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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

27.09.22

Ave Maria


Luís Alves de Fraga

 

Até há alguns anos fui daqueles ‒ e ainda sou ‒ que estranhava e, vamos lá, desconfiava dos idosos que, tendo passado uma vida inteira distanciados da Igreja Católica, quase de repente, se tornavam pios e crentes frequentadores dos templos e das sacristias. Achava ‒ e acho ‒ que era o medo da morte o motor fundamental dessa reconversão ao cristianismo da infância, porque não havia em Portugal quem, na tenra idade, não tivesse frequentado a catequese e feito, no mínimo, a primeira comunhão.

 

Dada esta explicação inicial, não tomem o meu texto como uma confissão de medo de morrer ‒ tenho, e não é pouco; tenho como não tinha quando era um jovem militar pronto para todos os sacrifícios ‒, mas aceitem-no como uma meditação sobre o que a Vida me foi ensinando, tanto nos livros como nos atalhos e nas veredas percorridos.

Postas as ideias neste pé, deixem-me que vos explique um pouco de como a minha mãe, era eu muito menino, me ensinou a rezar e a fazer todos os sinais exteriores pelos quais é reconhecido um católico. Depois, debruçar-me-ei sobre a oração que dá nome a este apontamento.

 

Não sendo uma criança endiabrada eu era, na minha infância, irrequieto e brincalhão, mas, ao mesmo tempo, meigo para com a minha mãe, o meu pai e a minha irmã, além de primas, tios, avós. A minha curiosidade por tudo o que me rodeava não tinha fim e adorava escutar as conversas dos crescidos para aprender o que não sabia ou aquilo de que jamais ouvira falar.

Lá por volta dos quatro ou cinco anos, a minha mãe, cheia de paciência, começou a introduzir-me na catequese do catolicismo, explicando-me a existência de Deus, do Menino Jesus, de Nossa Senhora e de São José. Passou, de seguida às orações básicas: o Pai-Nosso e a Ave Maria. Foram conjuntos de palavras que decorei e que, durante muito tempo, disse de seguida sem pensar no seu significado, embora soubesse que o chamado Pai-Nosso foi a única oração ensinada por Jesus, segundo o testemunho dos evangelistas.

 

Os anos passaram-se, e já bem consciente das minhas decisões perdi aquilo que os católicos de hábitos arreigados chamam a fé. Entrei pelo caminho da dúvida. A Igreja Católica tornou-se, de repente, uma construção dos homens, os rituais levados a efeito nos templos assumiram a mesma dimensão das práticas externas dos povos pagãos, os sacramentos ganharam exclusivamente a sua dimensão histórica e nunca a de uma ligação a um Deus que era (ainda naquele tempo, na viragem posterior ao Concílio Vaticano II) um ente que castigava, que punia, que não perdoava a não ser se percorrendo uma vereda estreita de confissão, arrependimento e de sacrifício, de um papa que se fazia transportar aos ombros de homens comuns, sentado numa pesada cadeira e vestia e calçava roupas e sapatos de excelente qualidade, embora se tivesse tornado um apóstolo da Igreja, peregrinando pelo mundo.

 

Essa Igreja teve de esperar por um bispo para Roma, vindo da América do Sul, um cardeal que escolheu para nome papal o de Francisco, o pobre entre os pobres, aquele santo homem que não queria dinheiro para construir nem templos nem mosteiros, porque as esmolas eram para ser dadas aos mendigos, que nada tinham para comer. O papa, que no dia em que foi eleito pediu, com uma humildade inabitual no Chefe de uma Igreja que já foi muito arrogante, que rezassem por ele, deixou-me expectante.

E o actual Francisco começou a escrever e a falar sobre oração e admiti que deve ter sido, e se calhar ainda é, um homem muito atormentado na sua fé e o meu pressuposto resultou da interpretação de um pequeno desabafo tido quando, conversando com a jornalista menos humilde da nossa praça nacional ‒ a Maria João Avilez ‒ lhe disse, de passagem, que nos seus momentos de oração e de reflexão se distraía e o pensamento lhe fugia para outros lados, mas que isso pertencia aos insondáveis caminhos do Espírito Santo.

Isto ficou-me a martelar cá dentro. Quem sabe se, até, com a idade que tem ‒ um pouco mais velho do que eu ‒, quando está a orar, não dormita, não escabeceia, levado pelo cansaço? E, se tal acontece, é humano e divino, porque, segundo ele, é a vontade do Espírito Santo, essa terceira entidade de que se compõe o Divino, o Deus, que, sendo Pai, também é Filho.

 

Perdido nestas reflexões, sabendo que orar não é repetir, em jeito de lengalenga, as palavras que a minha santa mãe me ensinou, quando eu era um menino de cinco ou seis ou, talvez, sete anos, dei comigo a pensar nesses termos tão ditos e reditos, em tantas línguas, por esse mundo fora, e que começam por ser uma saudação à mãe de Jesus: Ave Maria.

Percebi que é uma das mais belas orações compostas para serem melopeia, que sacerdotes, monges, monjas e leigos, dizem ao rezar o terço ou o rosário.

É composta por duas partes: uma, é a simplificação da Anunciação feita pelo Anjo São Gabriel e, outra, é um pedido cheio de medo, mas, contraditoriamente, de esperança; um pedido onde se reconhece a tal condição de pecador, mas de arrependido.

 

Ave Maria (Olá Maria) cheia de graça (cheia de virtude) o Senhor é convosco (Deus está convosco), bendita sois vós entre as mulheres (vós, de entre todas as mulheres, sois a abençoada), bendito é o fruto do vosso ventre (abençoado é aquele que estais a gerar), Jesus.

E acaba aqui a primeira parte da recordação da Anunciação.

 

De repente este relato atira-nos para a frente de todas as mulheres que são mães, que já pariram, ou que esperam fazê-lo. Coloca-nos perante a nossa própria mãe, aquela a quem nos ligou um cordão alimentar a que os cirurgiões chamaram umbilical; um cordão que, quando queremos estabelecer uma relação, uma prisão doce e boa, uma dependência amorosa, chamamos, também, do umbigo ou umbilical.

Atira-nos para a frente da nossa própria mãe, esquecendo o São José a quem nos liga, afinal, aquilo que aprendemos para podermos entrar na vida, mas a Vida, quem no-la deu, foi ela, a mãe, que pode ter sido Maria ou ter tido outro nome.

E quando dizemos «Ave Maria» estamos, afinal, a invocar a nossa mãe, aquela da qual fomos fruto e fomos benditos por ela.

 

Como o papa Francisco, perdi-me na reflexão. Não sei se foi o Espírito Santo, mas foram, de certeza, as asas do pensamento que me fizeram ir muito mais longe do que aquilo que aqui vos digo. E passei à segunda parte da oração.

À Maria, que foi abençoada, chamamos-lhe Santa Maria, e reconhecemos-lhe a condição de mãe de Deus, mãe de um dos três elementos da Santíssima Trindade e pedimos para rogar por nós pecadores, para ser a intermediária dos nossos desejos, pois não estamos de bem com a nossa consciência e, por isso, nos chamamos pecadores, mas rogai por nós não só agora, que estamos aflitos, mas, também, na hora da nossa morte.

 

E digam-me, aqueles que tiveram a paciência de ler este texto até aqui, quantas vezes, em momentos de aflição, não se lembraram do apoio, da ajuda, do amparo que era a vossa mãe, porque eram pequenos e frágeis?

Quantas vezes eu já disse: «Ai minha querida mãe, dá-me forças, dá-me o teu amparo?»

E clamo por ela, porque foi quem me alimentou, através da sua boca, quando eu ainda me movimentava no seu ventre e me deu de comer para eu sobreviver quando era pequenino, porque foi ela quem ficou à minha cabeceira quando eu estava doente.

 

Afinal, para concluir este resumo de uma longa reflexão que fiz e ainda estou fazendo, rezar a Ave Maria é muito mais do que rezar à mãe de Jesus; é rezar à nossa mãe e a todas as mães que bendisseram o filho que traziam no ventre ligado pelo cordão umbilical que nunca se quebra por mais que a tesoura da parteira o tente cortar.

25.09.22

Dos Pecados da Igreja Católica à Guerra na Ucrânia


Luís Alves de Fraga

Adão e Eva.jpg

(Imagem da Internet)

 

 

E Deus criou o Homem ‒ Adão ‒ e, dele, a Mulher ‒ Eva ‒ deixando-os em liberdade no Jardim do Éden, com uma só condição: não comerem o fruto da árvore proibida.

Creio, é assim que está na Bíblia, julgo que no Livro chamado Génesis que, segundo se pensa, se deve à pena de Moisés. É o princípio de todos os princípios.

Adão e Eva ‒ frutos da criação de Deus ‒ deixaram-se tentar pela cobra, que os levou a comer o fruto da árvore proibida e Deus expulsou-os do Jardim do Éden, condenando-os a vários sofrimentos: trabalharem para comer e suarem para terem o pão de cada dia, a mulher a parir com dor, morrerem em pecado, porque não cumpriram a promessa feita ao Criador.

 

Muito mais tarde, já havia vendilhões no Templo, em Jerusalém ‒ a terra prometida para o Judeus ‒ uma virgem (numa das mais belas histórias bíblicas) de nome Maria, casada com um velho carpinteiro chamado José, concebeu sem conhecer homem, como nos contam os evangelistas. Concebeu porque recebeu o Espírito Santo e o anjo São Gabriel lhe disse, quando lhe anunciou a gravidez, que esse Ser, que crescia no seu ventre, havia de se chamar Jesus e Dele se esperavam maravilhas.

 

Ora, Moisés era judeu e o Catolicismo é uma variante do judaísmo, é como que uma heresia judaica, pelo simples facto de Jesus, para os seguidores do sionismo, ser mais um profeta e não o filho de Deus. Jesus nasceu judeu e foi judeu até ao fim, embora, na sua vida pública, quando fez 33 anos, tenha começado a falar como Filho de Deus e tenha definido uma terceira entidade como proveniente Dele: o Espírito Santo ‒ o tal que foi responsável pela gravidez da Mulher que se manteve virgem ‒ irrepresentável, mas que os seguidores de Jesus, depois da sua morte, passaram a figurar como uma pomba.

Mais tarde, os discípulos de Jesus, o Cristo ‒ o ungido por Deus, o salvador ‒ criaram uma Igreja, uma doutrina e ordenaram os pecados ‒ o mesmo é dizer, as ofensas a Deus ‒ estabelecendo três ordens: o pecado original ‒ aquele do qual Jesus veio redimir a humanidade, o tal que Adão e Eva praticaram quando comeram o fruto da árvore proibida ‒ os pecados mortais ‒ aqueles que, pela sua natureza ofendem a Deus de tal forma que, se no momento do último suspiro, o pecador não se arrepender vai para o inferno ‒ e os pecados veniais ‒ aqueles que, mesmo sem arrependimento aquando da morte, não privam o pecador de se sentar na corte celestial.

Hoje em dia, com todas as alterações canónicas do catecismo católico, já quase ninguém fala do pecado original. E para quê se havia de falar dele, se, afinal, Jesus morreu na cruz para lavar desse pecado toda a humanidade?

 

Não, meu caro leitor, não ensandeci, mantenho-me ‒ pese embora a minha já avançada idade ‒ lúcido e fresco. Mas, até parece que, ao titular este texto da forma como o fiz, deve julgar-me próximo da avenida do Brasil, aqui na cidade de Lisboa, à espera de consulta no manicómio Júlio de Matos!

Contudo, se eu explicar, a lógica é muito fácil e as relações estabelecem-se muito rapidez. Vamos tentar?

 

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia praticou um pecado mortal, pois, por mais voltas que dê, está condenada às penas do inferno, vivendo já em tormentos horríveis: prisões cheias de contestatários, um vasto role de assassinatos de oligarcas que se manifestaram contra o conflito, venda muito mais barata do gás e do petróleo à China e à Índia, enfim, privação de todos os estabelecimentos ocidentais ‒ em especial da cadeia de McDonald’s ‒ e de todas as fábricas que buscavam mão-de-obra barata…

Mas a Rússia está cheia de pecados veniais: ameaças de comprar armamento aos grandes inimigos do ocidente, promessas de uso e abuso de armamento nuclear e de mais uma imensa cadeia de outras venalidades internacionais, tais como fazer referendos que os clérigos do ocidentalismo já condenaram como ilegais e ilegítimos.

Bom, como se vê, esta guerra está cheia de pecados mortais e veniais tal como a Igreja Católica, mas ‒ ora bolas! ‒ ninguém se lembra de falar no pecado original, aquele que leva os ucranianos a derramarem o seus sangue por todos nós, para nos salvarem, para nos abrirem as portas do céu: a imensa vontade de os EUA colocarem mesmo às portas da Rússia o armamento capaz de, num ápice, chegar a Moscovo sem o tempo suficiente de os moscovitas saberem porque é que iam ao encontro do Criador!

Esse é que foi o pecado original, cometido pela cobra, que existe no paraíso americano e reside no Pentágono e na Casa Branca, a qual tentou a Ucrânia, levando-a a querer entrar na NATO. Infelizmente, os ucranianos são os Cristos que estão a sacrificar-se na cruz, a deixarem-se morrer no crucifixo, para nos mostrarem a árvore onde a cobra se enrola e donde está pendurado o fruto proibido. Mas, parece-me, os poderes encantatórios do réptil são tão poderosos que ninguém dá por eles.

24.09.22

O exemplo da monarquia portuguesa


Luís Alves de Fraga

 

Com a sucessão de Carlos III no trono do Reino Unido fala-se já em mudanças várias que, de certo modo, estavam “conservadas em formol” no tempo da sua mãe, Isabel II: o abandono de uma Commonwealth onde ainda há Estados cujo Chefe é o rei do Reino Unido para se tornarem em repúblicas; o desfazer do Reino Unido com a separação da Irlanda; uma quase separação da Escócia, que pretende voltar à União Europeia; e, por fim, a possibilidade do surgimento de uma república naquilo que hoje ainda é Reino Unido. São hipóteses que se colocam e se podem tornar realidade no todo ou na parte.

Mas, são hipóteses que têm fundamento num tempo em que os povos procuram, por um lado, formar grandes blocos de alianças económico-militares e, por outro, marcar a independência cultural que os distingue dos vizinhos do lado. Temos, por exemplo, uma Espanha unida, mas autonomizada em regiões culturais, administrativas e políticas, uma Bélgica, uma Suíça, isto na Europa, para não nos situarmos noutros continentes.

O caso do Reino Unido é, talvez, com a Commonwealth, bem distinto de todos os outros, pois é um arremedo de império, sem, na verdade, o ser. Contudo, curiosamente, seguiu, um século depois, o exemplo de Portugal, que, tanto quanto me parece, foi pioneiro numa solução retardadora de uma independência esperada e, até, já desejada na colónia em causa. Creio, vale a pena recordar.

 

Quando a invasão francesa dos exércitos de Napoleão Bonaparte era já inevitável, o regente D. João, seguiu o conselho do governo de Londres e fez-se transportar para o Brasil. Ele e toda a corte, assim como todos os bens que foi possível reunir à pressa para embarcar na imensa armada.

Deve deixar-se claro que a Inglaterra não ofereceu este enorme apoio a Portugal nem por causa da aliança que une os dois Estados, nem por causa das muitas simpatias que poderia ter ‒ e não tinha ‒ D. João junto de Londres. Fê-lo como uma segunda intenção: conseguir levar o regente a tomar a decisão de acabar com o monopólio do transporte marítimo por parte de empresas nacionais, abrindo os portos de Brasil à navegação internacional, que, por acaso, naquele momento, se limitava à grande marinha mercante britânica. Foi isto que aconteceu, mal a corte pôs pé em terras de Vera Cruz.

Claro que esta mudança alterou, por completo os hábitos da burguesia agrária e comercial brasileira. Deve ter sido tão notável essa mudança, acompanhada dos ventos independentistas, que varriam a América do Sul, que D. João, já rei, tomou a decisão de elevar o Brasil colonial à condição de reino parceiro de Portugal e Algarves. O monarca português estava a adiantar-se ao movimento que acabaria por levar à independência do Brasil. Era algo equivalente, do ponto de vista político, ao que acontece nos dias de hoje quando se proclama uma autonomia. Os territórios de presença portuguesa em África ainda não tinham a importância que tiveram depois e, menos ainda, o que restava na Índia, que já quase só davam prejuízo.

 

Com a Revolução Liberal de 1820, já mais de um lustro passado sobre os perigos franceses, mas para aguentar o Brasil bem preso a Portugal, D. João VI, foi-se deixando ficar por terras da América. Era, de certeza, uma manha para conservar intacto aquilo que ele sabia ser ambição inglesa… Para a gente da Inglaterra, deu o rei, como entretém, os reinos de Portugal e dos Algarves, que, por tal facto, perdia-se o que já de si pouco valia, para manter o mais precioso rincão sob a sua real coroa. Beresford era um reizete em Lisboa, enquanto à volta do monarca português se congregava a burguesia brasileira. Não esteve mal pensado o estratagema; estragaram-no a Revolução do Porto e mais as ideias liberais.

 

Após o regresso do monarca, na esperança de manter de pé a estratégia que limitava movimentos aos ingleses, deixou D. João VI, no Brasil, o seu filho primogénito, D. Pedro; podia ter deixado qualquer um dos outros (macho ou fêmea), mas este era a garantia da continuidade dos Reinos Unidos.

Enganou-se, não pelo filho, mas pelo desenrolar rápido demais dos acontecimentos em terras de Vera Cruz. D. Pedro teve de se adiantar, para que o Brasil não se esfarrapasse em várias repúblicas como estava a acontecer às colónias espanholas; ele ia ser, tanto quanto possível, ainda em nome do passado colonial, o baraço que manteria unidos os territórios brasileiros.

Depois do grito do Ipiranga, uma fórmula de ganhar um Brasil grandioso e inteiro, e a intransigência das cortes de Lisboa, só restou ao D. João VI, quando a instâncias inglesas ‒ que outras haviam de ser?! ‒ se viu forçado a reconhecer a independência do seu amado Brasil, ainda impôs ‒ em vão, diga-se de passagem ‒ que lhe fosse atribuído o título de imperador do novo Estado.

O que foi este último estertor do monarca português senão algo igual à criação da Commonwealth que surgiu, cem anos depois no Reino Unido?

Afinal, os políticos britânicos não inventaram nada de novo! Portugal e o rei D. João VI já haviam ensaiado a suposta solução britânica cem anos antes, para ultrapassar as dores de um “parto” sempre amargurado, que é essa coisa bela de dar mundos ao mundo.

19.09.22

A semana de quatro dias


Luís Alves de Fraga

 

Finalmente, parece, vamos dar mais um passo em frente: reduzir a semana de trabalho para quatro dias. A polémica vai estalar na sociedade nacional: uns serão favoráveis e outros discordarão.

 

Numa primeira análise, não concordarão com a medida os patrões, em especial os das grandes e os das pequenas empresas (nem sei se deva excluir os das médias, embora contrarie toda a lógica), porque, menos dias de trabalho, por trabalhador, não quer dizer menos tempo de comércio ou de produção.

Imagine o leitor a loja de um centro comercial que tem quatro empregados divididos em turnos de dois, em cada seis horas (das dez da manhã às quatro da tarde e dois das quatro às dez da noite); com a semana de sete dias de trabalho (inclui o domingo) o empregador consegue dar um dia de folga por semana aos quatro, mas, para dar dois dias, ele terá de contratar mais dois trabalhadores, pelo menos. Se pensarmos numa grande fábrica que labora de segunda a sexta, para conseguir produzir o mesmo, em quatro dias de trabalho, tem de estender o horário diário por mais horas e admitir mais trabalhadores para os organizar por turnos de modo a poder encerrar sexta, sábado e domingo.

Como se vê, agradando aos trabalhadores, amplia-se a empregabilidade, reduzindo o desemprego.

 

Mas o busílis está no facto de, em quase todo o tipo de trabalho, desde o oficinal ao administrativo, os empregadores confundirem horas de trabalho com horas de presença no local de trabalho.

Qual o motivo para que tal aconteça? Excesso de autoritarismo e resquícios do trabalho escravo. Os nossos empregadores, com raríssimas excepções, não aprenderam a separar as horas desses dois elementos.

Entre trabalhar e estar no emprego há um factor fundamental para a gestão: a produtividade. Esta traduz-se na quantidade de trabalho que se executa durante as horas laborais. Mas há ainda um pequeno “requinte” quando se fala de rentabilidade: é que o trabalho produzido tem de servir um objectivo rentável, caso contrário é desperdício.

Ora, são estes elementos básicos que a maioria dos nossos empregadores desconhece. Desconhece, porque não sabe estabelecer duas diferenças essenciais: objectivos rentáveis e desdobramento de tarefas.

O empregador ‒ seja numa fábrica, num escritório ou numa loja ‒ tem de ter a clara noção da razão de ser da sua actividade, ou seja tem de definir objectivos, que formam uma cadeia que conduz ao objectivo fundamental da actividade da sua empresa, cuja dimensão pode ser pequena, média ou grande.

Para realizar a cadeia de objectivos tem de ter empregados, que podem ir desde técnicos altamente especializados até simples carregadores de material. Depois de definidos os objectivos gerais e parcelares da empresa, ou seja, depois de a organizar segundo sectores que contribuem para o fim da mesma, é importante definir as tarefas que competem a cada funcionário, de modo a que não haja sobreposições de trabalho, nem “trabalho” que, parecendo sê-lo, não o é.

Na definição das tarefas tem de haver realismo, pois não se podem sobredimensionar, tornando-as impossíveis de executar dentro do horário de trabalho, nem subdimensionar, dando ao trabalhador espaço para, não fazendo nada, distrair os outros empregados das suas actividades. É fundamental que cada funcionário saiba o que faz e para que serve o que faz ao mesmo tempo que sabe quem completa a função que ele executa.

 

Os meus leitores estão a ver algum empreendimento organizado desta forma, para além daqueles que trabalham segundo linhas de montagem, provavelmente, com apoios robotizados?

Nas empresas onde o trabalho é essencialmente de natureza administrativa (só se “mexe” com “papéis”) é de toda a conveniência que o empregador tenha a noção de que, do tempo de presença nas instalações, só resulta em verdadeiro trabalho cerca de 25 a 30% desse período, pois todo o restante é gasto em tudo, menos na execução da ou das tarefas do trabalhador! Fantástico, não é?

 

Assim, temos que se o empregado for devidamente motivado através de compensações de toda a ordem, nomeadamente, menos tempo no local de trabalho, maior poderá ser a produtividade e, por conseguinte, mais e melhores podem ser os objectivos da empresa.

Como, em Portugal, se aprende quase tudo nas universidades, menos aquilo que realmente é fundamental para o desempenho das tarefas que se podem esperar do estudante quando mudar para o estatuto de empregado, pode ser que, através da imposição da semana de quatro dias, os gestores aprendam que não é só com fórmulas matemáticas que se gerem as empresas, mas, acima de tudo, com uma organização das funções e das tarefas executadas pelos humanos, para quem trabalhar é uma obrigação pesada, aborrecida e pouco compensadora.

Será desta e assim que chegamos à modernidade?

17.09.22

A legitimidade das monarquias


Luís Alves de Fraga

 

Ontem vi, numa das nossas estações de televisão, um programa gravado com os eurodeputados portugueses e um deles ‒ creio que o do Bloco de Esquerda ‒ disse, a dado passo, qualquer coisa como (cito de memória): «As monarquias não são legitimadas pelo voto popular».

Se não foram exactamente estas as palavras, a ideia era, sem dúvida, a que expressei.

 

Fiquei com os poucos cabelos, que me restam na cabeça, de pé! Meu Deus, manda-se para o parlamento europeu alguém capaz de dizer barbaridades destas? Onde está a preparação em Ciência Política de um senhor destes? Para este político, pelos vistos, a legitimidade só existe quando existe votação popular.

Tal barbaridade só pode sair de quem foi “formatado” em certos “moldes” ou de quem não sabe nada de História e do processo de legitimação dos poderes políticos.

Tão grande ignorância merece um esclarecimento, uma explicação, porque, quase pela certa, haverá por aí quem vá replicar a asneira até à exaustão e, como uma mentira ou um erro repetidos mil vezes se podem tornar numa “verdade”, é de toda a conveniência que se desfaça o equívoco, tão breve quanto possível. Vamos a isto?

 

Na Europa, a formação dos reinos, que deram origem aos países actuais, resultaram da queda do império romano e pelo domínio de grandes parcelas de território por parte de guerreiros com forças e poderes para controlar as suas propriedades. Naturalmente, as lutas entre vizinhos era mais ou menos constantes, pois, a determinante era a ampliação do território. Em muitas circunstâncias, os adversários da véspera ter-se-ão aliados contra um outro guerreiro mais poderoso e, assim se estabeleceram hierarquias de poder que levaram aos sistemas de vassalagem quando havia comunhão de objectivos. Foi esta identidade de interesses que formou o princípio da monarquia: um guerreiro com mais domínios dava auxílio a outros, que aceitavam dispensar-lhe ajuda quando ele dela carecesse para defender o conjunto. E o grande guerreiro era o rei, que prodigalizava benefícios a todos quantos o ajudavam a ampliar os seus domínios.

Pergunta: ‒ Onde estava a legitimidade?

Resposta: ‒ Traduzia-se na comunhão de interesses que unia os senhores da força. O “povo” era constituído pelos servos da gleba ou pelos pequenos proprietários de leiras donde tiravam o rendimento necessário para duas coisas: pagar a renda ou imposto ao “senhor da terra” (que, supostamente, os defendia dos seus inimigos) e comer parcamente alguns produtos guardados para sustento da família.

Os Visigodos e os Germanos tinham um sistema ligeiramente diferente: o rei era eleito de entre os grandes senhores da terra, que repetiam a eleição após a morte do rei anterior. Foi, aliás, por causa deste princípio e dos desentendimentos entre eleitores que um dos “bandos” visigodos, que ocupava a Península Ibérica, pediu auxílio aos berberes do Norte de África e estes, entrando em luta com os aliados e inimigos, ocuparam todo o território e conquistaram-no em nome de Alá.

 

Como, em poucas linhas expliquei, a “legitimidade” desses tempos nada tem a ver com a dos de hoje. Tal como continua a não ter com as “legitimidades” populares nascidas com a independência americana ou com a Revolução Francesa.

Com efeito tanto uma como outra, embora se tenham servido do povo (e aqui refiro-me àqueles que não tinham nem eira nem beira) não aconteceram para esse “povo”. Colheram a legitimidade junto de um “outro povo”, aquele que sabia ler e escrever ou, não sabendo, pagava impostos e tinha bens de raiz; era “um povo” a caminho de ser burguesia. Podiam e deviam votar nos seus representantes, já que a soberania residia não no rei mas nesse tal “povo”.

Dessas revoluções ao regime liberal foram anos que passaram num instante e, é depois da primeira metade do século XIX, quando estava a arrancar em força a Revolução Industrial, que a “legitimidade” começa a alargar-se timidamente aos homens analfabetos e sem fortuna pessoal. Alargou-se por via da existência de dois vectores concorrentes para o mesmo sentido: um, a necessidade de ampliar o consumo dos bens produzidos e, outro, trazer à cena política mais eleitores, mais homens capazes de votar, porque eram capazes de comprar, o mesmo é dizer, de ganhar dinheiro enquanto estavam a ser “engolidos” pela “máquina produtora de bens de consumo”, nascendo, deste modo, a pequena, a média e a alta burguesias.

Para provar que o sistema seguiu este caminho, basta recordar a luta das sufragistas britânicas, que tendo sido absorvidas pela “máquina produtora” de bens, queriam iguais direitos de legitimação do poder político atribuído, até então, só aos homens. Elas já estavam na “engrenagem”, elas tinham de ter, por conseguinte, uma palavra a dizer sobre quem podia e devia governar.

 

Creio que deixei provado que as monarquias feudais e absolutas foram legitimadas por aqueles que encontravam nelas as vantagens de as apoiar, assim como apoiavam o monarca de quem podiam receber favores; as monarquias liberais, porque a soberania deixou de ser um “dom e uma obrigação” recebidos directamente de Deus, passando a residir no Povo (entenda-se “isto” como mais jeito der), são ainda hoje uma excrescência de uma tradição perdida no tempo, legitimadas pela aceitação concebida nas revoluções liberais de que o rei não era o soberano. Eis a razão de, em Setembro de 1820, no Campo de Santo Ovídio, no Porto, se aclamar o liberalismo ao mesmo tempo que se davam vivas ao rei e à Santa Religião.

Os tronos liberais passaram a ser adornos de um tempo já fora do tempo.

16.09.22

A Monarquia no Reino Unido


Luís Alves de Fraga

 

Com a morte da rainha Isabel II começam a levantar-se vozes ‒ por enquanto poucas ‒ quanto à existência da Monarquia no Reino Unido. A maioria dos súbditos do monarca britânico olha para a Monarquia como uma mera instituição que preserva a tradição nos reinos das ilhas. O rei é um Chefe de Estado sem poderes, um adorno, um bibelot, que sempre ali esteve e que não perturba o natural andamento dos negócios do Estado. E tudo é assim por causa da “Magna Carta”, esse documento que fez da Inglaterra o primeiro reino com um monarca com poderes controlados.

Tudo se passou no século XIII, em especial nos últimos anos dessa centúria e, para se perceber bem, nada melhor do que usar expressões simples: o rei inglês era muito menos poderoso do que qualquer dos seus nobres, do que qualquer daqueles que lhe deviam vassalagem e, claro, recorrendo-me da linguagem mais que popular, cada vez que ele “levantava cabelo” os barões e outros senhores “lembravam-lhe” que manda quem pode e não quem quer e, deste modo, acabou por se escrever um documento (63 artigos), que o rei assinou (foram, pelo menos três os textos que tomaram o mesmo nome em anos diferentes), ao qual, por simplificação, se chamou “Magna Carta” e que limitava os poderes dos reis e dava garantias aos seus súbditos (incluindo os servos) sobre certos possíveis abusos que poderiam vir a estar na mão do monarca e, na última vez que se elaborou a “Carta”, estabeleceu-se que havia um conselho de nobres (não muitos, 49) e de representantes da baixa nobreza (292) cujo obrigação era controlar o rei, a justiça e os impostos. Estavam lançados os alicerces da primeira Monarquia constitucional na Europa, a qual, não possuindo uma Constituição Política como documento único, se sujeita às leis constitucionais provenientes do Parlamento.

A única grande tentativa de alterar este estatuto ou acordo social ocorreu no reinado de Carlos I, quando, na Europa, vigorava o chamado “absolutismo esclarecido” e o rei desejou governar “esquecendo” o Parlamento. Acabou com o assassinato do monarca por parte do Exército (daí, este ramo das forças armadas britânicas não ser “Real” ‒ não há a Royal Army ‒ embora os regimentos o possam ser) e se tenha implantado, temporariamente, com Oliver Cromwell, um regime de interregno monárquico, sendo ele designado como “Lord Protector”. Com a sua morte, em 1658, foi reposta a Monarquia e subiu ao trono o filho de Carlos I, também ele Carlos, sendo designado por II, o qual, no interesse de Portugal, casou com D. Catarina de Bragança (introdutora do consumo de chá na Inglaterra), filha de D. João IV. Dali em diante, mais do que nunca, o rei passou a ser controlado pelas Câmaras ‒ dos Lordes e dos Comuns ‒ perdendo qualquer veleidade de governar. Podia exercer, e foi exercido durante os séculos seguintes, algum poder de influência, mas jamais mandou.

 

Como se vê, são séculos e séculos de “treino”, de hábito de estar no topo mas depender da base. São longos “exercícios” de equilíbrio. Mais nenhuma Monarquia na Europa tem esta experiência, nem esta cultura. No Reino Unido há, de facto, um contrato entre quem governa, quem é governado e quem simboliza o traço de união entre ambos e esse “hífen” é a Casa Real e, mais do que tudo, o rei.

Assim, não faz sentido a mudança para uma República. Para quê?

 

Claro que há, entre nós, quem se queira aproveitar deste exemplo para invocar fundamentos que justificassem o fim da nossa República retornando a uma Monarquia onde o rei fosse “igual”, em poderes, ao monarca britânico. Mas, curiosamente, esses mesmos esquecem-se de dizer que a Monarquia, no Reino Unido, está condicionada desde o século XIII e que o nosso penúltimo rei foi um dos que mais se imiscuiu na política partidária, não deixando nada a perder em relação à sua avó paterna, a D. Maria II.

Não. Não nos está na índole proceder como a Casa Real britânica, por isso, deixemo-nos ficar com a nossa centenária República, que já vai ganhando tradições nestes últimos 50 anos.

15.09.22

O benefício da ditadura


Luís Alves de Fraga

 

As ditaduras trazem grandes inconvenientes para todos os que se interessam por política ou por reivindicar os seus direitos (ou aquilo que julgam ser os seus direitos, pois, neste regime, os direitos estão definidos superiormente), mas têm enormes vantagens para todos os outros, nomeadamente para aqueles que querem ser “formadores de opinião”.

É verdade. Creiam que é verdade e, para os que não se deixam convencer à primeira, vou tentar explicar.

 

Numa ditadura, fica definida, logo de início, a “verdade oficial”, ou seja, aquela que não pode nem deve ser contestada sob pena de graves sarilhos para os contestatários.

Estabelecida a “verdade oficial” os órgãos de comunicação social só têm de alinhar os seus discursos por ela. Àquela “verdade” obedecem todas as restantes. Cria-se uma pirâmide de “verdades” que começa na mais “verdadeira e intocável” e acaba na mais “vulgar” e, por vezes, susceptível de alguma “pequena correcção”. Assim, deste modo, os jornalistas não têm preocupações de espécie nenhuma quanto ao seu papel de formadores de opinião. A “opinião” já está formada, basta dar-lhe continuidade, basta propalá-la aos quatro ventos.

E acreditem os leitores mais jovens que é tal e qual assim, porque eu sou uma testemunha viva de como se fazia por cá no tempo do nosso fascismo. Os jornais tinham a sua clientela em função da maneira como davam as notícias e jamais por causa das notícias que davam. Assim, e para só referir os mais importantes diários publicados na capital, os matutinos “O Século” e “Diário de Notícias” caracterizavam-se porque, o primeiro, era mais conspícuo na forma de dar ênfase ao que era importante, procurando parecer mais “liberal”, e o segundo era mais tipo “a voz do dono” ‒ a concordância com o governo era total, mas sem sabujices (essas eram deixadas para jornais claramente enfeudados ao regime, como, por exemplo: o “Diário da Manhã”). Nos vespertinos havia mais “escolha”: o “Diário de Lisboa” fazia gala em ser o mais sério e “independente” de todos os jornais da tarde; o mais “rebelde” era, sem sombra de dúvida, o “República”; depois vinha o jornal que procurava os “escândalos” sociais publicáveis e que não contundiam com a “situação política”: o “Diário Popular”, que para ter maior saída, instruía os ardinas na forma de anunciar o jornal: «É o popular, é o popular. Traz o desastre, traz o desastre»; em concorrência com o “Diário de Lisboa”, mas, procurando aproximar-se de um meio-termo, com bom-senso, do “Diário Popular”, surgiu, nos últimos anos do regime, “A Capital”.

Todos diziam quase o mesmo, mas tinham “maneiras” diferentes de o fazer. Isto exigia habilidade, imaginação e muito trabalho do chefe de redacção de cada jornal para manter a linha e não deixar entregue ao livre arbítrio do repórter ou do jornalista a “importância” da notícia. Contudo, no essencial, era fácil fazer o jornal. Mais difícil era o labor do cronista, porque, para não fazer discursos laudatórios ‒ e havia quem se dedicasse só a esse modo de “formar opinião” ‒, tinha de saber dizer, nas entrelinhas, às vezes, usando um texto barroco, aquilo que os censores não sabia como cortar ou nem eram capazes de perceber o que se dizia.

 

Mas, saltemos para a democracia, para os regimes onde impera a liberdade de expressão. Deixemos os jornais, pois quase caíram em desuso, e atenhamo-nos nas estações de televisão, em especial nos telejornais e comentários subsequentes.

Antes do mais, em princípio, democracia e liberdade correspondem a uma economia liberal, o mesmo é dizer, capitalista. E ao dizer capitalista quero dizer concorrencial, que, por seu turno, equivale a afirmar “vale tudo” para alcançar objectivos.

Então, quando nos debruçamos sobre a informação televisiva, temos dois “vale tudo”: a concorrência entre estações de televisão para conquistar maiores audiências e todos os meios para convencer os telespectadores da “verdade política” (esta já não é a do regime, mas a dos interesses económicos a que está ligada a emissora) prosseguida pela redacção dos telejornais.

É aqui que começa a sofisticação do modo de informar, pois, pode esconder e nada dizer, pode distorcer a informação e pode propositadamente mentir. E isto é “democrático”, segundo o estatuto editorial da redacção. Se algum jornalista discordar já sabe que tem ao fundo do corredor uma porta por onde deve sair para não mais entrar.

Têm uma vida complicada os jornalistas quando exercem a actividade em regime democrático, não têm?

Mas há mais…

 

É que não basta informar de acordo com os interesses político-económicos dos accionistas da estação de televisão. A informação tem de convencer a audiência e, então, a “coisa” complica-se bastante mais, porque ao jornalista ‒ desde o simples repórter ao mais “virtuoso” comentador ‒ impõe-se “desfazer” as ideias do telespectador para as “refazer” de acordo com o modelo de “democracia” que, em “plena liberdade”, o telespectador deve ter.

Este mecanismo lembra-me Somerset Maugham e a forma como descreve a acção de um missionário que “inventa” o pecado de andar nu, numa das ilhas dos mares do sul quando, até à chegada do pastor, era completamente desconhecido tal conceito. As religiões “criam” condicionalismos mentais e comportamentais a que chamamos alienações. Em “democracia” e, por conseguinte, em “liberdade” os órgãos de comunicação social têm a função de nos alienar, contando os acontecimentos de modo a que seja “pecado” pensar ou agir de maneira diferente.

 

Eu, que vivi em ditadura e em democracia, posso testemunhar que é muito mais difícil escrever num regime onde a expressão do pensamento seja, supostamente, livre, do que em ditadura. A crítica social e a força da pressão da opinião dos outros valem pela perseguição da censura e pela repressão da polícia política, porque ser um perseguido político em ditadura é tomado como um acto heróico e estar em oposição à opinião social, em democracia, corresponde à ostracização, em certos meios.

06.09.22

Macron, a Europa e a guerra


Luís Alves de Fraga

 

O Presidente da França, por razões que nos são desconhecidas ‒ serão mesmo? ‒ resolveu dizer um retundo não à proposta do chanceler alemão e do Primeiro-ministro de Espanha, à passagem de um gasoduto, ligando a Península Ibérica à França e à Alemanha. Afirmou que só com factos bem concretos é que reconsideraria a hipótese.

Estranha resposta, num tempo em que se espera o máximo de cooperação! Contudo, será assim tão estranha esta resposta? Vamos analisar com algum pormenor.

 

No jornal El País, onde li com mais minúcia a notícia, dizia-se que Macron havia parafraseado o general De Gaulle e, na minha opinião, não o fez por mero acaso. Explico.

É sabido que Macron tentou, por várias vezes, ser o intermediário entre a Ucrânia e a Rússia, mantendo conversações com Putin. Não se tratava, quase pela certa, de uma iniciativa combinada nem na União Europeia, nem na OTAN; era uma iniciativa pessoal que, se obtivesse resultado, colocava a França no centro da decisão estratégica da UE e, por outro lado, demarcava Bruxelas da política dos EUA.

Como se vê, era, percorrendo outros caminhos, o sonho de De Gaulle: desligar a França de uma OTAN demasiado americana e excessivamente britânica, dando a Paris uma posição bastante central na política europeia. Foi isto mesmo que levou o general De Gaulle a fazer do seu país uma potência nuclear com capacidade defensiva autónoma em caso de ataque da URSS.

Macron, parece, idealiza um delineamento muito semelhante, agora que o Reino Unido saiu da União e a Alemanha está refém da energia russa. Uma Europa não americanizada, mas capaz de se entender com a Rússia e, talvez, desligar-se da dependência estratégica e militar dos EUA, seria um sonho perfeito para, mantendo boas relações diplomáticas com a Rússia, desamarrar-se dos compromissos da guerra, gerando uma zona de neutralidade. Para que este caminho possa ser traçado, Paris tem de vergar Berlim, desfazendo a ideia de que a Alemanha é o motor político da Europa, dando à França o lugar da locomotiva da União. Para tal, a Alemanha tem de passar frio neste Inverno e nos futuros, enquanto a França lança e fundamenta os alicerces da sua liderança na União Europeia.

É deste modo que, pessoalmente, entendo a recusa da passagem do gás ibérico por França para ir ajudar a Alemanha.

 

Pensarão alguns dos meus leitores que se trata de uma rocambolesca forma de conspirar contra Macron. Contudo, para mim, funciona como uma hipótese para analisar e dar sentido à posição do Presidente francês. Nem ele me confessou os seus planos nem eu recebo informações privilegiadas de qualquer tipo de agência, mas, em Ciências Sociais, a metodologia adoptada na pesquisa começa sempre pela colocação de um ponto de partida com alguma verosimilhança e este tem-no pelos indícios que acima referi, em especial pela invocação do homem que mais lutou por dar voz à França nas relações internacionais durante e após a 2.ª Guerra Mundial.

No interesse da França, o eixo Paris-Berlim pode estar em fase de quebra, dada a forma como o chanceler germânico cedeu à vontade de Washington e, se bem nos recordamos todos, Macron fez orelhas moucas às críticas internacionais e foi dialogar com Putin. Esta atitude é, de certa forma, uma afronta à política da Casa Branca, mas, ao mesmo tempo, uma maneira de a França se sobrepor à Alemanha; uma Alemanha que, no passado, não teve receio de fazer depender toda a sua energia dos abastecimentos russos. Ora, para ser consequente, Berlim deveria ter sido capaz de, logo no início do adensar das nuvens entre Moscovo e os EUA por causa da Ucrânia, demarcar-se do imperialismo norte americano e, aí, teria colhido o apoio de Paris. Não o fez e só Deus sabe o motivo… Deus, Biden e Macron, se calhar! Porque, bem no fundo de toda a problemática, Moscovo não devia estar à espera da submissão tão imediata de Berlim a Washington, acompanhando as sanções, que, mais tarde ou mais cedo, seriam impostas à Rússia.

Na história das relações entre a Rússia e a Alemanha (mesmo quando ainda esta era só Prússia), nos momentos de conflito na Europa, houve uma espécie de equilíbrio entre o amor e o ódio que ora colocou os dois Estados de braço dado, ora em oposição. E não podemos esquecer que a revolução de Outubro de 1917 ficou a dever grande parte da vitória aos serviços secretos alemães (que desejavam uma trégua a Oriente para poderem concentrar forças na frente ocidental). Putin sabe muito bem isso mesmo, tal como sabe que a maior mortandade feita durante a 2.ª Guerra Mundial, na Rússia foi levada a cabo pelas tropas nazis.

Assim, todos estes complexos sistemas de aproximação e afastamento entre os povos geram obrigações que, aos olhos do Presidente russo, impunham, agora, uma atitude bem diferente por parte de Berlim. Macron sabe tudo isto e jogou com esses trunfos em Moscovo, mas não foi atendido, daí que, se na primeira rodada deste póquer internacional, não conseguiu vantagem, talvez, agora, na segunda rodada, esteja a preparar a mão para assumir a liderança da política externa da União Europeia em memória do general De Gaulle e seguindo-lhe as pegadas.

04.09.22

Central nuclear de Zaporizhia


Luís Alves de Fraga

 

Há mais de uma semana que a central nuclear de Zaporizhia anda nos noticiários televisivos, radiofónicos e na imprensa escrita, por causa do perigo de ser bombardeada. Mas bombardeada por quem, se ela já está ocupada pelos russos?

Pois, a questão é essa! Só poderá ser bombardeada pelas tropas ucranianas e, a haver um desastre nuclear, a responsabilidade recai sobre Kiev.

Alegam os ucranianos que, nas instalações da central ou nas suas imediações, se instalaram forças militares russas e, por isso, querem a desmilitarização da região.

Ora, não é por causa do risco nuclear que o Presidente Zelensky tanto barafusta! É por causa da situação táctica que possibilita, partindo da região da central, os ataques eficazes sobre tropas ucranianas.

Tal como já várias vezes tenho dito, esta é uma guerra de embustes.

 

A fiscalização da operacionalidade e segurança da central, tão solicitada pela Ucrânia, ocorreu na maior liberdade dada pelas tropas russas, que aceitaram essa mesma inspecção levada a cabo por técnicos imparciais supervisionada pela agência da ONU. Foi o maior tiro no pé que Kiev podia dar. Vou tentar explicar.

Se Moscovo estivesse a fazer da central um local de concentração de tropas para iniciar um ataque, para além de ser visível através dos satélites espiões dos EUA, não iria permitir a inspecção. Ora, a prova acabada de que a central não está a ter utilização militar reside na autorização, mas, mais do que isso, ao aquiescer com a inspecção o que a Rússia está a dizer aos poderes militares do mundo inteiro é que a central de Zaporizhia é território conquistado.

Ao deslocar uma inspecção técnica à central sob a égide da ONU, reconhecendo que as tropas russas não opuseram qualquer limitação de deslocação, esta organização supranacional acaba de aceitar duas coisas: que não há problemas de maior do ponto de vista da segurança na central nuclear e que esta foi conquistada pela Rússia.

E não chego a esta conclusão por mera dedução ou jogo de palavras. Ela tem origem no Direito Internacional, pois há duas formas de reconhecer uma alteração no quadro das relações entre nações, que se definem usando as expressões latinas de facto e de jure.

O primeiro caso ocorre quando os governos não fazem declaração pública de reconhecimento, mas comportam-se perante a situação como se ela fosse irreversível; no segundo caso, há declaração pública de reconhecimento e aceitação do facto ocorrido.

Quando a ONU anuiu patrocinar uma visita à central sob o controlo de tropas russas, reconheceu de facto a conquista feita por Moscovo. Daqui até ao reconhecimento de jure trata-se de um passo, que pode demorar muito ou pouco, mas que será dado se as tropas da Ucrânia não reverterem a situação.

Tal modificação passava por tornar a central numa zona desmilitarizada e, por conseguinte, território não pertencente, de facto, à Rússia. Contudo, quando a ONU dá cobertura à inspecção anula esta hipótese e, naturalmente, não é Moscovo quem vai recuar. Assim, estamos, cada vez mais, a aproximar-nos de resultados irreversíveis e da necessidade de se passar à fase das negociações diplomáticas entre a Rússia e a Ucrânia e, se em Bruxelas não houvesse tanta dependência dos EUA, era este o momento oportuno para a União Europeia marcar a sua posição no mundo das relações internacionais, tentando mediar, para benefício dos Estados europeus, a paz entre as partes em desavença.

Claro que não é agora que se pode definir esta nova estratégia europeia, mas é de toda a conveniência que se pense nas linhas que a explicam.

02.09.22

Quando se tem medo da História


Luís Alves de Fraga

 

Nestes últimos três dias as opiniões dividiram-se, pode dizer-se, no mundo inteiro, por causa da morte de Gorbachev. Uns, vêem nele o político que acabou com o sonho soviético, com o comunismo e com a solução dos problemas da humanidade; outros, vêem-no como o homem que foi capaz de tentar a abertura do sistema ditatorial soviético na busca de uma social-democracia muito mais viável do que o modelo marxista-leninista, pondo fim à Guerra Fria e às tensões Leste-Oeste.

As condenações são fáceis quando se descontextualizam os factos determinantes das atitudes dos executantes da política. E tais condenações são desonestas. Há, pois, que olhar para a situação da URSS, quando Gorbachev ficou à frente dos destinos desse sonho leninista.

 

A corrida aos armamentos, na escalada do terror, imposta pelos EUA à URSS e a que esta não se eximiu, sempre para garantir a supremacia (pelo menos, teórica) perante a potência comunista e que tomou o nome de Guerra Fria, obrigou Moscovo a ter de gerir duas economias diferentes: uma, interna, e, outra, externa. Ou seja, dentro das fronteiras praticava-se a economia planificada, que procurava, em etapas sucessivas, quinquenais, cumprir o preceito marxista a cada um segundo o seu trabalho e a cada um segundo as suas necessidades; mas, na concorrência belicista com os EUA, praticava-se ‒ porque tinha de ser para dar a resposta apropriada ‒ a economia capitalista, para se compatibilizar com as posições estratégicas da NATO e, em especial, com as dos EUA.

Para se perceber esta segunda faceta da economia da URSS, basta pensar em todo o apoio em armamento que Moscovo dispensava aos movimentos insurgentes no mundo inteiro, que se opunham a constituir-se numa sociedade capitalista ou a ficarem na órbita da dependência do capitalismo americano ou mesmo europeu. As obrigações da política externa cada vez mais solapavam a execução de um planeamento económico interno que, efectivamente, servisse ao desenvolvimento dos povos soviéticos.

Este desencontro não era só uma consequência da competição estratégica com os EUA. Se o disséssemos estávamos a mentir por omissão. Ele resultava da existência da Internacional Comunista onde se filiavam todos os partidos marxistas-leninistas do mundo ocidental, gerando no Kremlin a obrigação de apoiar a revolução socialista onde ela se manifestasse. Claro que, ao mesmo tempo, era uma forma de, por via indirecta, se ingerir nos assuntos internos desses mesmos países. Álvaro Cunhal e o PCP recebiam apoios de Moscovo ao mesmo tempo que tinham de cumprir obrigações. E isto era verdade para todos os partidos comunistas! E não foi por causa da derrota do PCP, no dia 25 de Novembro de 1975, que em Portugal não se estabeleceu um regime comunista; foi porque Moscovo e o PCUS não autorizaram e, até, desincentivaram a revolução socialista. No Kremlin não se queria uma Cuba na Europa, pois daria oportunidade à vacinação tão desejada por Kissinger, semelhante à que acontecera no Chile para fazer abortar todos os movimentos comunistas na América do Sul. A decisão de Moscovo foi uma questão estratégica para gerir oportunidades.

 

Ora, como já disse, todos os empenhamentos da URSS fora das suas fronteiras, levavam a que se tivessem de reduzir os recursos financeiros para, internamente, satisfazer as necessidades dos povos soviéticos. A economia interna foi definhando à medida em que os envolvimentos externos se tornavam mais prementes.

Quando, no início dos anos de 1980, nos EUA, se anunciou para breve a construção de um sistema defensivo estratosférico capaz de interceptar qualquer ataque partido de qualquer ponto do globo, Moscovo perdeu a corrida, pois, dentro das suas fronteiras e nas principais cidades, os supermercados apresentavam prateleiras vazias de tudo. A população urbana estava revoltada e comerciava no mercado negro com todos os turistas a quem cedia o que podia a troco de, por exemplo, umas calças de ganga ou quaisquer outros artigos de uso corrente e vulgar no mundo ocidental.

 

Gorbachev, quando Presidente da URSS, teve pela frente, para resolver, este intrincado panorama interno e externo. O Afeganistão corroía-lhe as forças militares, como antes havia corroído as dos britânicos e, depois, corroeu a dos americanos; o desequilíbrio estratégico com os EUA estava à vista e a curto prazo poderia representar um enfrentamento directo clássico em qualquer teatro operacional do mundo; o aparelho militar soviético não tinha condições para se modernizar; a fome e a insatisfação imperavam dentro das fronteiras dessa União comunista; a contestação interna ganhava forma, corpo e força. O quadro era negro e havia que aliviar alguns dos apertos mais prementes para poder remediar um sistema político que estava a mostrar-se falível.

A solução era redesenhar as relações internacionais de modo a pôr fim à Guerra Fria, à concorrência armamentista, abrindo as fronteiras para se poder beneficiar do comércio externo, saltando de uma economia já só dita planificada para uma economia mista na qual o Estado tivesse um forte papel regulador. Para que um tal projecto tivesse viabilidade havia que, internamente, liberalizar a expressão do descontentamento, de modo a poder aproveitar o que de melhor contribuísse para uma mudança rumo a uma social-democracia sem prisões nem perseguições. Eram a Perestroika e a Glasnost que falharam nas suas linhas gerais porque se gerou a confusão interna e ‒ embora esteja por demonstrar ‒, se calhar, porque o Ocidente, através dos seus agentes secretos, acelerou a derrocada de todo o edifício político e económico soviético.

A completa verdade histórica está ainda por alcançar (será que alguma vez a poderemos reconstruir?), mas os traços mais largos que lhe marcam os contornos foram os que acabei de descrever. Convém a muitas memórias esquecê-los para incensar no altar dos heróis ou para fazer descer ao inferno dos traidores a memoração de Gorbachev.

 

Putin, porque conhece muito melhor do que eu a cor das tintas deste quadro, é um dos que, sem atirar para o inferno a memória do último Presidente da URSS, quer vê-la deturpada, adulterada, confundida, para obter créditos onde, se calhar, só tinha débitos. É o jogo político com toda a sujidade pútrida que o rodeia.