Brasil, que cultura?
No dia em que o Brasil vai escolher o Presidente da República, recordei a recente morte do Professor Adriano Moreira que, de certa forma, apadrinhava as teses do Luso-Tropicalismo desenhadas por Gilberto Freyre na obra Casa-Grande & Senzala sempre conservada como padrão de relacionamento inter-racial de brancos e negros, de senhores e escravos, resultando numa cultura (aqui entendida como a maneira de ser e estar de um povo) racialmente democrática.
Freyre foi atacado e defendido de toda a forma que se possa imaginar desde o ano de 1933, data em que publicou a sua polémica tese.
Mas, como se arquitectou o pensamento do sociólogo? À volta de uma realidade que se viveu no Brasil e um pouco por todo o lado onde os portugueses andaram a cultivar grandes propriedades agrícolas: aquilo que nas terras de Vera Cruz se chamou “Casa-Grande”, a casa senhorial dos proprietários onde não faltavam as comodidades possíveis nos locais mais atrasados: camas de dossel, mesas grandes e largas, cadeirões com veludos e brocados, toalhas de bom linho, janelas com vidros e candelabros de muitos braços para dar boa luz quando se acendiam todas as velas. Tudo era grande para satisfazer a grandeza, ambição e mando do senhor, do proprietário, católico, mas capaz de roubar terras ao vizinho e mandar matar inimigos ou quem se opusesse à sua vontade.
Nas terras do senhor não havia democracia; havia o senhor e a prole de filhos que gerava na mulher, quase sempre proveniente de um casamento de conveniência e submissa aos mandos do marido. Democracia só havia a sexual, que se centrava uma vez e sempre na vontade do senhor: ele fazia filhos nas escravas que escolhia; também aos filhos legítimos do senhor era concedida essa prorrogativa. A escrava engravidava e tinha a esperança de que o senhor reservasse para este filho um tratamento diferente daquele que dava aos que lhe não eram nada. Eram os filhos da senzala, que, às vezes, ganhavam a carta de alforria e se tornavam superiores aos outros, aos escravos, e os tratavam com a brutalidade aprendida com o sangue do pai. Mas toda a gente, dentro da propriedade agrícola, imensa a perder de vista, constituía um microcosmo do absolutismo do senhor da casa-grande, que um dia era pródigo e no outro se deixava obscurecer pela raiva e ódio. Todos tinham de frequentar a igreja ao domingo e rezar e ser tementes a Deus e dar-Lhe graças pelo que tinham e não tinham. Era Deus no Céu e o senhor na Terra. Era um modelo de sociedade de boas e más convivências onde o senhor apadrinhava os casamentos e fazia filhos nos momentos de luxúria, mas que se condoía com os males daqueles que sofriam por sua causa.
Assim nasceu um tipo de sociedade mista e mesclada de variadas cores, de variadas formas de viver ou na abundância ou na miséria ou no amor ou no ódio e esta mole humana só era possível de “construir” na mistura tropical de negros, brancos e índios. Gilberto Freyre chamou-lhe luso-tropicalismo porque, também só o português conseguia este tipicismo de misturas com respeitos, medos, ódios, amores e crenças de forma a, caldeando todos, que todos se entendessem e se sentissem unidos por algo que não sabiam explicar e que, na minha opinião, já vinha da “caldeirada” de que foi feita a cultura portuguesa: celtas, visigodos, mouros, galeses, judeus que, século após século, formou uma gente que não temeu o mar nem as diferenças da cor da pele, das religiões, dos costumes, porque os subverteu através da miscigenação.
Hoje, no dia em que muitos, mas muitos brasileiros votam em Lula da Silva fazem-no, ainda no senhor da casa-grande, porque os da senzala rebelam-se, mas inventam meios de dançar quando estão a treinar uma luta: a capoeira, que é o disfarce do escravo da senzala para escapar à tirania do senhor. Escapar quando puder e ficar quando espera a mudança dos humores do senhor. E hoje vota-se como quem dança capoeira, num jogo de disfarces. Amanhã logo se verá como estão os humores do senhor da casa-grande que fica, agora, no Planalto, em Brasília. E o luso-tropicalismo continua a viver naquele lado do Atlântico como viveu quando a casa do planalto estava em Lisboa, no lado de cá do imenso mar que nos separa.
P. S. ‒ Propositadamente polémico, este texto é essencialmente metafórico.