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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

18.07.22

A história da faca de cozinha


Luís Alves de Fraga

 

A guerra continua e, parece, começam a esboçar-se os primeiros sinais de descrença quanto às boas razões da Ucrânia. Ou seja, há indícios que nos podem levar a concluir que a tão apregoada democracia praticada por Kiev não é um modelo onde cada um de nós gostasse muito de viver.

 

Sei que, em tempo de guerra, há medidas que têm de ser tomadas sem hesitações nem grandes explicações, mas também as há que, ao serem adoptadas, dão clara indicação de como se pratica o poder nesses Estados.

Vem isto ao caso de, há um ou dois dias, ter tomado conhecimento de que uma alta figura do poder na Ucrânia ‒ a Procuradora-Geral de República ou cargo equivalente ‒ ter sido liminarmente afastada das funções sem qualquer tipo de explicação. O que é que foi acrescentado à notícia? Que a senhora em questão tinha sob a sua alçada a responsabilidade de apurar os crimes de guerra. Ora, só isto dá matéria-prima para alimentar a imaginação de todos nós e, em particular, a dos que são hábeis nesses domínios. E aqui não olho só para o que se passa na Ucrânia; olho, também, para as arbitrariedades iguais ou semelhantes que ocorrem na Rússia. Contudo, há uma tremenda diferença: por um lado, todos sabemos que em Moscovo impera um poder oligárquico e ditatorial apoiado num sistema de vigilância policial talvez sem paralelo nos tempos modernos e, por outro, faz-se crer que, na Ucrânia, se vive o mais democrático sistema liberal da matriz europeia e ocidental. Claro, não é preciso viver muito tempo entre os ucranianos para se perceber que, também por lá, a democracia é muito limitada.

Importante é que deu jeito a Kiev, a Washington, a Bruxelas e a Londres fazer crer a todo o mundo que a democracia ucraniana estava a ser invadida por uma tropa ao serviço de uma ditadura expansionista e brutal.

Se começarmos a história neste exacto momento, isto é, na invasão russa do território soberano e democrático da Ucrânia qualquer boa-alma é levada a condenar o Kremlin e a incensar Kiev. Mas o problema é que, como já muita boa gente sabe, a história não começou com a invasão; começou com a intenção de a Ucrânia fazer parte da OTAN, dos EUA aceitarem e estarem dispostos a colocar naquele país armamento, nomeadamente, mísseis de longo alcance, respaldados pela concordância dos Estados que fazem parte da OTAN.

Deste modo, se contarmos a história assim e os nossos interlocutores a aceitarem sem a casmurra teimosia imposta pela propaganda americana, percebemos que a Rússia, depois de avisar de todas as formas o governo de Kiev, se viu forçada a passar à acção militar preventiva.

Para perceber tudo isto, corre na Internet uma história com um certo grau de humor e de verdade, que me permito reproduzir aqui, por palavras minhas.

 

À noite, na cama, um casal conversava sobre a invasão da Ucrânia. O marido, tranquilamente, tentou explicar a razão da atitude da Rússia, mas, a mulher, dominada pela propaganda, insistia que Putin era um perigo para toda a Europa e que configurava o novo Hitler deste século, que a Rússia havia invadido um Estado soberano ao qual era permitido fazer as escolhas e alianças que quisesse.

O marido deixou-a expor até à exaustão os seus argumentos fundamentados no que a televisão dizia e, quando ela se calou, levantou-se, calçou as pantufas, foi à cozinha e voltou com a maior faca que por lá havia. Uma faca com mais de vinte centímetros de comprimento e ponta bem afiada, pousou-a na mesa de cabeceira e preparou-se para apagar a luz. Nesse momento a esposa, completamente histérica, perguntou qual a razão de ele trazer uma faca para o quarto e, ainda por cima, dormir com ela na mesa de cabeceira.

‒ Tu és louco ou fazes-te? Eu não durmo contigo aqui ao lado com esse facalhão à distância de me dares uma facada! Sei lá se és sonâmbulo e não me matas ‒ argumentou, sentada na cama, desgrenhada e pronta a fazer a mala para fugir.

O marido soergueu-se até ficar recostado na almofada e, calmamente, respondeu à desesperada esposa:

‒ Estás a ver?! Tu que és minha mulher há vinte anos, não confias em mim e não aceitas dormir ao meu lado só porque tenho uma faca na mesa de cabeceira… Percebes, agora, as razões da Rússia com uma Ucrânia ao lado e armada com forças capazes de a atacar de um momento para o outro?

 

A história acaba aqui, mas, presumo que o marido voltou à cozinha, guardou a faca e o casal dormiu descansado e tranquilamente todas as noites até ao dia em que um deles morreu de morte natural.

E os meus amigos, perceberam a moral da história? Quem pode dormir tranquilo ao lado de alguém que, estando armado até aos dentes, não está casado connosco e em quem nós não temos confiança?

17.07.22

O outro pilar


Luís Alves de Fraga

 

Ontem vi e ouvi, na RTP 3, os comentários sobre a guerra na Ucrânia feitos pelo major-general Arnaut Moreira (provavelmente familiar do meu velho professor de Matemática, nos Pupilos do Exército, o major Arnaut) oriundo da arma de Transmissões, que, com as cautelas próprias dos comentadores militares convidados para as televisões, deu, para quem quer perceber as meias-palavras, um panorama pouco optimista para a tropas ucranianas. Não conseguem treinar até ao fim do Verão os homens necessários para operar as novas máquinas de guerra que estão a receber das potências ocidentais ‒ entenda-se EUA, Grã-Bretanha e, provavelmente, Alemanha ‒ e estão a ver criteriosamente bombardeadas pela Rússia várias infraestruturas fundamentais ao esforço de guerra. Por outras palavras, a Ucrânia, no começo do Inverno, quando o terreno for intransitável, estará derrotada e incapaz de fazer um esforço de reconquista do território perdido, ou seja, está em condições de iniciar a ronda de conversações diplomáticas que Moscovo lhe vai impor. Nessa altura, a não ser que deseje ver alvejadas, por mísseis de longo alcance, as cidades mais importantes do país, mantendo uma guerra desigual e que conduzirá à morte e à desgraça de muitos milhares de cidadãos, terá de aceitar, se calhar não todas, mas a maior parte das imposições de Moscovo. Em nome do fim do sofrimento dos ucranianos, Zelensky ou outro por ele, assentirá no fim de uma guerra, mas não, talvez, no fim de um conflito com a Rússia. Até lá, a Casa Branca e o Pentágono, terão de decidir se os objectivos que tinham em vista ao incentivar esta guerra, nomeadamente provar a pouca capacidade militar terrestre da Rússia e a fragilidade da sua economia baseada no petróleo e no gás, para além de afundar a prosperidade da União Europeia, colocando a sua moeda abaixo do valor internacional do dólar, foram alcançados. Se a resposta for positiva, Washington arranjará maneira de levar Kiev a negociar; no caso contrário, poderá arrastar os países da OTAN, a Rússia e seus aliados para um atoleiro do tipo daqueles que os EUA souberam arranjar pelo mundo fora desde o fim da 2.ª Guerra Mundial. Mas, curiosamente, levará, em primeiro lugar, atrás de si a Grã-Bretanha.

 

Na verdade, relendo Henry Kissinger (Anos de Renovação, 1999, no original, e 2003, na tradução portuguesa) topa-se, escrito preto no branco, que a Grã-Bretanha já não logrando, por perda de poder militar, influenciar decisivamente nas decisões mundiais, optou, no dizer do experiente político e professor, por «(…) unir-se politicamente aos Estados Unidos mais do que à Europa. E para indicar que se tratava mais do que uma aliança, apelidou esta sua opção de operação especial». E continua com todo o despautério: «Só uma sociedade moralmente forte e coesa podia ter levado por diante este feito notável de preservar a identidade através de um acto de subordinação efectiva».

Quer-se mais clara a forma como é entendida, nos EUA, a relação de Londres com Washington?

E não se diga que se tratou de uma posição pontual como resultado do final da 2.ª Guerra Mundial, porque os factos, ao longo dos anos, têm demonstrado, até à saciedade, a existência dessa subordinação efectiva como enfaticamente lhe chama Henry Kissinger, de tal modo que lá está a Grã-Bretanha na linha da frente a fornecer armamento à Ucrânia, tal como esteve, na mesma linha, aquando da invasão do Iraque e do Afeganistão. Claro que o Pentágono retribuiu, antecipadamente, com baixo valor, a subordinação efectiva de Londres quando foi da reocupação das Malvinas.

Naturalmente, Paris e Berlim não querem seguir a pegadas de Londres, mas vêem-se tão dependentes da falta de uma política de defesa e segurança marcadamente europeia que, em determinados momentos cruciais, têm de ir atrás da Grã-Bretanha para não perderem os dois pilares que, no momento da verdade, podem ajudar o Velho Continente.

 

É certo que a circunstância oportuna para uma viragem da política de defesa europeia passou há muito, quando se deu a implosão da URSS e a possibilidade de pôr fim à existência da OTAN. Nessa altura, se tivesse havido o golpe de asa necessário, tinha sido o momento de puxar a nova Rússia para a Europa através de vastos acordos comerciais vantajosos para todas as partes. Mas, o que terá pesado, para além da estratégia americana, foi a existência de uma pesada e bem paga burocracia dentro da OTAN, que oferece a civis e a militares chorudos cargos bem pagos e altamente prestigiantes para quem dá importância a esse tipo de prestígio. Agora, estamos reféns da Aliança com todo o tipo de vantagens ‒ por impreparação das forças armadas e de segurança europeias ‒ e de desvantagens. Temos uma guerra à porta de casa e o risco de, por razões que são alheias aos verdadeiros interesses europeus, nela nos vermos envolvidos. Só vejo em Macron o único político europeu de peso capaz de manobrar na sombra para gerar aquilo que devia já existir: uma política europeia capaz de salvaguardar o continente das influências que não lhe trazem vantagem imediata. Vamos ver o que o tempo é capaz de obrar.

14.07.22

11 de Setembro


Luís Alves de Fraga

 

Dita desta forma, a data empurra-nos para o ano de 2001, cidade de Nova Iorque, Torres Gémeas, ataques terroristas feitos com aviões comerciais. Mas,… Também empurra os mais velhos para o Chile, de Salvador Allende, e para o golpe militar que depôs o presidente eleito democraticamente e que contava com o apoio de todos os partidos de esquerda daquele país. Empurra-nos para a brutal ditadura do general Pinochet, que contou com todo o apoio da CIA, comandada pelos EUA. A mesma data, anos diferentes, objectivos iguais.

 

Não me vou ocupar do Chile, de Allende ou de Pinochet. Podia fazê-lo para provar, afinal, que nesse ano de 1973 continuava bem viva a doutrina de James Monroe enunciada em 1823. Prefiro deixar esses considerandos para outra altura.

Hoje, vou-me ocupar do 11 de Setembro de 2001.

Talvez a maior parte de todos nós sinta essa data pelo gigantesco e inesperado ataque suicida perpetrado contra as Torres Gémeas, destruindo-as como se fossem frágeis construções, vendo a imensa nuvem de pó e a imagem de vários cidadãos atirando-se lá do alto para o vazio de uma morte certa. Havia espanto, medo e, por vezes, determinação no olhar de quem fugia na rua. Mas o 11 de Setembro foi muito, muitíssimo mais, do que isso. Foi o primeiro ataque de uma força estrangeira contra os EUA, foi a primeira vez que os americanos sofreram sobre o seu território, a sua casa, a acção de um inimigo. Isto é muito mais do que a queda das Torres Gémeas! A inexpugnável fortaleza havia falhado completamente, tinha claudicado, tinha mostrado ao mundo que os seus serviços secretos, a sua polícia federal, a sua rede de espionagem, as suas defesas antiaéreas, as suas forças armadas não serviam para nada perante um grupo ‒ provavelmente, pouco numeroso ‒ de homens determinados a morrer, provando que o gigante não tinha só os pés de barro, porque era, afinal, um gigante de barro quebrável, facilmente quebrável. Pior, o próprio coração da força militar, o Pentágono, havia, também, sido atingido, provando ao mundo que nada naquele território era suficientemente seguro.

Está nesse dia a chave da nova estratégia dos EUA!

 

Defendi, em tempos, publicamente, e por várias vezes, a hipótese de os atentados de 11 de Setembro de 2001 terem sido fruto de uma grande encenação levada a cabo para mobilizar o povo americano para novos empenhamentos militares. Não era nada de novo: desde a explosão do cruzador USS Maine, em 1898, no porto de Havana, até ao ataque ao Porto das Pérolas, em 1941, para não referir a forma como foi mobilizada, em Agosto de 1964, a opinião pública para a aceitação da guerra no Vietnam. Para mim, o 11 de Setembro poderia encaixar-se nessas técnicas de propaganda política para uma viragem estratégica que impusesse a mobilização militar e grandes sacrifícios ao povo americano. Todavia, independentemente de ter sido ou não uma tremenda encenação propagandística, o 11 de Setembro de 2001 foi, realmente, marcante para uma viragem estratégica do comportamento dos EUA na cena mundial. Vamos ver como e porquê.

 

Até àquela data, depois da queda da URSS, os inimigos dos EUA situavam-se onde se encontrava a defesa dos interesses americanos e estes estavam fundamentalmente ligados ao petróleo e, por conseguinte, ao Médio Oriente.

Foi nesta zona da Terra que Washington apostou forte no uso de estratégias de afrontamento não directo, usando rivalidades tão velhas como as dos tempos do início do Islão para alcançar os objectivos que tinha em vista. Mas, faltava aos agentes secretos que punham de pé estas operações camufladas a experiência e o conhecimento dos usos e costumes de tais povos habituados a, para sobreviver em meios humanos adversos, usarem de todas as manhas e artimanhas que estão bastante fora dos hábitos ocidentais; quando de tal carecem, a mentira de hoje pode ser a verdade de amanhã, a lealdade de hoje pode ser a traição do dia seguinte, a honestidade de agora pode tornar-se em desonestidade algumas horas depois.

Alá é grande e aceita que, para o seu serviço, se mude tudo o que havia sido montado. É preciso perceber que, para uma cultura onde constitui ofensa não se discutir o preço daquilo que se quer negociar, têm de se aceitar, em simultâneo, o sim e o não como faces de uma mesma realidade. Mas, acima de tudo, é preciso perceber que a mudança pode dar-se sem uma razão aparente para todo aquele que não está familiarizado com este tipo de forma de agir. E foi isso mesmo que aconteceu. A guerrilha que os americanos montaram para, por interpostas pessoas e interpostos interesses, realizarem os seus objectivos, virou-se contra eles mesmos. E os EUA passaram a ser o inimigo a atacar por causa dos seus hábitos, dos seus costumes, das suas liberalidades. A mero título de curiosidade, julgo que, antes de se embrenharem na política do Médio Oriente, lhes teria feito muito bem estudarem a fundo e em pormenor, extraindo as ilações convenientes, a Peregrinação, obra-prima da trafulhice, do desrespeito, do engano, da honra e da desonra devida a Fernão Mendes Pinto. Não leram, não estudaram e meteram-se na mais abjecta barafunda e com gente que não olha a meios para alcançar fins. O 11 de Setembro de 2001 foi a ponta de um conflito assimétrico onde quem pode ganhar é quem mais consegue saber mover-se na sombra, entre a escumalha humana.

 

A estratégia nacional americana teve de refazer-se e reinventar-se de um dia para o outro. Não sou eu quem o diz, mas um reputado professor da Universidade de Georgetown, Robert J. Lieber (A Era Americana), que passo a transcrever na íntegra:

«A partir do início dos anos 40 do século XX, os Estados Unidos enfrentaram ameaças letais à sua segurança, primeiro na Segunda Guerra Mundial e depois por parte da União Soviética, sob Estaline e os seus sucessores. Meio século depois, com o fim da Guerra Fria, os governantes americanos procuraram uma nova razão de ser para o papel internacional do país. Mas durante uma dúzia de anos, de 1989 até 2001, e apesar de numerosas tentativas de traçar novas rotas, maioritariamente indignas de serem recordadas, parecia não haver nenhum perigo indiscutível desse servir de foco a uma nova estratégia global. Os ataques de 11 de Setembro puseram fim violento a esse interlúdio.»

 

Repare-se com atenção, através de uma leitura cautelosa, no que nos diz o autor:

Os EUA, a partir do início dos anos 40, enfrentaram ameaças letais primeiro na 2.ª Guerra Mundial e depois por parte da URSS. Confesso, raras vezes tenho lido um exagero tão completo e tão demagógico!

Durante a 2.ª Guerra Mundial os EUA foram o único país do mundo a ver aumentado o seu rendimento, a ter pleno emprego e a gozar de um excelente nível de vida, exactamente porque o seu território nunca correu perigo de invasão ou risco físico de bombardeamento. Mas, o autor refina mais a sua tendência demagógica ‒ é assim que se convencem os povos a aceitar estratégias agressivas ‒ indo ao ponto de considerar que durante a Guerra Fria, no consulado de Estaline (nem sequer foi aquando da crise dos mísseis de Cuba!), os EUA correram perigo letal!

Daqui podemos inferir que a estratégia americana foi, durante esses tempos, meramente defensiva, enquanto ampliava o seu arsenal e se estendia, com bases aéreas ou navais, pelo mundo fora.

O autor, para finalizar o seu raciocínio e passar a outro patamar da explicação estratégica a ser desenvolvida pelo Pentágono, introduziu a questão do 11 de Setembro. Não o faz com inocência! Fá-lo, porque é o modo de, perante um conflito assimétrico, ampliar a nível global a estratégia que esteve somente focada no território dos EUA.

 

Para não nos alongarmos mais em considerações, deixamos ao leitor o encargo de verificar como foi desenvolvida a estratégia americana depois do 11 de Setembro, mas, ajudando-o, recordamos que depois dessa data as forças armadas dos EUA estiveram empenhadas nos seguintes teatros de operações: Afeganistão e Iraque em acções de longa duração e, em muitos outros, em acções de curta duração. Assim, podemos concluir que, depois de 11 de Setembro de 2001, o Pentágono achou-se, cada vez mais, empenhado no papel de polícia do mundo e da democracia, praticando uma política imperial para impor uma pax americana. O resultado está à vista na Ucrânia.

11.07.22

Do multiculturalismo à xenofobia nos EUA e na Rússia


Luís Alves de Fraga

 

A guerra na Ucrânia continua num confronto indirecto entre os EUA e a Rússia. Os primeiros não perderam institucionalmente uma vida em combate, mas os segundos já devem levar uns largos milhares de baixas por morte e incapacidades físicas.

Hoje, não vos ocupo o tempo em análises bélicas ou até estratégicas; prefiro dedicar-me a tentar explicar a natureza sociológica destes dois colossos que se empenham em rivalizar desde o fim da 1.ª Guerra Mundial. Vamos a isto?

 

Para ajudar os meus leitores começarei por uma pergunta, para perceber se há algumas semelhanças entre os chamados americanos (os cidadãos dos EUA) e os também chamados russos (os cidadãos da Rússia): quem são uns e quem são os outros?

Teremos de remontar, pelo menos, ao último quartel do século XVIII para começar a perceber quem são os americanos, deitando-os no sofá da psicanálise social.

 

Colónia da Inglaterra, os EU separaram-se num acto de rebeldia financeira da sua metrópole, porque exigiam ter representação no parlamento para aceitarem pagar os impostos ditados pelos deputados ingleses. Foi o começo da luta pela independência que iria desembocar, naturalmente, numa república e jamais numa monarquia. É que de monarquias e direitos senhoriais estavam fartos todos quantos fugiram para aquela parte da costa oriental da América. Não se pense terem sido os miseráveis da Europa que colonizaram aquilo que, mais tarde, se chamou EU! Os que demandavam (depois dos primeiros, que partiram de boa vontade e, de certa maneira, por imperativo religioso) aquelas paragens tinha qualquer coisa de seu, pelo menos para pagarem a viagem, que não era barata. Iam à aventura, na esperança de encontrar melhores condições de vida.

Naturalmente, a grande massa de imigrantes era composta por agricultores, gente que procurava um pedaço de terra para cultivar e sustentar a família, mas, claro, entre eles iam, também, mestres de diferentes ofícios e, até, muitos sabichões na arte de enganar os outros. Contudo, importante, não é perceber quem demandava a terra americana; importante é saber no que se transformavam aqueles que demandavam a costa oriental daquilo que é hoje os EUA, porque, à chegada, queriam sobreviver e, depois de lá estar e se aperceberem das imensas possibilidades daquele território, queriam abarcar a imensidão com braços infinitos. Abarcar à custa da imposição de um direito do qual haviam fugido na Europa: o de chamar seu àquilo que era de outros.

A expansão para o Far West fez-se com o arado numa mão e o rifle na outra. Se para os índios nativos aquela terra lhes tinha sido dada por Deus (um deus que podia ser o Sol, a chuva, a Natureza), para os colonos, Deus (bem diferente do dos índios, mas também diferente de pastror para pastor) havia-lhes dado o direito de matar os indígenas e ficar-lhes com as terras e com o gado bravo ou domesticado. Era o grande território de todas as oportunidades: o vigarista transformava-se em pregador ou em vendedor de produtos químicos que não curavam doença nenhuma, as prostitutas de uma pequena cidade litoral, duzentos quilómetros para o interior, transformavam-se em respeitáveis senhoras de família, criando filhos e ajudando o companheiro na labuta da lavoura, os madraços daqui, ao saberem que se descobrira ouro lá longe, iam garimpar as areias de aluvião dos rios na esperança de encontrarem a pepita da sua vida, os ladrões das cidades litorais, porque manejavam com perícia o revólver, trezentos quilómetros para dentro do território, eram escolhidos para representantes da Lei, os piedosos cristãos das mais diferentes seitas maltratavam os escravos negros por serem infra-humanos, enfim, foi uma terra que se tornou numa nação na base de valores ínvios, porque mal definidos ou latamente usados.

Poder-se-á argumentar que este quadro representa uma certa verdade até ao começo do século XX, contudo, se olharmos bem, com muita atenção, vemos que este perfil comportamental de toda uma sociedade continua real e inalterável: o negro continua a ser negro se for pobre e desprotegido, os fugitivos de outras formas de vida são bem aceites, se oferecerem garantias de integração no modo de estar norte-americano, a moral mede-se ao acaso e patriota é aquele que aceita sem réplicas nem interrogações a ordem estatuída, as máfias subsistem e até tomam designações legais tais como grupo de pressão ou lobby, o suborno e a chantagem são moedas vulgares nos negócios privados ou públicos, a democracia é a alternância na Administração de dois grupos políticos que, nos pontos essenciais, diferem muito pouco. A democracia dos EUA fica a dever muito à de muitos Estados europeus.

Em conclusão, sem grande margem para dúvidas, sociologicamente, os EUA são uma nação em constante construção em busca de caminhos e resultante de uma manta de retalhos culturais que procura, em cada momento, encontrar um denominador comum, que se consubstancia na bandeira, no hino e em muito pouco mais. Contudo, muito subtilmente e na falta de um outro vocábulo mais expressivo, julgo que existe no americano médio uma declarada xenofobia. Passo a explicar.

O americano não é expressamente contra o não americano, mas é contra todo ou tudo o que lhe é estranho; o desconhecido, na pequena cidade americana, é olhado como intruso, um elemento deslocado, um ser de outro sítio. Este é o tipo de xenofobia característico do americano médio e, tal forma de estar na vida, torna o seu comportamento, quando fora dos EUA, arrogante, superior, quase insociável. E a própria Administração fomenta tais comportamentos. Recordo que, há mais de vinte anos, na base aérea das Lajes, nos Açores, até o pão vinha, todos os dias, dos EUA para ser consumido pela guarnição militar daquele país! Creio que, com tal exemplo, se diz tudo.

 

E dos russos, o que há para contar?

Vamos ver, para, de seguida, procurarmos as igualdades e a dissemelhanças entre uns e outros.

 

A Rússia não foi descoberta, a Rússia foi-se construindo ao longo dos séculos através do cruzamento de diferentes povos que ocuparam o território até aos montes Urais, para Sul e para Norte deles e, ultrapassando-os, o resto que se estende por toda a Ásia a norte até ao estreito de Bering.

Pode dizer-se que a base étnica-cultural dos russos é eslava, tendo partido dos vikings e dos tártaros, na parte europeia do território, porque no que se estende para Oriente foi o resultado da expansão militar sobre os povos pré-existentes nessas regiões longínquas. Contudo, se olharmos, sem entrar em grandes pormenores, na formação da Rússia, percebemos que ela se começa a fazer a partir do século XIV, formando-se de Sul para Norte, ou seja, daquilo que hoje é a Ucrânia para aquilo que hoje é Moscovo. Nos séculos seguintes a expansão, com altos e baixos, foi-se fazendo para Oeste, sobre a Polónia e, só mais tarde, para Leste sobre a parte asiática do território.

Não se pode falar de um grupo étnico e cultural director da expansão, porque esta correspondeu à formação de poderes territoriais e políticos diferentes, mas todos animados sempre do mesmo tipo de princípio: redução dos povos conquistados à condição servil perante uma elite terratenente que se impôs ao longo dos séculos, umas vezes, adoptando uma aproximação maior à cultura ocidental e iluminista do século XVIII de matriz francesa e, outras, isolando-se nos modelos próprios de uma cultura cristã ortodoxa que olhava o Ocidente como diferente.

Talvez a característica mais forte e predominante na cultura do grande espaço russo tenha sido o imenso distanciamento entre as elites nobres e burguesas, marcadamente urbanas com influências ocidentais, e os servos da gleba, cuja existência se prolongou até ao início do século XX. É este abismo que, culturalmente, espanta o Ocidente, porque, independentemente da miséria que se desenvolveu na Europa, quer por força do comércio marítimo a grande distância, quer por força da industrialização, havia uma abertura, embora bastante estreita, por onde alguns poucos afortunados podiam fugir da miséria para entrarem numa mediania bastante modesta (recordo, neste caso e como mero exemplo, aqueles que, prestando serviço militar como soldados, conseguiam alçar-se aos mais baixos postos dos exércitos ou das marinhas nacionais) facto que era impossível para a grande massa de camponeses russos ou a eles sujeitos, por se encontrarem amarrados à terra e ao senhor da mesma.

O czarismo (palavra derivada de César da Roma imperial) entre o século XVII e o começo do século XX era, para os camponeses ignaros e desfavorecidos, uma forma de paternalismo, pois o imperador funcionava como um bom pai a quem tudo se devia e se agradecia. O pai de todas as Rússias invocava o amor pela terra ‒ a mãe, em cuja ubre o povo encontrava o alimento ‒ para chamar os mais desgraçados ao serviço de uma pátria que eles não conheciam, nem dela ouviram falar (conceito que se popularizou, na Europa, com a Revolução Francesa). Assim, ainda durante a 2.ª Guerra Mundial, Estaline, ao invés de invocar os valores revolucionários para mobilizar os cidadãos para defender a URSS, apelou à defesa da Mãe Rússia, conhecida de todos desde os tempos dos czares.

Sem receio de errar, podemos dizer que a Rússia (e não a Federação) é um conjunto de povos e culturas distintas, que continua a viver uma situação de atraso social segundo os valores do Ocidente, carecendo de um poder político forte para orientar e objectivar os interesses comuns e nacionais. Por ignorância, com exclusão das elites, são xenófobos em relação ao Ocidente. Sofrem passivamente a opressão política de sucessivos ditadores mais por hábito do que por medo; trata-se de um hábito cultural, que lhes está enraizado pelo uso e costume da servidão da gleba. São naturalmente dominados pelo obscurantismo, que encontrou terreno fértil no camponês do início do século XX e se prolongou com a quimera do homem novo socialista.

 

Olhados com a frieza de uma análise que assenta na evolução histórica, tanto os russos comuns e vulgares como americanos comuns e vulgares são em tudo semelhantes, pois constituem a argamassa trabalhável pela vontade política das elites respectivas, que são levados a ver o mundo e o outro segundo o parecer de quem comanda o processo político. Falta a ambos ‒ ao americano e ao russo ‒ a sensibilidade, a rebeldia e o sentido crítico de uma cultura marcadamente europeia, moldada no cadinho da Magna Carta, do iluminismo, da Revolução Inglesa, da Revolução Francesa e, simultaneamente, resultante do Renascimento e da Reforma.

Se nos EUA se fala de cultura ocidental, não se fala do mesmo que na Europa central, ocidental e meridional e, se na Rússia se combate o Ocidente, de certeza que não é o Ocidente da Europa que, em tempos, tentaram copiar e importar para colar à cultura eslava a prótese que viram em França, na Itália e na Inglaterra.

Só sendo capaz de estabelecer estas diferenças e estas semelhanças é que se pode compreender o erro em que a Europa está a cair ao aceitar como boas as razões dos EUA na guerra entre a Ucrânia e a Rússia.

09.07.22

A queda de Boris e a guerra


Luís Alves de Fraga

 

Finalmente, Boris Johnson caiu da cadeira onde o populismo mais primário o havia colocado em nome de um nacionalismo inglês quase incompreensível num tempo em que a tendência geral é para se criarem blocos capazes de enfrentar a globalização. Mas, na verdade, tudo é possível de uns tipos que, vivendo numa ilha, afirmam que, em momentos de grande temporal, o continente está isolado!

‒ E será que o desaparecimento da cena política daquele desgrenhado, também mental, tem qualquer tipo de reflexo na guerra que se trava entre a Rússia e a Ucrânia?

Tenho para mim, naturalmente ditado por razões estratégicas, que, venha quem vier, não altera, de maneira significativa, a política de guerra do Reino Unido, porque há, pelo menos, dois factores a levar em linha de conta: em primeiro lugar, a política externa inglesa ainda tem tiques imperiais ‒ Londres olha para o mundo como se o eixo da política global passasse por Greenwich tal como passa o meridiano de referência, mas, realmente, já não passa ‒; depois, na Inglaterra, sabe-se, com muita certeza, que só a ligação de Londres a Washington pode induzir importância de grande potência à pequena Grã-Bretanha de hoje. Assim, na City, percebe-se que a ligação mais conveniente aos interesses financeiros britânicos é feita, em directo e em primeira mão, à Wall Street, em Nova Iorque.

 

Em Londres ninguém esqueceu ainda que as grandes guerras na Europa foram resolvidas graças à intervenção dos soldados, do armamento e dos bens de toda a ordem vindos dos EUA, em 1917 e em 1941.

Se em 1918/1919 os EUA mantiveram a prática da doutrina de Monroe (em síntese, com ilações adjacentes: o presidente James Monroe, em 1823, estabeleceu, no Congresso, o princípio de que a América é para os americanos e, deste modo, devem ser impedidas as intervenção da Europa no Novo Mundo, deixando que sejam os EUA a conduzir e influenciar ‒ de acordo com a ideia do chamado Destino Manifesto, ou seja, a difusão da democracia, da liberdade e da realização da felicidade na Terra, através da criação de oportunidades para todos, pertence aos EU ‒ todos os Estados que haviam sido colónias de Portugal, da França, da Holanda e de Espanha, no continente, de modo a que, de Washington, partissem as directivas e acções que deveriam ser aceites do Norte ao Sul do continente americano), dizia, se mantiveram a doutrina de Monroe, levando a que o presidente Wilson visse gorada a sua tentativa de influenciar a política europeia, o mesmo não aconteceu, em 1945, porque, pode garantir-se, a velha doutrina estabelecida pelo quinto presidente dos EU, se começou a transformar em algo cujo enunciado se traduz numa frase muito simples, que glosa a de 1823: O mundo é para os americanos. E era para os americanos, porque eles haviam vencido na Europa, no Pacífico e em todo o lado onde a guerra chegara, menos onde os vencedores haviam sido os russos da URSS.

O típico gentleman britânico, conservador e incapaz de abdicar dos seus princípios, do guarda-chuva, do chapéu e da fleuma tinha sido destronado pelo filho do agricultor americano, capaz de fazer negócio e prosperar através das oportunidades dadas pela liberdade, também, de chantagem e vigarice. O mundo não era mais aquele local onde flutuava a Union Jack, mas onde se bebia Coca-Cola, mascava chuin gum, e se falava um inglês adulterado pela iliteracia de um povo que socorrera a Velha Europa, evitando que soçobrasse perante a ameaça de uma nova ideologia política que socializava os bens de produção e falava de um homem novo. O Reino Unido desfez-se ‒ para satisfazer a vontade de Washington ‒ do império colonial, mas, para ilusoriamente se compensar, ampliou a Commonwealth.

 

Nesta descida aos infernos da Grã-Bretanha há que perceber que jamais os homens da rua, o Mr. Brown ou o Mr. Smith deixaram de ter a, agora mais do que ilusória, sensação de serem donos de um império. Trata-se de algo que nós, portugueses, somos capazes de compreender muito bem, bastando lembrar-nos da Glória de termos dado mundos ao mundo através da Epopeia dos Descobrimentos… Incha-se-nos o peito, mas é só vento, só História, que ameniza a triste condição do presente nacional.

Na verdade, a Inglaterra foi, do final do século XVI em diante, até 1945, um dos Estados predominantes na Europa, disputando o domínio dos mares à Espanha, à Holanda, à França e, por fim, à Alemanha. A Inglaterra foi árbitro e jogador nos conflitos europeus, contra a Holanda, a Áustria, a Prússia e, acima de todos, a França. Foi determinante no Congresso de Viena. Opôs-se, na Europa e no mundo, às tentativas hegemónicas da Alemanha, depois desta se ter unificado. Segurou a França e a Bélgica, em 1914 e, de novo, estes mais a Polónia, em 1939.

Mas o que a Inglaterra parece não ter compreendido é que a perturbação continental deixou, em 1945, de ser provocada pelos Estados europeus e, até mesmo pela URSS, porque deslocou o seu eixo para o continente americano e, partindo deste, para todo o mundo, de modo a exercer o controlo estratégico do mesmo.

Os motivos de guerra deixaram de estar no Velho Continente e Boris Johnson parece ter baralhado as páginas dos compêndios de História por onde estudou (?) ou, então, ardilosamente, procurou um populismo que o afasta da realidade presente para o colocar num passado ainda recordado como sendo grandioso e interventivo.

 

Tal como disse no início, o que se seguirá a Boris Johnson não faço ideia, mas julgo poder dar garantias se for a vertente populista a preponderar: tudo ficará na mesma em relação à guerra; contudo, se prevalecer o bom-senso entre os conservadores britânicos, não sei se serão capazes de se desligar da estranha e quase contranatura aliança com os EUA para procurarem ser um dos pilares fortes da Europa, porque, desta vez, não são significativas as diferenças entre os grandes Estados do Velho Continente, nomeadamente, a Alemanha, a França e, de alguma maneira, a Itália e, em menor medida, a Espanha. O perigo está no momento em que o pensamento estratégico se deixa dominar por emoções e interesses periféricos, como sejam eleições internas, por exemplo.

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