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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.11.22

Tolerância zero


Luís Alves de Fraga

 

Na China, onde começou a infecção viral Covid 19, o governo, logo de início estabeleceu cordões sanitários com uma extraordinária reserva de sair de casa fosse para o que fosse ou pelo que fosse. Cidades inteiras ficaram de quarentena com atrasos económicos significativos. Quando acabavam as ondas de infecção abria-se com muita cautela as portas da convivência social e laboral.

Recordo que foi, então, elogiada a forma como se estava a proceder na China e que só por causa da mentalidade oriental é que era possível debelar contágios. Por cá morria-se que nem tornos sob o fogo de caçadores experientes. Veio a vacina e a abertura foi sendo gradual, cá em Portugal, e um pouco menos apertado por quase toda a Europa. Os grandes perigos tinham passado! E na China, que inventou vacinas para consumo próprio?

 

Bom, na China a tolerância zero manteve-se indefinidamente. Mas não se julgue se trata de uma medida sanitária cautelar. Não, meus amigos. Na China a introdução de redes sociais via web é mentira; os chineses só podem ver o que o governo entende, a censura é muito apertada, as notícias não circulam com a facilidade daqui, do Ocidente. Na China há um perfeito controlo da população e se ele tem sido suportado ao longo de décadas isso deve-se a dois factores: o país progrediu economicamente de uma forma extraordinária e os Chineses acreditam que ‒ e bem ‒ que tal progresso se deve ao novo regime comunista que lhes proporciona bem-estar e uma vida mais desafogada, em especial nas cidades, e, por causa disso, não se repetiu a revolta de Tiananmen, em 1989, em Pequim, nem se está a repetir. Nessa contestação já longínqua o que se pedia era liberdade, uma liberdade quase nos mesmos termos da do Ocidente… e os carros de combate (vulgo tanques) avançaram sobre os revoltosos. E o banho de sangue que se seguiu foi brutal. A repressão calou todas as bocas.

Mas a revolta de agora não exige o mesmo que a de ontem: pede o fim da tolerância zero e a queda de Xi Jinping, não pede as liberdades ocidentais. E porquê esta diferença?

 

Primeiro do que tudo, têm o bem-estar que nunca tiveram e que igualam ao do Ocidente que conhecem ‒ é vê-los aos magotes em Paris, Roma, Florença, Milão e até em Lisboa. Eles vêm ver o Ocidente, mas estão bem com o seu sistema que os obriga a trabalhar, mas lhes dá as vantagens (aparentes) que nós temos por cá ‒, depois têm uma estabilidade social que não os aflige, porque quem não sabe livremente as notícias do mundo, num país tão grande, não carece de as saber ‒ é qualquer coisa semelhante, com diferenças, ao americano médio do interior: sabe que existem os EUA, mas do resto do mundo são ignorantes ‒, em seguida, pressentem que a par do bem-estar se estão a preparar umas Forças Armadas descomunais que não devem ser só para defender a China. Ora, sabem, pelo menos por tradição passada de boca a orelha, os efeitos provocados por uma guerra na economia e no bem-estar geral. Xi Jinping assusta-os, porque uma tolerância zero quando em quase todo o mundo se anda sem máscara e se acredita no valor redutor dos efeitos da vacina, nada tem a ver com a epidemia ou, na melhor das hipóteses, tem pouco a ver com ela. Então para quê a tolerância zero?

 

É que este instrumento, dito sanitário, é, acima de tudo, um instrumento de controlo social e político. É tal e qual como se via, antigamente, nos circos, à batida do chicote no chão, os leões, embora rugindo, saltavam de banco em banco e atravessavam arcos em chamas. A isto chama-se condicionamento ou quase reacção pavloviana: Xi Jinping bate com o chicote e os chineses com muita boa vontade ou só alguma, “saltam” e o Presidente está para ficar. Cogitarão alguns pensadores mais ousados que a China se poderá tornar numa Coreia do Norte abundante, mas de chefia hereditária?

Leia-se Sun Tzu e veja-se como o general ou o político deve pautar o seu comportamento estratégico e diplomático, perante o inimigo ‒ e o inimigo pode ser o próprio povo chinês ‒ actuando com manha, com argúcia, com cautela, com força no momento próprio, aparentando uma tranquilidade e paciência que é característica dos orientais. Ora, Xi Jinping é, nesta altura o general de toda a China e, para prová-lo aceitou impávido e sem emoção no rosto a expulsão do antigo presidente de Hu Jintao do congresso do partido. O novo Presidente não é homem em quem se pode fiar e os chineses, sabendo-o, começam uma contestação que vai direita a uma medida partida dele, para começarem a pô-lo em causa.

Vamos ver quem leva a melhor e a que custo… Para mim, estou convicto que Xi Jinping vai sair vencedor, mas ferido de morte, porque, se ele é paciente, frio e calculista, essas características fazem também parte da cultura Oriental. Preocupa-me o aproveitamento estratégico que no Ocidente, algumas potências de grande influência (USA, Alemanha, França e Reino Unido), possam fazer não deixando que sejam os chineses a resolver por si mesmos os seus problemas, pois uma intervenção externa possivelmente conduz a um conflito armado, muito indesejado nos tempos que correm.

 

29.11.22

Estações espaciais em órbita


Luís Alves de Fraga

 

Vem anunciado em jornais, pelo menos estrangeiros, que na terça-feira, a China vai lançar um foguetão para colocar três astronautas em órbita na estação espacial, pensando mantê-la habitada durante dez anos.

 

Claro que compreendo a importância de, do ponto de vista científico, fazer experiências no espaço, usando seres humanos, porque, por muito que a robótica tenha avançado a par da chamada “inteligência artificial”, por enquanto, nada chega à capacidade de o homem fazer múltiplas escolhas em fracções de segundo.

Mas, para quê uma estação orbital? O que ganhamos todos nós com os milhares de dólares gastos nestas experiências?

Dizem que se fazem inúmeros ensaios, mas nunca vi (deficiência minha) explicado para leigos como eu quais são essas experiências… Ao menos as mais inócuas de todas. Nada, silêncio absoluto entre o público ignorante destas coisas espaciais!

Há muitos, muitos anos, estava eu nos Pupilos do Exército, quando foi lançado pelos soviéticos o primeiro satélite artificial e que se limitava a viajar numa órbita bastante baixa e só imitia um “bip-bip”. O Director convidou a maior autoridade nacional em astronomia, o, mais tarde engenheiro e Professor catedrático, Eurico da Fonseca que, nessa data era um simples autodidacta, com largos conhecimentos nesta matéria. Retive na memória, entre outros pormenores que não vêm a propósito, que só foi possível mandar para o espaço um satélite artificial, porque se tinham substituído as velhas válvulas termoiónicas dos aparelhos de rádio por um novo elemento chamado transístor, o qual, muito em breve passaria a tornar as emissões de rádio em algo muito fácil de escutar, porque, em vez de grandes caixas de madeira ou baquelite se reduziam a pequenos aparelhos, usando pilhas, sendo transportáveis de um lado para o outro. E assim foi, de tal modo que se deixou de usar a palavra radiotelefonia (ou só rádio) para se passar a falar de “transístores”.

Como grande comunicador que era, Eurico da Fonseca conseguiu prender-me a atenção durante um curto serão científico que jamais esqueci! Aprendi e nunca mais esqueci.

 

Faltam, agora, Eurico da Fonseca que nos divulguem com precisão e simplicidade o que fazem estes milhares de satélites que andam à volta da Terra em diferentes órbitas e mais o que se faz nas estações espaciais. Os comunicados da NASA ou são para entendidos ou não explicam nada. As nossas televisões, em vez de gastarem tanto tempo em telenovelas estupidificantes, em jogos de futebol e debates sobre eles, em concursos da caca, em noticiários alienantes, talvez pudessem intercalar entre filmes, concursos e chuto na bola, alguns entendidos que tivessem o dom de explicar para gente simples e com palavras compreensíveis aquilo que, certamente, nos “abria os olhos” para o nosso tempo e para o futuro. Assim, pessoas como eu, dadas a imaginar “conspirações” (mesmo quando elas existem), podem, com auxílio de filmes científicos e de espionagem, acreditar que os satélites, para além de servirem os GPS, servem também para bisbilhotar aquilo que se passa à superfície da Terra, em especial nos Estados que se consideram inimigos. E dada a resolução fotográfica alcançável, até são capazes de nos descobrir as feições ou a matrícula do automóvel.

 

Vivam os chineses que vão estar lá em cima a coscuvilhar aquilo que os “inocentes” lojistas não são capazes de ver e de transmitir às centrais de espionagem que têm montadas nos países do Ocidente! Ou julgam que vender linhas, dedais, vestidos e fazer arroz chau-chau com porco agridoce é só isso e não uma excelente forma de colher informações? Desenganem-se, são subservientes demais para assim esconderem uma arrogância que virá ao de cima no momento oportuno.

Pronto, estão os meus leitores a pensar, «Lá está ele a delirar!»

28.11.22

O programa da Júlia


Luís Alves de Fraga

 

Todas as tardes, na estação televisiva SIC, passa um programa feito em directo, com o título "Júlia", apresentado pela conhecida entrevistadora e pivot Júlia Pinheiro.

Não é que faça das minhas tardes um tão mau uso que fique frente à televisão a ver programas geralmente foleiros. Não. Por vezes, no intervalo de uma qualquer tarefa (leitura ou escrita) espreito o que está a dar na televisão e lá topo com este. E que vejo? Um drama qualquer, uma injustiça social e muito raramente (provavelmente é azar meu) uma entrevista onde tudo corre bem e todos acabam felizes e contentes.

 

Poderia cair na tentação, aliás, fácil, de classificar o programa como um tempo mal perdido e pouco educativo. É isso que acontece com quase todas as pessoas arvoradas em intelectuais. E vão por aí, porque só perdem tempo a apreciar a “rama” do programa; se fossem mais cuidadosos, se tivessem formação sociológica e política, e não se deixassem levar pelo pedantismo, talvez descobrissem “coisas” que não estão explícitas num programa, que parece feito para entreter “velhinhos” sentados nas cadeiras dos lares onde esperam a hora de partir deste mundo não se sabe bem para onde ou donas de casa já pouco dadas a grandes lidas, mas com lágrima fácil. Um programa para os desocupados terem assunto para a conversa coscuvilheira de vizinhas de bairro ou de prédio.

‒ Este mundo está desgraçado! Então, viu ontem na “Júlia” aquela pobre que os médicos lhe tiraram a esperança de vida? Felizmente ainda há uns poucos que se preocupam com a gente!

‒ Tem razão D. Maria… este mundo não nos leva longe! Mas reparou naquela senhora que estava a assistir e se debulhava em lágrimas? Se calhar era familiar da pobrezinha!

E assim prossegue o diálogo, que pode nascer, e nasce, depois de visto o programa. Mas pergunto-me eu: «O programa destina-se só a isto?» Não. Ele quer ir mais longe de uma forma subtil, na esperança de que um qualquer sociólogo, que não se chame António Barreto, seja capaz de atingir os verdadeiros limites de tudo o que está por detrás dos dramas que a Júlia Pinheiro tenta deixar a nu e em carne viva para cumprir uma finalidade social.

 

É verdade. Por detrás de cada história ali contada na primeira pessoa e conduzida por aquela mulher que se mostra compungida, mas não lamechas, estão críticas, primeiro a todos nós, que já não nos comovemos depois de ver as atrocidades que nos mostram as televisões nos telejornais, para nós que perdemos o sentido da solidariedade, para nós que nos tornámos meros ouvintes passivos prontos a virar costas a dramas que afectam “irmãos” nossos, depois as críticas vão direitinhas para as entidades estatais, desde a segurança social aos tribunais, aos hospitais, aos hospícios, à polícia que, em vez de prender e levar à prisão, deveria olhar com atenção para os sem-abrigos, encaminhando-os com estima social para locais onde possam sentir a existência de um lar, mesmo que a fingir, críticas que vão também para entidades e Ministérios onde se olha para a sociedade com a sobranceria própria dos que têm tudo e desprezam os que têm carências de afectos, de apoio financeiro ou somente moral.

É tudo isto que está lá atrás de uma Júlia Pinheiro e de uma televisão que nos serve desgraças para entretém, mas também como crítica.

Este tempo de ecrã televisivo devia prender os assessores dos ministros (pagos a peso de ouro) para largarem patacoadas próprias de quem nada sabe da vida ou quer passar por ela sobrevoando-a sem ver, com olhos de ver, aqueles que estão “amarrados” a tristes realidades de onde não conseguem sair por força do peso da bola de chumbo que lhes amarraram ao tornozelo.

 

Uma coisa vos peço, caros leitores, quando passarem pelo programa da Júlia Pinheiro na SIC, à tarde, oiçam com sentido crítico o que por lá se diz e deixem as lamúrias de lado para dar lugar à revolta contra quem permite que tudo vá acontecendo sem reflexos numa sociedade que se quer socialista e solidária. É isso que se diz no preâmbulo e em vários artigos (9.º alínea d); 20.º n.º 1; 25.º n.º 1; 63.º n.º 3; 65.º n.º 1; etc.) da nossa Constituição.

27.11.22

Receios


Luís Alves de Fraga

 

Todos os dias se morre em diferentes idades, mas, pela ordem natural (e aqui este “natural” tem a ver com a Natureza) das coisas, morrem mais velhos do que novos. Ora, seguindo esta “lógica” estou mais perto da idade de morrer do que já estive… fui escapando entre os pingos da chuva! Assim, tive mais tempo para “engolir sapos” do que era espectável e está na hora de os “vomitar” de mistura com todos os sucos gástricos que me foram envenenando a existência e as digestões.

Acontece que, na falta de outras pessoas com quem conversar e com grande prazer meu, discuto os temas sobre os quais tenciono escrever com a minha mulher. Ora, a prudência das senhoras é, por regra, muito maior do que a dos homens e lá vem o discurso inevitável: «Se fosse a ti, não escrevia nada disso! Ainda te vêm chatear e tens aborrecimentos sem necessidade». Ela preza e zela pela minha saúde física e mental, mas esquece que sou um polemista com gosto e por gosto. Claro, as polémicas dão-me tratos de polé à paciência e ao pensamento, mas, enquanto me entretenho a pensar nelas, não penso noutros assuntos, talvez mais incómodos.

Tranquilizo a minha mulher, dizendo-lhe: «Não te dê cuidado, porque não é desta vez que o coração vai parar por causa do calor das discussões!» Contudo, algumas vezes, penso que ela está cheia de razão e, calando-me, continuo a fazer mal a digestão de mais um sapo.

 

Mas que coisas terei que me incomodam durante quase uma vida? Bom, para além de um ou outro assunto das minhas actividades profissionais, incomodam-me atitudes de pessoas que foram amigas ou mesmo daquelas que nunca o foram.

A mentira, a hipocrisia, a vaidade balofa são outros tantos temas que me revoltam e sempre que tenho de aturar um indivíduo que mente, que é hipótrica ou é vaidoso balofo ou vaidoso por inveja, lá vai mais um sapito goela abaixo para o caldeirão onde os vou cozinhando em lume brando.

 

Ainda há dias não engoli um desses sapos, porque de imediato rejeitei a “refeição”. Trata-se de um companheiro de há muitos, muitos anos, que não fez na vida mais do que ser bom aluno e trabalhar para ganhar dinheiro. É um vaidoso sem remédio de qualquer espécie e um despeitado, porque nunca viu, ao longo da existência, reconhecidos aquilo que ele considera “trabalhos de alto gabarito”. A única coisa que fez e que merecia louvor público foi por ele tantas vezes anunciada, debatida e repisada que acabou perdendo o mérito que poderia ter tido. A vaidade cega-o e, depois, leva-o a fazer falsas afirmações com a veemência de quem está a dizer uma verdade irrefutável. Quando alguém lhe quer mostrar como está errado, como está a distorcer os factos, como está a ser vaidoso, insulta o interlocutor indo buscar assuntos de um passado distante em que ele era o “máximo” e o interlocutor um jovem dentro dos padrões correntes da normalidade de então.

 

Já foram tantas as vezes que o “chutei para canto” que já nem me lembro. Desculpo-o, porque lhe conheço o ego do tamanho de qualquer grande cidade de milhões de habitantes, mas, desta vez, acho, foi definitiva a minha resolução. Lá se foi um sapito desta para melhor.

Está claro que me faltam os grandes sapos, os sapões, os profissionais, mas, esses, creio, ainda vou ter tempo para um, por um, os ir vomitando. Lá chegaremos!

26.11.22

Duas importâncias diferentes


Luís Alves de Fraga

 

  1. Morticínios

Quando faço a análise da guerra russo-ucraniana e não olho às baixas, aos horrores do conflito, assumo, propositadamente, a posição de oficial de estado-maior que se centra nos objectivos e nos resultados e tem de esquecer que na frente de batalha estão homens e mulheres fardados prontos a morrerem ou ficarem estropiados e, por vezes, por atrás das linhas estão civis sobre os quais têm de cair efeitos colaterais do conflito para que se cumpram os desígnios traçados sobre os mapas.

Poder-me-ão olhar quase como um monstro desumano, insensível, bárbaro e carniceiro. Qualquer estrategista que se deixe prender pelos horrores da guerra, seja general ou mero componentes de um estado-maior acaba tendo um colapso nervoso ou suicidando-se ou fugindo da guerra. No estado-maior tem de se ter em conta o que se quer alcançar e deixar de lado o quanto vai “custar” essa manobra. Tem de haver uma frieza que se afasta do comum da normalidade. Aliás, estou convencido, esta será a razão que leva a chamada tropa de linha a detestar os oficiais dos estados-maiores. Os primeiros estão sujeitos ao perigo imediato e os segundos, só quando há ataques em grande ou específicos é que sentem o peso da guerra. Nós, os portugueses, sentimos essa dicotomia na 1.ª Guerra Mundial e sobre o assunto muito se escreveu, em especial, porque uma boa parte dos filhos dos grandes políticos estavam fora das linhas de combate em cargos de apoio ou de estado-maior. Claro, houve excepções.

 

Mas eu sou insensível aos massacres que vejo na televisão, quase sempre ‒ ou mesmo sempre ‒ de ucranianos? Não. Como homem penso nos horrores que aquela gente tem passado, em especial as populações civis. Como homem levo em conta o que não é mostrado: os feridos, inválidos e mortos feitos pelos combates de artilharia entre os soldados e, como nada me liga, em termos de afectividade, nem aos ucranianos nem aos russos, penso no sofrimento de todos os combatentes. São jovens lançados no caldeirão da guerra que, na maior parte das vezes, nem a compreendem.

As guerras, todas as guerras, são um oceano de sangue de sofrimento eis a razão pela qual não gosto dos conflitos armados entre Estados e povos. E gosto menos, porque sou militar e nós sabemos o que é sofrer por obrigação. Todavia, como comentador da guerra, nada esclareceria se me dedicasse a contar a dores dos combatentes, pois em nada ajudaria a compreender esse mesmo sofrimento. Importante é perceber porque se sofre e o que alcança ou se perde com tanta maldade. Acima de tudo, quando estão reunidas as razões para acabar o conflito se os políticos, únicos responsáveis pelas chacinas bélicas, o quiserem, arcando com o peso dos ganhos e das perdas.

 

  1. Licenciaturas na Academia Militar

Uma crónica escrita há dias provocou em alguns leitores mais mal informados uma ressabiada reacção onde não faltaram os ataques à minha pessoa.

Ora, acontece que, por regra, só falo do que sei, por isso, aqui vou dar algumas explicações sobre as tão celebradas “licenciaturas” em Ciências Militares (que gostaria de inquirir  se algum dos ditos “licenciados” sabe quais são) anteriores à data em que foram, efectivamente, criadas, pois essas “pérolas” só nasceram depois de Abril de 1974, havendo contudo, quem se arvore em “licenciado” pela Academia Militar antes da Revolução.

Comecemos pelo Decreto-Lei n.º 42151, de 1959, que criou a Academia Militar, «estabelecimento de ensino superior destinado a formar oficiais para os quadros permanentes do Exército e da Força Aérea - Considera-se extinta, a partir da entrada em vigor do presente diploma, a Escola do Exército.»

A dado passo, diz-se no preâmbulo: «Os cursos frequentados com aproveitamento passam a ser equiparados, para efeitos gerais, aos demais cursos superiores.» Ora, equiparar não é igualar!

 

Compulsada a legislação sobre a Academia Militar e salvo qualquer falha de análise, só pelo Decreto-Lei 678/76, de 1 de Setembro, no Art.º 32.º se diz: «Os cursos ministrados na Academia Militar para a formação dos oficiais destinados aos quadros permanentes do Exército e da Força Aérea são, para todos os efeitos legais, considerados cursos superiores e conferem o grau académico de licenciado em Ciências Militares.» Não satisfeito com isto, o legislador, dez anos depois, no Decreto-Lei n.º 48/86 de 13 de Março afirma, no Art.º 2.º, taxativamente, o seguinte: «1 - Na prossecução do seu objectivo, os EMES conferem o grau de licenciado em Ciências Militares, na especialidade que lhes corresponde.

2 - Os cursos de formação referidos no artigo 1.º que eventualmente não possam ser abrangidos na designação geral de licenciatura em Ciências Militares terão uma designação específica, que inclui o termo militar adequado, para diferenciação dos seus possíveis equivalentes civis.

3 - O grau de licenciado conferido pelos EMES é de nível equivalente ao grau de licenciado conferido pelas universidades

Quer dizer, já não era licenciado, mas equivalente.

 

São necessários um pouco mais dois anos para, o Decreto-Lei 302/88 de 2 de Setembro, no Art.º 8.º n.º 2 estabelecer, sem reticências, o seguinte: «Através dos cursos mencionados no número anterior a AM confere o grau de licenciado em Ciências Militares, na especialidade que lhes corresponde.» E, logo de seguida, no n.º 4 do mesmo artigo, vai mais longe e estende, pela primeira vez, estes estatuto a todos os antigos alunos da Academia Militar, estabelecendo o seguinte: «O disposto no n.º 2 do presente artigo aplica-se aos cursos de formação de oficiais ministrados neste estabelecimento militar ao abrigo do Decreto 678/76, de 1 de Setembro, do Decreto-Lei 42151, de 12 de Fevereiro de 1959, e do Decreto-Lei 30874, de 13 de Novembro de 1940.» Ou seja, a todos os antigos alunos da Academia Militar e aos da antiga Escola do Exército. Estranha forma de fazer de todos licenciados por Decreto.

 

Sempre recusei esta forma perfeitamente esdrúxula de ser licenciado de forma administrativa. Mas há e houve quem goste e tenha gostado, por sentir necessidade de ser “senhor Dr.”, tal como se o uso da distinção do posto militar não lhe chegasse, dando mais importância àquilo que, afinal, em meu entender é francamente menor: a licenciatura, pois qualquer borra-botas pode ser licenciado, enquanto ser oficial das Forças Armadas não está ao alcance de todos, quer pela missão quer pela preparação que exige.

 

Julgo que deixei esclarecido este ponto polémico. Contudo, chamo a atenção que uma tal solução, concebida em 1976, cometeu, quanto a mim, um grave erro: meteu as Academias Militares na Universidade, ao juntar aos curso que nela conferem o tão ambicionado grau de licenciado, ficando, por isso sujeito ao que nesta se passar e se decidir, em vez de meter nas Academias a Universidade, através da inclusão de licenciaturas específicas (como acontece nas engenharias) obrigando esta última a aceitar as especificidades militares. Mas, enfim… Nunca fomos muito dados a perceber jogos de poderes e, assim, hoje, é uma entidade civil (A3ES) quem aprova os cursos militares ministrados nas Academias, podendo suspendê-los a seu bel-prazer ou por mera teimosia ou porque acha que não correspondem, em nível, aos padrões por si estabelecidos.

E refila-se tanto por causa das reformas ao mais alto nível dos comandos militares e deixa-se esta matéria ao Deus dará!

24.11.22

Da ânsia ao disparate de comandar


Luís Alves de Fraga

 

Recebi, via e-mail, convite para o lançamento de um livro no Instituto Universitário Militar (IUM), começando por indicar que o comandante daquele estabelecimento tinha o prazer de etc. Isto deixou-me pensativo, gerando em mim uma tremenda apreensão. Vou explicar-me.

 

O IUM é o herdeiro de três Institutos militares onde se ministravam cursos de formação de oficiais superiores e de oficiais-generais dos três ramos das Forças Armadas (FFAA), a saber: Instituto Superior Naval de Guerra (ISNG), Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM) e Instituto de Altos Estudos da Força Aérea (IAESFA). Devo acrescentar que na ordem cronológica formativa dos oficiais das FFAA existem, antes, a Escola Naval, a Academia Militar e a Academia da Força Aérea, constituindo cada qual a respectiva “alma mater” de cada oficial dos três diferentes ramos.

A ideia de formar uma universidade militar foi, há muitos anos, ou lançada ou apadrinhada pelo recentemente falecido Professor Adriano Moreira com uma bem evidente finalidade: gerar uma unidade de doutrina e de pensamento nos oficiais militares de modo a poderem constituir um bloco único, uniforme e monolítico dentro dos organismos que constituem os suportes do Estado. As Academias resistiram à tentação uniformizadora, porque, como é lógico, nos futuros oficiais, têm de se inculcar pensamentos idiossincráticos próprios de cada ambiente de “trabalho”: o mar, a terra e o ar. Todavia, ainda foi tentada a chamada “formação geral comum” com a frequência do primeiro ano das diferentes Academias na Academia Militar, embora fardando já segundo a opção de cada cadete. Rapidamente se percebeu ser um erro que não conduzia a resultado futuro duradouro. Assim, nasceu desse falhanço o IUM, que apanha os oficiais já numa fase de maturação muito mais avançada no plano idiossincrático e ainda suficientemente receptivos para avançar para um monolitismo ideológico e profissional que dê garantias de grande estabilidade.

Acenou-se aos oficiais com a possibilidade de obterem graus académicos iguais aos de qualquer universidade civil, facto que já tinha precedentes nos anos de 1980, quando se legislou no sentido de tornar os cursos das Academias em licenciaturas militares.

 

Fui, no tempo, embora em vão, porque nem tinha voz nem posto para ser ouvido, dos poucos oficiais que discordou da licenciatura, como, mais tarde e já na situação de reserva, discordou da ideia de uma universidade castrense. Um oficial militar não carece de títulos académicos para o desempenho das suas normais funções bélicas, porque a sua profissão é única e inconfundível. Se, por iniciativa pessoal os quer obter (e deve fazê-lo) tem as universidades (civis) para alcançar os títulos e os saberes que mais lhe convierem, podendo chegar ao mais alto grau do conhecimento em perfeita concorrência com os seus pares civis (coisa que não se pode inverter para os civis, frequentando uma universidade militar).

Como se vê, para mim, tudo isto é um erro e uma armadilha ‒ um general não tem que ser doutor nem um alferes tem que ser licenciado e mestre, porque, subtilmente, se está a dar prova de uma inferioridade que se não tem: alferes, capitão, coronel e general são isso mesmo e mais nada, porque têm uma hierarquia que os define e caracteriza. Se, em concorrência com civis, acrescentar à graduação militar um título académico só estará a valorizar-se, a valorizar as FFAA e a superiorizar-se em relação aos seus colegas civis e isso faz toda a diferença!

Só por mera curiosidade, recordo que, em plena Monarquia, um titular, que fosse, em simultâneo, oficial militar, antecedia o título com o posto que tinha nas FFAA, daí que na estátua do duque de Saldanha, em Lisboa, surja primeiro a indicação de marechal e, só depois, a do título que lhe havia sido conferido pela rainha. Sempre foi assim!

 

Mas existe o IUM e os oficiais parece estarem satisfeitos com esta pompa balofa. Ora, se existe tem de corresponder às características de um Instituto Universitário que ou tem um reitor ou um Director e jamais um comandante, porque comandar é um atributo essencialmente militar ‒ mandar em conjunto, na base etimológica da palavra ‒ e uma universidade não é comandada!

Resumindo, sobre uma série de erros, segundo a minha forma de ver, vem mais um ‒ o do comando ‒ mostrar que ou há uma ânsia de comandar ou está a cometer-se um tremendo disparate ao mais alto nível do Instituto Universitário Militar.

23.11.22

O mundo de todos os direitos


Luís Alves de Fraga

 

Estão a ser avassaladores os protestos contra o Qatar e o mundial de futebol e o não respeito pelos direitos humanos que reina naquele emirato. Acredito que a maioria das pessoas encontre em tudo isto razões para bramar das mais diferentes maneiras, até como deu a entender o nosso Presidente da República de que há um tempo para futebol e outro para direitos humanos.

 

De futebol, nada percebo; de direitos humanos creio ter plena consciência que é uma matéria sensível e em constante mutação sobre a qual possuo alguns conhecimentos e muitas dúvidas; e sobre o Qatar sei o que quase toda a gente sabe: o dinheiro é muito, o luxo é imenso e os negócios sujos são a pontapés.

Em face destes circunstancialismos, a “farpa” de hoje andará à volta dos dois últimos aspectos, já que, no chuto na bola, não quero nem meter colher nem pé.

 

Que houve vigarice na escolha do Qatar para por lá se jogar o mundial de futebol, todos nós sabemos. Mas, sejamos coerentes e deixemos cair a pergunta que poderia ser Jesus, o Messias, a fazer:

‒ Neste mundo de agora e de hoje só se fez vigarice na escolha do Qatar? Não há mais vigarices na política mundial? Não há mais trapaças por esse mundão? Então, quem estiver isento que atire a primeira pedra!

 

Claro, posta a questão nestes termos, imediatamente se pretenderá relativizar a vigarice… Esta ou as outras. Surge o argumento de que uma coisa é o futebol e outra os direitos humanos; uma coisa é o gás natural e o petróleo e outra o reconhecimento da ausência de democracia no Qatar e, mais isto e aquilo.

Pois, o problema está no mais isto e aquilo! É que quando se mistura diversão com negócios, política e moral o caldo fica todo entornado… Se se pretende negociar sem empecilhos têm de se ultrapassar determinados conceitos de natureza ou política ou moral e vice-versa. Mas o mais fácil é seguir o caminho que, desde a mais remota antiguidade foi traçado: converter os povos às mesmas religiões para se negociar e “reinar” em “tranquilidade de consciência”. Foram os Fenícios que, paulatinamente, impuseram os seus deuses aos povos com quem comerciavam, também assim procedendo os gregos, os romanos, os celtas, os visigodos, os católicos, os muçulmanos, os hindus, os, budistas e tantos outros que sempre entenderam estar na igualdade de princípios morais a suavização das arestas que as vendas e trocas geram ao fazerem-se. Mas será agora o tempo de “converter” o Qatar à nossa moral tal como o fizeram os comerciantes do passado?

A moral é uma das expressões mais fortes de qualquer cultura, assim como a língua, mas, aquela sobrepõe-se a esta ‒ com línguas diferentes, mas com princípios morais iguais o entendimento é possível ‒ de tal forma que é na base das diferenças morais que nascem os preconceitos de toda a natureza, em especial os raciais e os xenófobos. E eles, para que não subsistam dúvidas, estão à vista.

 

Ora, no Qatar e naquilo que se realiza durante quase um mês, o elemento cultural que se vai impor é o futebol e a sua forma de gerar comportamentos culturais e, assim, o Estado anfitrião quer assumir-se como o monte Olimpo da Grécia clássica: durante aquelas disputas de chuto na bola todas as divergências se aplacam, como nas Olimpíadas do mundo grego, para se centrarem somente nesse segmento cultural da actualidade, e lá vão todos os “crentes” dos deuses futebolísticos prestar-lhes culto, aplaudindo os vencedores e vaiando os vencidos. Não queiramos que o Qatar seja mais do que aquilo que é!

Quando Marcelo Rebelo de Sousa diz que vai fazer a apologica dos direitos humanos na sua ida aos jogos de futebol ou está a enganar-nos ou está completamente enganado: ali só se vai falar de “coice na bola” e esquecer todas as diferenças e todas as divergências. Depois, sim, será o tempo, se os homens assim o quiserem, de conversão do Qatar aos direitos que tanto elogiamos.

 

Os comentadores de todo o mundo, que falam agora dos direitos humanos e na falta deles quando se construíam as “catedrais” e os “templos” daquilo a que já chamaram “desporto-rei”, são os lapidadores prontos a atirar as pedras na “adúltera” que todos desejaram ter tido no leito. Esta é a hipocrisia do nosso tempo! Este é o tempo de todas as hipocrisias!

22.11.22

Da “ciência militar” dos comentadores civis


Luís Alves de Fraga

 

Tenho acompanhado, com o fastio de um doente grave, os comentadores televisivos civis de coisas militares, nomeadamente, da guerra russo-ucraniana e só não mudo de canal para poder, como professor que fui, durante trinta e cinco anos (entre estabelecimentos militares e universidade), apreciar as calinadas e “dar nota” a esses senhores (e algumas senhoras, de quando em vez).

É que não basta ter estudado Geopolítica, Geoestratégia e Relações Internacionais numa qualquer universidade nacional ou estrangeira para se estar habilitado a dar palpites sobre o desenrolar da guerra e as razões das manobras militares que se fazem de cada lado da linha divisória das operações. É preciso muito mais!

 

Por regra, na vida de um oficial de carreira, no tempo em que assentei praça como cadete na Academia Militar (1961) havia que se fazer, no mínimo, três cursos longos para se ascender na graduação: o da Academia ‒ que preparava as bases fundamentais para toda a vida militar, de alferes a general, e que nos dotava de capacidade de comando até ao posto de capitão inclusive ‒, o curso de promoção a oficial superior ‒ que nos dava conhecimentos e prática para o exercício nos postos de major a coronel ‒ e o de oficial-general ‒ que preparava para o exercício das funções de brigadeiro a general de quatro estrelas. Claro que, a estes, associavam-se outros cursos mais curtos, com excepção do de oficial de estado-maior, vocacionados para o desempenho de funções na arma ou serviço respectivo. Mas, para o efeito, o que pretendo destacar é que, o da Academia Militar, intenso e intensivo, durante três anos e mais um quarto de tirocínio ou estágio, nos dava as bases teóricas dos três conhecimentos fundamentais da vida castrense ou, se se preferir, das Ciências Militares: Estratégia, Táctica, Organização e Logística.

À primeira estava indissoluvelmente ligada a Geografia e esta, para ter algum interesse, associava a Topografia e as Informações (que serviam muito a Táctica); na Táctica estudávamos a movimentação no terreno de grandes unidades militares e suas parcelas mais pequenas (da divisão de infantaria ao simples posto de socorros ou posto de abastecimento de géneros); na Organização aprendíamos a estrutura a que devia obedecer a formação de um exército, começando pelas funções do seu estado-maior e acabando na da secção de infantaria ou na de qualquer das outras armas ou serviços; na Logística era-nos ensinada a estrutura de toda a cadeia que alimenta e põe em marcha uma grande unidade militar.

Esta era a visão mínima para quem se destinava a atingir, se atingisse, o posto de general. Assim, eu e os meus camaradas, à saída da Academia Militar sabíamos olhar para uma carta militar (o mesmo que um mapa físico) e “colocar no terreno” uma divisão de infantaria, da mesma forma que sabíamos mover um pelotão (pouco mais de trinta soldados). Mas também sabíamos o que era uma manobra de reconhecimento, uma retirada estratégica ou a exploração do sucesso, para além de muitíssimo mais.

Como parêntesis, cabe aqui a minha crítica a todos quantos dizem mal dos ministros da Defesa Nacional que nunca fizeram serviço militar, pois tão ignorante é aquele que não foi militar miliciano como aquele que o foi, porque um alferes em cumprimento do serviço militar obrigatório só sabe ‒ e, às vezes, mal ‒ comandar um pelotão e nunca ouviu falar de Táctica superior à de uma companhia. Fecho o parêntesis.

 

Todo este arrazoado, para além de querer deixar evidente a ignorância da maior parte dos nossos comentadores televisivos de coisas castrenses e bélicas, procura provar que só se têm feito afirmações erradas sobre a retirada das tropas russas da bolsa de Kherson, atribuindo-a a uma vitória da Ucrânia.

Aqui, não há nem derrota nem vitória de nenhum lado! Há, simplesmente, uma manobra estratégica/táctica de grande envergadura por parte dos russos. Vejamos.

Foi em Kherson que eles conseguiram ultrapassar o rio Dniepre e instalaram-se ofensivamente, como ponta-de-lança na margem direita com vista a alargarem essa testa de ponte para um futuro avanço. Não conseguiram ir mais além. Pelo contrário, os ucranianos estavam prontos a estabelecer um cerco a esse enclave. Manterem-se na posição, isso sim, ia corresponder a uma clara derrota e, na impossibilidade de se conservarem na área conquistada e alargá-la, optaram por uma retirada para a margem esquerda do rio, instalando-se defensivamente. Em tempo oportuno, e de acordo com os movimentos das tropas ucranianas, o alto comando russo há-de optar por preparar dois ataques simultâneos: um de finta e outro com finalidade ofensiva para romper linhas e obter resultados, isto se a iniciativa não for dos ucranianos.

 

Estrategicamente a situação está “empatada”: não há vencedores nem vencidos ou melhor dito: à um vencedor, a Rússia, que ocupa solo ucraniano, mas o impasse é evidente. Resta à Rússia desmoralizar a retaguarda inimiga através de lhe criar péssimas condições de vida durante o rigoroso Inverno que aí vem. Claro que Moscovo tem de contar com o poderoso auxílio militar em armamento que os EUA, o Reino Unido e a Alemanha estão a dar a Kiev. Mas isso são contas de um outro rosário.

 

Em conclusão, a “vitória” de Zelensky não passa de mais uma das suas muitas manobras de teatro pífio e de propaganda a que nos vai habituando. Cabe, agora, aos estrategistas do Pentágono e aos economistas da Casa Branca e do Senado saber se vale a pena continuar a apostar na carta que tem como figura o actor-presidente, substituindo-o por outro mais "maleável". Se calhar, em face dos gastos e dos mortos, é tempo de convencer a Ucrânia a perder uma fatia do seu terreno a Leste e de Washington desistir de estender a OTAN àquela zona de cerco à Rússia, porque a Coreia do Norte está a lançar sérios avisos sobre o que se pode passar, se a China, sua aliada, optar por fazer valer direitos sobre a Formosa.

Merecíamos uns comentadores capazes de desmistificar a guerra, os bons e os maus da fita!

19.11.22

Coisas de um outro tempo


Luís Alves de Fraga

 

Ao estarmos todos com o “Credo na boca” por causa das profundas alterações climáticas, eu resolvi recordar coisas de quando era garoto, sendo comuns a muita gente da minha idade, que agora lê este apontamento, e, ao mesmo tempo, incomuns aos mais jovens que, ou só ouviram contar ou nem isso.

São lembranças de um ”menino da cidade de Lisboa”, nascido no meio de uma classe média baixa, com mais ou menos remedeio financeiro, graças ao trabalho extra de um pai que podia manter duas formas de fazer “entrar” dinheiro em casa.

Primeiro do que tudo, vejamos, em traços muito largos, o que era a cidade de Lisboa entre 1941 e 1955, mais ou menos.

 

Vista do ar, de avião, a nossa capital fazia lembrar, “grosso modo”, um chapéu de coco: estendia-se junto ao Tejo, numa faixa pouco profunda para Norte e para Sul (a Lisboa oriental e a ocidental), indo até Xabregas, por um lado, e até Algés e Dafundo, por outro; o chapéu, propriamente dito, tinha o centro na hoje Praça do Comércio e subia até Benfica, formando um redondo ali por volta do Alto de S. João, de um lado, e outro por Campolide/Campo de Ourique. No “interior do chapéu” ficavam os bairros típicos que iam da Graça a Alfama, de Benfica a S. Vicente, à Madragoa, a S. Bento, Rato, Bairro Alto e, mais distante, Alcântara tudo ligado pelas ruas adjacentes numa malha mais ou menos confusa e intrincada.

Os automóveis eram poucos e circulavam mais intensamente na chamada “Baixa”, o mesmo é dizer, na zona de entrada do “chapéu”. Quanto mais nos afastávamos do centro mais raros eram os veículos movidos a combustíveis fósseis; havia carroças puxadas por muares e, às vezes, burricos com alforges de cada lado, carregando tudo o que imaginar se possa… e até havia as carroças do lixo e dos cães! A Lisboa dos bairros “típicos” era a cidade hipomóvel, sendo que na zona da “Baixa” só no fim da noite e madrugada dentro era frequentada por carroças para alimentarem o imenso mercado da Figueira, também chamado praça da Figueira.

Os transportes eram os designados “carros eléctricos” dos quais resta a memória da carreira 28 (da Graça à Estrela) e pouco mais. A rede electrificada servia toda a cidade de Norte a Sul de Leste a Oeste e abria-se como ribeiros descendo as colinas e passando pelos vários planaltos de Lisboa. Não ganhava grandes velocidades (as maiores eram as que corriam ao lado do rio para Algés e o Dafundo, nessas o guarda-freios largava-os e lá se ia a quarenta ou cinquenta quilómetros à hora). Mas, ainda que vagarosos, os “eléctricos” eram “rápidos”, porque, não havendo automóveis e carroças a empatar, eles chegavam lestos aos términus das linhas. Para se perceber, em 1954 ia-se da Graça a S. Domingos de Benfica em cerca de meia-hora ou dos Anjos (na Avenida Almirante Reis) a Alcântara em vinte a trinta minutos. Quem tinha duas horas para almoçar dava para sair do emprego, ir a casa comer e voltar. Que Lisboa tranquila era esta!

 

E as casas de Lisboa? O Professor Oliveira Marques explica muito bem, na sua “História de Portugal” o traçado dos interiores das habitações lisboetas, do começo do século XX. Mas, tentemos dar um panorama mais geral.

As casas do século XIX e anteriores não tinham um projecto racional, resultavam do espaço para construir o fogo e, dentro deste, as divisões faziam-se de acordo com a sensibilidade do proprietário do imóvel ou do empreiteiro. Casa de banho era coisa que não existia, nem sanita. As necessidades básicas eram feitas em bacios, também designados por penicos, que, depois se despejavam na pia da cozinha, única canalização para o esgoto colectivo do prédio, que ligava à canalização urbana que, em regra, se encaminhava para o rio Tejo ou para as ribeiras existentes a céu aberto ou já encanadas, as quais acabavam chegando ao rio, no qual ainda nadavam golfinhos e se pescavam peixes para servir à mesa.

 

Quanto aos banhos, eram, em regra, semanais e tomados em banheiras de folha de flandres zincada, que se enchiam com panelas de água aquecida no fogão e depois se temperava com água fria vinda das torneiras da casa. A cozinha era, naturalmente, o local próprio para fazer as lavagens semanais.

Nos quartos havia bacias de porcelana (a maior parte das vezes de ferro esmaltado), encastradas numa armação de ferro pintado, que despejavam para um balde e havia também um bidé para as lavagens “menores” e diárias. Claro, junto da cama, na mesa de cabeceira, por trás de uma portinhola, lá estava o bacio ou “vaso de noite”.

 

E os cómodos para preservar a roupa que se não usava? Temos aqui uma outra novidade. Na casa não havia os chamados roupeiros e, muito menos, closets; havia um ou dois guarda-fatos (consoante o número de membros da família e o tamanho dos ditos móveis) e neles se pendurava a roupa de Verão e de Inverno, porque isso de roupa de Primavera e Outono era coisa que não existia. Assim, nos ou no gavetão do ou dos guarda-fatos guardavam-se as camisas do homem. Era um móvel para ter os fatos, vestidos e casacos compridos, a gabardina, o sobretudo e nada mais. No chamado psiché, que servia de toucador para as senhoras, metiam-se, nas gavetas, as blusas e camisolas, bem como a roupa interior do homem e da mulher. Eventualmente, e nas casas com um pouco mais de espaço, havia um móvel camiseiro, com gavetas fundas, para as blusas, camisolas e camisas. No quarto de dormir, para além destes objectos de resguardo, existia a cama, as duas mesas de cabeceira e uma ou duas cadeiras.

 

Vinha, depois, a sala de jantar, que na maioria das vezes, funcionava, também como sala de visitas. Por lá, para além das cadeiras e da mesa, havia o que se chama um aparador e, às vezes, um louceiro onde se guardavam o serviço de pratos, de café e de chá se houvesse dinheiro para os ter completos ou quase. E uma pequena mesa (se houvesse) onde repousava o aparelho de rádio, para ouvir música e os noticiários.

No resto da casa poderiam existir os quartos dos filhos que, mais modestos, obedeciam ao padrão do dos pais e a cozinha onde para além dos armários havia uma mesa, que podia servir para comer todos os dias e nela confeccionar as refeições; o fogão, sobre a pedra que finalizava a chaminé, poderia ser de lenha (os mais antigos e mais caros) fogareiro ou fogareiros a carvão ou, mais moderno, a petróleo ou super moderno, a gás. Por baixo da pedra da chaminé ficava a chamada carvoeira onde se guardava a lenha ou o carvão. Na parede havia um armário todo revestido a rede fina, que servia para guardar os restos das refeições durante as próximas vinte e quatro horas, porque isso de frigorifico ou geleira era coisa para muito rico.

A casa era, como se dizia, para a mulher e para os filhos enquanto não podiam brincar na rua, porque a exiguidade, por ser enorme, atirava o pai para o café ou para a tasca onde à volta de uma bebida retardava a chegada ao lar.

 

Creio ter dado um retrato mais ou menos fiel das casas da pequena e média-baixa burguesia de Lisboa no período a que me reportei.

Esta cidade com este tipo de vida não era uma urbe de consumo; era uma povoação onde se trabalhava, comia, dormia, vivia os bons e maus momentos até à hora da reforma ou da morte.

 

Havia poluição em Lisboa? Claro que havia, mas, nas noites sem lua, ainda se viam brilhar as estrelas no céu escuro e viam-se estrelas cadentes. As fábricas, especialmente existentes na zona oriental, com as suas chaminés a vomitar CO2, os camiões, raros, com os escapes a lançar fumo negro poluíam, mas havia gente pobre que andava a catar papel e papelão para vender a peso e outros recolhiam todo o trapo que podiam também para vender e ser reciclado; no resto não havia cuidados, mas havia andorinhas que chegavam na Primavera e iam-se embora no começo do Outono. Onde estão elas, agora, nos céus de Lisboa?

 

Senhores ambientalistas não fomos nem somos nós quem polui o ar e mata a Natureza. Os responsáveis são aqueles que introduziram uma mudança no modo de se viver; esses quiseram dar-nos aquilo que em inglês começou por se chamar “welfare” e se traduz por “bem-estar”. Qual e de quem? O deles, o dos que nos impingem tudo, porque nos faz bem, nos põe bonitos, nos dá boa-vida ou o nosso, que nos cria alergias e nos mata e ao planeta no meio de sorrisos?

 

Não lutem contra os produtores; comecem por lutar contra a vossa incapacidade de resistir ao desafio do consumo, comecem por aprender a dizer não a este tipo de vida, comecem por rejeitar a compra e façam tudo para que, em vez de grandes roupeiros, grandes sapateiras, grande aparelhos de rádio, grandes televisores, passem a contentar-se com pouco e exijam melhor qualidade e muito maior durabilidade e, se assim procedermos todos, mas todos, negando os programas de modas, e negando as desnecessidades, talvez ainda vamos a tempo de arruinar uma série de fábricas de nada, uns comércios de coisa nenhuma e de salvar o planeta para que os nossos netos e os netos dos nossos netos possam ter céu para ver e estrelas para identificar.

18.11.22

A confusão instalada


Luís Alves de Fraga

 

A memória nem sempre faz de nós pessoas confiáveis, pois, uma ou outra vez, julgamos estar a afirmar uma única verdade e, afinal, já tinham ocorrido duas ou três anteriores.

Ora bem, encontro-me nesse dilema: parece-me que nunca houve tanta confusão na governança do país como está a ocorrer de há, talvez, quatro ou cinco meses a esta parte. São casos de compadrio, de suspeição, de greves, de manifestações, de nepotismo, de encobrimento de falsas declarações, de vigarices, de trapalhadas, de má interpretação das leis, eu se lá que mais!

 

O país tem um governo estável como já não havia há muitos anos, fruto de uma maioria absoluta no Parlamento e parece, todavia, que a minoria parlamentar e grupos de cidadãos arregimentados fora da organização administrativa da nação fazem questão de instabilizar aquilo que devia ser firme. Mas, a verdade, é que dentro do próprio Governo há descuidos individuais que desacreditam todo o colectivo. Dá a sensação de que “cada um toca a música que sabe” sem ligar ao “regente da orquestra”.

 

É verdade que no Parlamento, por culpa de quem fez opções erradas, há um partido, cujo líder tem o hábito de “armar alvoroço” de desestabilizar não só a Assembleia da República como, também, o Governo e a sociedade em geral. É um grupo parlamentar que anima, pela negativa, a massa mais ignorante do nosso eleitorado, a populaça mais alienada e desligada das causas públicas, que só sabe espumar ódios e vinganças sem tino nem lógica.

Esse grupo parlamentar não tem implantação verdadeira no eleitorado; tem implantação nos exaltados estados de espíritos existentes nas franjas do eleitorado, naqueles que não sabem escolher com base numa ideologia, numa postura pensada e ponderada, naquele tipo de sindicalismo inorgânico que reivindica sem a noção dos limites do possível.

Creio que essa técnica de movimentar as massas populares está a ser copiada por elites despeitadas e, até, pelos órgãos de comunicação social.

Estas são as razões endógenas para a confusão, no meu parecer, porque nisto de analisar comportamentos sociais cada qual, desde que usando de meios honestos, pode encontrar motivações díspares, embora, se prevalecer a independência e a probidade, encontre pontos comuns. Vamos agora tentar relacionar o que se passa cá dentro com o que se passa lá por fora, visto que, por força da capacidade de comunicação existente nos tempos que correm, a “contaminação social” é quase imediata.

 

Escusado será referir, por ser reconhecidamente brutal, o populismo trumpista que vigorou nos EUA e que veio desregular o mais ou menos estável e reconhecido sistema democrático americano. Quase de seguida surgiu o bolsonarismo no Brasil com idênticas características, mas com a agravante de se tratar de um povo onde a percentagem de desinformação é muitíssimo maior e o analfabetismo político ser quase total, salvando-se uma minoria urbana; acresce que esta corrente de populismo se reflecte quase directamente em Portugal por três vias: redes sociais, porque usam a mesma língua, influência por via dos órgãos de comunicação e, finalmente, uma imensa quantidade de imigrantes que simpatizam com Bolsonaro e se encarregam de lhe glorificar as virtudes nos meios onde se movimentam.

Ainda na sequência de uma linha de mudança e de desacato e irreflectido populismo, tivemos e temos os “amarelos” em França e o nacionalismo xenófobo de Marine Le Pen, que arrastou inúmero eleitorado nas consultas ao povo francês. Na mesma linha estão os italianos e, marcando uma diferença na democracia europeia, os húngaros e os polacos. Não quero exaltar ou referir as alterações mais antigas em Espanha.

Para contribuir para a nossa situação tivemos a epidemia do Covid 19 e mais as suas variantes com todas as medidas discutíveis nos diferentes países do mundo, desde o negacionismo à mais rigorosa imposição de isolamento ocorrida na China onde a força policial calou toda e qualquer recusa ao cumprimento das determinações estatais. Nesta transição entre o bom estado de saúde no mundo e a situação pandémica dá-se o Brexit e toda uma desordem no Reino Unido que vai ao arrepio da melhor tradição britânica.

Se pararmos para nos fixarmos nos parágrafos anteriores, percebemos que a imagem da democracia estável de há dez ou quinze ou mesmo vinte anos está de rastos, está desfeita e o que resta são breves instantâneos dessa velha representação da prevalência da vontade dos povos através de formas ordeiras de impor a vontade das maiorias.

 

Tudo isto se refletiu em Portugal e fez balançar o nosso tranquilo leque de partidos políticos com assento no Parlamento, chegando ao ponto de desaparecer um dos que fazia parte da refundação da democracia, em 1974, representativo da direita mais extrema, surgindo novos agrupamentos, invocando motivos e objectivos completamente díspares daqueles que discutiram e aprovaram a Constituição de 1976.

 

Esta amálgama de mudanças fora e dentro de Portugal dá-nos a sensação de uma instabilidade que nos incomoda e nos enerva, mas teremos de ter a frieza necessária para perceber que, se por um lado, as “velhas” democracias estão em movimento de “ajuste tectónico” o nosso ainda jovem sistema político deve ser analisado com o distanciamento que se usa ao corrigir a adolescência e as suas patetices próprias da imaturidade.

O grupo de extrema-direita, que fizemos chegar a terceira força política, é um “bluff” social e político e, como tal deve ser tratado ou destratado, e para alcançar esse desiderato resta-nos apostar forte nos partidos de esquerda e nos de direita tradicional, que ainda se sabem movimentar dentro de um quadro nacional respeitador de tradições, que não passam por vender o país ao desbarato em nome de soluções económicas que só satisfazem os grande grupos financeiros que se passeiam pelo mundo.

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