A guerra na Ucrânia continua num confronto indirecto entre os EUA e a Rússia. Os primeiros não perderam institucionalmente uma vida em combate, mas os segundos já devem levar uns largos milhares de baixas por morte e incapacidades físicas.
Hoje, não vos ocupo o tempo em análises bélicas ou até estratégicas; prefiro dedicar-me a tentar explicar a natureza sociológica destes dois colossos que se empenham em rivalizar desde o fim da 1.ª Guerra Mundial. Vamos a isto?
Para ajudar os meus leitores começarei por uma pergunta, para perceber se há algumas semelhanças entre os chamados americanos (os cidadãos dos EUA) e os também chamados russos (os cidadãos da Rússia): quem são uns e quem são os outros?
Teremos de remontar, pelo menos, ao último quartel do século XVIII para começar a perceber quem são os americanos, deitando-os no sofá da psicanálise social.
Colónia da Inglaterra, os EU separaram-se num acto de rebeldia financeira da sua metrópole, porque exigiam ter representação no parlamento para aceitarem pagar os impostos ditados pelos deputados ingleses. Foi o começo da luta pela independência que iria desembocar, naturalmente, numa república e jamais numa monarquia. É que de monarquias e direitos senhoriais estavam fartos todos quantos fugiram para aquela parte da costa oriental da América. Não se pense terem sido os miseráveis da Europa que colonizaram aquilo que, mais tarde, se chamou EU! Os que demandavam (depois dos primeiros, que partiram de boa vontade e, de certa maneira, por imperativo religioso) aquelas paragens tinha qualquer coisa de seu, pelo menos para pagarem a viagem, que não era barata. Iam à aventura, na esperança de encontrar melhores condições de vida.
Naturalmente, a grande massa de imigrantes era composta por agricultores, gente que procurava um pedaço de terra para cultivar e sustentar a família, mas, claro, entre eles iam, também, mestres de diferentes ofícios e, até, muitos sabichões na arte de enganar os outros. Contudo, importante, não é perceber quem demandava a terra americana; importante é saber no que se transformavam aqueles que demandavam a costa oriental daquilo que é hoje os EUA, porque, à chegada, queriam sobreviver e, depois de lá estar e se aperceberem das imensas possibilidades daquele território, queriam abarcar a imensidão com braços infinitos. Abarcar à custa da imposição de um direito do qual haviam fugido na Europa: o de chamar seu àquilo que era de outros.
A expansão para o Far West fez-se com o arado numa mão e o rifle na outra. Se para os índios nativos aquela terra lhes tinha sido dada por Deus (um deus que podia ser o Sol, a chuva, a Natureza), para os colonos, Deus (bem diferente do dos índios, mas também diferente de pastror para pastor) havia-lhes dado o direito de matar os indígenas e ficar-lhes com as terras e com o gado bravo ou domesticado. Era o grande território de todas as oportunidades: o vigarista transformava-se em pregador ou em vendedor de produtos químicos que não curavam doença nenhuma, as prostitutas de uma pequena cidade litoral, duzentos quilómetros para o interior, transformavam-se em respeitáveis senhoras de família, criando filhos e ajudando o companheiro na labuta da lavoura, os madraços daqui, ao saberem que se descobrira ouro lá longe, iam garimpar as areias de aluvião dos rios na esperança de encontrarem a pepita da sua vida, os ladrões das cidades litorais, porque manejavam com perícia o revólver, trezentos quilómetros para dentro do território, eram escolhidos para representantes da Lei, os piedosos cristãos das mais diferentes seitas maltratavam os escravos negros por serem infra-humanos, enfim, foi uma terra que se tornou numa nação na base de valores ínvios, porque mal definidos ou latamente usados.
Poder-se-á argumentar que este quadro representa uma certa verdade até ao começo do século XX, contudo, se olharmos bem, com muita atenção, vemos que este perfil comportamental de toda uma sociedade continua real e inalterável: o negro continua a ser negro se for pobre e desprotegido, os fugitivos de outras formas de vida são bem aceites, se oferecerem garantias de integração no modo de estar norte-americano, a moral mede-se ao acaso e patriota é aquele que aceita sem réplicas nem interrogações a ordem estatuída, as máfias subsistem e até tomam designações legais tais como grupo de pressão ou lobby, o suborno e a chantagem são moedas vulgares nos negócios privados ou públicos, a democracia é a alternância na Administração de dois grupos políticos que, nos pontos essenciais, diferem muito pouco. A democracia dos EUA fica a dever muito à de muitos Estados europeus.
Em conclusão, sem grande margem para dúvidas, sociologicamente, os EUA são uma nação em constante construção em busca de caminhos e resultante de uma manta de retalhos culturais que procura, em cada momento, encontrar um denominador comum, que se consubstancia na bandeira, no hino e em muito pouco mais. Contudo, muito subtilmente e na falta de um outro vocábulo mais expressivo, julgo que existe no americano médio uma declarada xenofobia. Passo a explicar.
O americano não é expressamente contra o não americano, mas é contra todo ou tudo o que lhe é estranho; o desconhecido, na pequena cidade americana, é olhado como intruso, um elemento deslocado, um ser de outro sítio. Este é o tipo de xenofobia característico do americano médio e, tal forma de estar na vida, torna o seu comportamento, quando fora dos EUA, arrogante, superior, quase insociável. E a própria Administração fomenta tais comportamentos. Recordo que, há mais de vinte anos, na base aérea das Lajes, nos Açores, até o pão vinha, todos os dias, dos EUA para ser consumido pela guarnição militar daquele país! Creio que, com tal exemplo, se diz tudo.
E dos russos, o que há para contar?
Vamos ver, para, de seguida, procurarmos as igualdades e a dissemelhanças entre uns e outros.
A Rússia não foi descoberta, a Rússia foi-se construindo ao longo dos séculos através do cruzamento de diferentes povos que ocuparam o território até aos montes Urais, para Sul e para Norte deles e, ultrapassando-os, o resto que se estende por toda a Ásia a norte até ao estreito de Bering.
Pode dizer-se que a base étnica-cultural dos russos é eslava, tendo partido dos vikings e dos tártaros, na parte europeia do território, porque no que se estende para Oriente foi o resultado da expansão militar sobre os povos pré-existentes nessas regiões longínquas. Contudo, se olharmos, sem entrar em grandes pormenores, na formação da Rússia, percebemos que ela se começa a fazer a partir do século XIV, formando-se de Sul para Norte, ou seja, daquilo que hoje é a Ucrânia para aquilo que hoje é Moscovo. Nos séculos seguintes a expansão, com altos e baixos, foi-se fazendo para Oeste, sobre a Polónia e, só mais tarde, para Leste sobre a parte asiática do território.
Não se pode falar de um grupo étnico e cultural director da expansão, porque esta correspondeu à formação de poderes territoriais e políticos diferentes, mas todos animados sempre do mesmo tipo de princípio: redução dos povos conquistados à condição servil perante uma elite terratenente que se impôs ao longo dos séculos, umas vezes, adoptando uma aproximação maior à cultura ocidental e iluminista do século XVIII de matriz francesa e, outras, isolando-se nos modelos próprios de uma cultura cristã ortodoxa que olhava o Ocidente como diferente.
Talvez a característica mais forte e predominante na cultura do grande espaço russo tenha sido o imenso distanciamento entre as elites nobres e burguesas, marcadamente urbanas com influências ocidentais, e os servos da gleba, cuja existência se prolongou até ao início do século XX. É este abismo que, culturalmente, espanta o Ocidente, porque, independentemente da miséria que se desenvolveu na Europa, quer por força do comércio marítimo a grande distância, quer por força da industrialização, havia uma abertura, embora bastante estreita, por onde alguns poucos afortunados podiam fugir da miséria para entrarem numa mediania bastante modesta (recordo, neste caso e como mero exemplo, aqueles que, prestando serviço militar como soldados, conseguiam alçar-se aos mais baixos postos dos exércitos ou das marinhas nacionais) facto que era impossível para a grande massa de camponeses russos ou a eles sujeitos, por se encontrarem amarrados à terra e ao senhor da mesma.
O czarismo (palavra derivada de César da Roma imperial) entre o século XVII e o começo do século XX era, para os camponeses ignaros e desfavorecidos, uma forma de paternalismo, pois o imperador funcionava como um bom pai a quem tudo se devia e se agradecia. O pai de todas as Rússias invocava o amor pela terra ‒ a mãe, em cuja ubre o povo encontrava o alimento ‒ para chamar os mais desgraçados ao serviço de uma pátria que eles não conheciam, nem dela ouviram falar (conceito que se popularizou, na Europa, com a Revolução Francesa). Assim, ainda durante a 2.ª Guerra Mundial, Estaline, ao invés de invocar os valores revolucionários para mobilizar os cidadãos para defender a URSS, apelou à defesa da Mãe Rússia, conhecida de todos desde os tempos dos czares.
Sem receio de errar, podemos dizer que a Rússia (e não a Federação) é um conjunto de povos e culturas distintas, que continua a viver uma situação de atraso social segundo os valores do Ocidente, carecendo de um poder político forte para orientar e objectivar os interesses comuns e nacionais. Por ignorância, com exclusão das elites, são xenófobos em relação ao Ocidente. Sofrem passivamente a opressão política de sucessivos ditadores mais por hábito do que por medo; trata-se de um hábito cultural, que lhes está enraizado pelo uso e costume da servidão da gleba. São naturalmente dominados pelo obscurantismo, que encontrou terreno fértil no camponês do início do século XX e se prolongou com a quimera do homem novo socialista.
Olhados com a frieza de uma análise que assenta na evolução histórica, tanto os russos comuns e vulgares como americanos comuns e vulgares são em tudo semelhantes, pois constituem a argamassa trabalhável pela vontade política das elites respectivas, que são levados a ver o mundo e o outro segundo o parecer de quem comanda o processo político. Falta a ambos ‒ ao americano e ao russo ‒ a sensibilidade, a rebeldia e o sentido crítico de uma cultura marcadamente europeia, moldada no cadinho da Magna Carta, do iluminismo, da Revolução Inglesa, da Revolução Francesa e, simultaneamente, resultante do Renascimento e da Reforma.
Se nos EUA se fala de cultura ocidental, não se fala do mesmo que na Europa central, ocidental e meridional e, se na Rússia se combate o Ocidente, de certeza que não é o Ocidente da Europa que, em tempos, tentaram copiar e importar para colar à cultura eslava a prótese que viram em França, na Itália e na Inglaterra.
Só sendo capaz de estabelecer estas diferenças e estas semelhanças é que se pode compreender o erro em que a Europa está a cair ao aceitar como boas as razões dos EUA na guerra entre a Ucrânia e a Rússia.