em nome de uma economia de bem-estar, demitiu-se da sua posição de líder e deixou que fossem outros a ocupar este espaço cultural e político, resultando naquilo que acabei de expor.

Resta-me deixar no ar a dúvida sobre a justiça da democracia bipolar quando comparada com uma democracia multipolar sem ligações a interesses financeiros ou, melhor dito, a uma democracia desligada da influência da economia sobre a política. Será possível ou teremos de assistir impávidos à destruição da democracia para satisfação dos donos da finança mundial?

21.12.22

Aprender coisas simples


Luís Alves de Fraga

 

A vida é um processo de aprendizagem constante, dizem os sociólogos e digo eu, que já estou para lá dos oitenta, um ano, quase dois. Os contactos de todos os momentos vão-nos ensinando aquilo que jamais escola alguma poderia ensinar em manuais. O grande manual da Vida é a própria vida. Só é preciso ser sensível à dor física e moral e não ser totalmente idiota, porque até estes, pelo efeito de Pavlov, conseguem aprender algumas poucas coisas.

Mas, se os meus leitores julgam que não são tidos como idiotas, desenganem-se, pois, quem sustém o poder, mesmo que coroado pela grinalda mais gloriosa da democracia, sempre tenta lançar-nos o labéu de idiotas para cima. Disso se encarrega a máquina de propaganda dos partidos e dos homens poderosos da política. Aliás, quase garanto que a política é isso mesmo: enaltecer as inteligências dos eleitores até ter chegado o momento da vitória e, no segundo seguinte, idiotizar-nos para nos controlar tal como se fossemos animais a responder a estímulos sensitivos. Claro, este esquema aplica-se com certos requintes nas democracias onde os eleitores dão “mais luta”, porque, naqueles onde as vitórias “são favas contadas” qualquer agência de publicidade de vão de escada engendra os mecanismos de “venda” do político mais foleiro sem ter de se esforçar muito. E em ditaduras, nem se fala, porque só se carece de fazer rugir os mastins da repressão.

Vem tudo isto a propósito de vos relatar como me dei conta do embuste mais bem montado do regime fascista nos anos seguintes à 2.ª Guerra Mundial. Vou contar-vos.

 

Andava eu na Instrução Primária, quando o Império Colonial Português “desapareceu” para dar lugar às Províncias Ultramarinas, mas, a mudança dos mapas dos territórios de além-mar, que estavam nas salas de aula, não se fizeram de imediato e eu ainda consegui soletrar a primeira designação. Na minha 4.ª classe já não havia desses mapas, mas só dos novinhos com a nova designação. Por conseguinte, cresci sob a égide das Províncias.

Entrei para a Academia Militar em Outubro do ano em que a guerra começou em Angola, 1961, e estávamos, os do meu ano de admissão, todos entusiasmados porque íamos defender um Portugal “uno do Minho a Timor”.

Quero fazer aqui um pequeno aparte.

Pelos meus quinze anos, fui sozinho gozar, em casa dos meus avós, umas férias grandes, de três meses, nos Açores ‒ ilha das Flores ‒ com passagem pelo arquipélago da Madeira e fui confrontado, para espanto meu, com alfândegas por onde tínhamos de transitar para os agentes verificarem se levávamos “contrabando”. Ao voltar perguntei ao meu pai a razão de ser daquele procedimento e explicou-me que o trânsito de mercadorias entre o continente e as ilhas e vice-versa, estava sujeita ao pagamento de taxas aduaneiras tal e qual como se mudássemos de país; era uma forma o Estado arrecadar impostos. Acrescentou ser uma reminiscência da Idade Média e dos senhorios feudais. Mas, neste sistema entre ilhas e continente, a moeda era a mesma, o que, de certa forma, me levou a aceitar e compreender as alfândegas. Mais tarde, pouco mais tarde, vim a descobrir as “portas de Benfica” e as da Calçada do Carriche, onde ainda havia restos dos postos alfandegários de entrada em Lisboa. Depois, estudei os pedidos de empréstimos ao estrangeiro, durante o liberalismo, onde se dava como garantia as receitas das alfândegas. Tudo me fez sentido como herança de um passado e percebi que um imposto só se retira substituindo-o por outro!

Fecho o aparte.

 

Em Dezembro de 1966, casadinho de fresco, aí arrancámos ‒ eu e a minha mulher ‒ rumo a uma comissão de serviço na “Província” de Moçambique e foi quando comecei a ouvir falar do “escudo moçambicano”.

Na metrópole eu ganhava, ilíquidos, três mil e oitenta escudos e ia receber, em Moçambique, cinco mil e cem escudos, mas de lá. Podia transferir uma certa percentagem pré-estabelecida, sendo que o resto tinha de ser gasto na província.

Ora, eu havia alugado uma casa com renda fixa de mil cento e dez escudos em Lisboa, na Graça, e, pelo menos esse devia ficar por cá, mas, para começo de vida, se pudesse juntar mais qualquer coisa era o ideal, daí que esgotei a minha quota máxima de transferência. O meu problema colocava-se na maneira de fazer chegar à metrópole moeda que tivesse circulação legal em Lisboa, já que tanto eu como a minha mulher começámos, de imediato a dar explicações, que rendiam uns cobres para chegar ao fim do mês com qualquer coisa de jeito, depois de não vivermos miseravelmente.

Neste afã de mandar dinheiro, alguém me sugeriu a compra da moeda oficial sul-africana, o rand, e remeter as notas embrulhadas em papel-químico para não serem detectáveis. Foi esse o método utilizado para fazermos chegar mais alguns contos de réis a Lisboa, ludibriando os correios e as alfândegas.

Claro, descobri logo, sem grande esforço, que Moçambique era tão Portugal como a China era Inglaterra!

 

O homem branco comum, em Moçambique, acreditava que por lá era Portugal, porque não desconfiava da realidade, aceitando que a sua permanência e a da sua descendência naquela terra ia ser tão eterna como Deus. Para colocarem alguns cobres em Portugal, coitados, andavam nas papelarias à procura de parcelas da lotaria premiada comprando-a com escandalosas margens de lucro para o vendedor, mandando-as de seguida para Portugal, onde eram rebatidas e o dinheiro posto na magra conta bancária. Todavia, os magnatas que por lá havia, com participações nas acções e obrigações das grandes companhias de capital anónimo realizado por quotas, esses, compravam com moeda moçambicana aquilo que rendia juros em Lisboa, em escudo português. Esses, na altura da descolonização, só foram retornados, porque perderam os bens fixos e a vida faustosa e despreocupada que por lá tinham, pois o forte do seu capital estava bem conservado em Portugal, em contas bancárias, rendendo juros notáveis.

 

E foi assim, que, logo em 1966 e 1967 eu aprendi uma coisa simples: o Estado português era mentiroso e defender as colónias era defender interesses que nada tinham a ver com os africanos nem com os míseros colonos que exploravam os negros, pois, por lá vivia-se da exploração de muitos por poucos. Era tão simples perceber isto que, no meu regresso, em Fevereiro de 1969, já vinha sem vontade de tornar a África para defender fosse o que fosse.

Às vezes, aprender coisas simples não custa nada, basta estar somente com atenção aos por menores.

19.12.22

Acabou e vai começar


Luís Alves de Fraga

 

Acabou o campeonato do mundo de futebol, aquele que deu que falar e já pôs gente na prisão, na Europa, e muitos em valas comuns no Qatar. Mas isso, está bom de ver, é mais do mesmo, por isso, tudo vai voltar a começar. Aliás, a pergunta mais correcta será:

‒ E não esteve sempre tudo na mesma?

 

Por cá, a entrevista do Costa e o pedido de desculpas ao presidente da Câmara Municipal ocuparam a semana ou parte dela. Os grandes assuntos não se tratam ou tratam-se, julgando que, ao abordar estas coisas de lana-caprina, se está a contribuir para a resolução do que, realmente, é importante. Que inconsciência!

Alguém dizia, na semana transacta, que Costa está melhor preparado para ocupar um cargo na União do que para ser Primeiro-ministro em Portugal, tão-somente, porque aborda com muita mais segurança os temas europeus (números incluídos) do que os nacionais. Acho esta conclusão estúpida!

Ele tem de ir para os conselhos europeus preparado para discutir com gente que não brinca em serviço e, julgo, é uma questão de sobrevivência nacional a boa preparação para confrontar os parceiros de Bruxelas… por lá é que se decidem as coisas mais importantes cá de casa.

Algum dos patetas que o acusam de saber mais da Europa do que de Portugal é capaz de enunciar quais são os dossiês mais importantes que estão em discussão na Comissão e sobre os quais os responsáveis de cada Estado membro tem de se pronunciar? E o que dizem sobre isso os nossos jornalistas? Quantas colunas dedicam as nossas revistas e os nossos diários de referência às questões em discussão em Bruxelas e em Estrasburgo? Rigorosamente NADA! Ou, para não ser injusto, quase nada!

 

A política doméstica é importante, sem dúvida, mas nós ainda não percebemos que o paradigma político mudou: agora, a par dos GRANDES problemas estruturais nacionais temos de estar com o olho e a atenção nos problemas que se discutem nos conselhos de ministros da União, porque há uma linha directa entre as resoluções comuns e as que se devem adoptar nos Estados membros e nós ainda andamos a ver navios nesse aspecto.

Mas, é importante estar atento à União? Eu diria que é irresponsável não ligar ao que se passa em Bruxelas e em Estrasburgo, porque só a força da opinião pública é que pode travar as decisões que afectam as populações dos Estados. Na verdade, entre nós não há opinião sobre política internacional e nela podemos incluir a da União. Esquecemo-nos que as leis aprovadas em Estrasburgo, assim como as directivas de Bruxelas entram em vigor nos Estados membros, umas com aprovação dos parlamentos nacionais e outras nem disso carecem. Ora, depositar os nossos votos nos eurodeputados e nos membros do Governo eleito de entre a maioria parlamentar é entregar-lhes o direito de decidirem o que entenderem, como muito bem quiserem, porque estão respaldados pela legitimidade das eleições nacionais.

É horrível pensar que tudo pode acontecer só porque nos alheamos daquilo que só a nós pertence: a condução da política interna e externa do país. Claro que isto não ocorre unicamente em Portugal. Não. É transversal a quase toda a União. E a pergunta natural é: porquê?

 

Este desprendimento resulta do facto de ainda vivermos, no nosso continente, os nacionalismos herdados dos séculos anteriores; ainda não sabemos conciliar os nossos interesses nacionais com os interesses comunitários. Contudo, esta versão é menos verdadeira naqueles países onde a pressão popular é maior sobre os deputados e os partidos políticos. Por exemplo, em França os produtores de leite defendem a sua quota de mercadoria exigindo aos eurodeputados e aos deputados nacionais que se empenhem na luta contra a perda de direitos. Tal facto obriga a que a política francesa em Bruxelas leve em conta as exigências de Paris. Poderia referir outros exemplos, mas este chega para se mostrar a ligação directa que existe, hoje em dia, na União Europeia, entre as políticas nacionais e as políticas comunitárias. Por cá ainda impera o espírito de quintinha… se a minha está bem, que se lixe a do vizinho!

Ademais, tenho quase a certeza de que a maioria dos portugueses desconhece que nos centros de decisão da União estão acreditados mais de três centenas de lobbies que abarcam toda a gama de produtos vendáveis e compráveis no mercado comum. Só isto é suficiente para justificar todo o interesse possível no conhecimento dos grandes dossiês em discussão nos gabinetes de Bruxelas. Mas, quem sabe disto entre os portugueses comuns, entre o “homem da rua?

 

Creio que hoje terei ajudado os meus leitores a compreenderem o motivo pelo qual, ao longo dos anos, só em situações gritantes ‒ e o governo de Sócrates e o de Passos Coelho foram exemplos claros disso ‒ eu me empenho nestas tricas caseiras do nepotismo, do vigarista, do golpista, do subornador e do subornado. Claro que são casos importantes, mas não têm um décimo do valor das grandes decisões que se tomam à volta da mesa da Comissão, dos Conselhos de Ministros e do hemiciclo do Parlamento Europeu.

Há um programa, creio que na estação televisiva do Estado, em que uma senhora com o tempo super contado e limitado entrevista eurodeputados sobre assuntos europeus e, quando o vejo, sinto-me arrepiado até aos ossos com a pobreza dos diálogos, das perguntas e dos assuntos debatidos. Esse programa é o espelho do nosso desinteresse.

 

Estamos quase a acabar o ano e, na minha opinião, é a altura de repensarmos caminhos, atitudes e interesses. Quem me dera que o da nossa política fora de portas tomasse conta das nossas discussões. E não é só o que se relaciona com a União. É o que se liga com a CPLP, os PALOP, a NATO e tudo o mais que por aí vai.

Educar para a cidadania é educar para o que nos toca cá dentro das fronteiras e o que se reflecte cá dentro, vindo lá de fora.

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