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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.07.22

A corrida de fundo


Luís Alves de Fraga

 

Escrever sobre os últimos apelos do Presidente Zelensky para que as populações do Donbass saíam imediatamente da região para evitar serem feitas prisioneiras dos russos é quase ridículo, porque toda a gente está a aperceber que se pode tratar de uma artimanha para levar as tropas russas a acreditar numa investida em força dos ucranianos sobre as cidades já ocupadas ou de uma acção desmobilizadora junto dos ucranianos pró-russos, levando-os a pensar no bombardeamento da prisão onde estavam ucranianos do célebre batalhão Azov. Será que Zelensky os sacrificou para atirar as culpas para os russos e fazer fugir-lhes os apoiantes residentes na região?

Não se admirem os meus leitores, porque políticos com alto poder de decisão e generais calejados em guerras ou mesmo exercícios militares, mandam para a morte com muita facilidade e continuam a dormir e a comer e a conversar como se nada fosse com eles. É que a morte de uma só pessoa impressiona muito mais do que a morte de centenas, milhares ou milhões; quanto maior é o número menor é a sensação de culpa. É a inevitabilidade da História. Eisenhower, o comandante das tropas de assalto na Normandia, no Dia D, sabia que iam morrer uns bons milhares de homens nas primeiras horas, mas não hesitou em dar a ordem de ataque aos alemães, nem de bombardear as cidades inimigas até não ficar pedra sobre pedra. Não perdeu o sono, foi Presidente dos EUA e morreu com setenta e oito anos. Churchill, foi, durante a 1.ª Guerra Mundial, o grande autor do desastre militar no estreito dos Dardanelos, que levou à morte milhares de soldados australianos e neozelandeses, contudo, nem perdeu o sono, nem isso lhe travou a carreira política. A propaganda apaga rapidamente as memórias más junto das multidões.

 

Parece que se prepara uma ofensiva ucraniana sobre os russos apoiada com material militar recebido do Ocidente (vamos a ver o destino dele quando chegarem ao fim as hostilidades na Ucrânia… Contra quem se virará?). Se os russos tiverem de recuar até ao começo do Inverno, podemos começar a falar de uma vitória da Ucrânia, mas aqui e agora, não está em causa a vitória de Kiev sobre Moscovo; o que, realmente, se joga é a posição da Rússia no contexto das grandes potências. Esse é o cerne da toda a questão.

De facto, tudo parece indicar que os EUA, por interposto país e interposto conflito, que vem de 2014, pelo menos, quer remeter a Rússia para uma posição secundária no plano da estratégia global, que se defende em Washington. E está a cumpri-lo, pois o mundo ficou a saber que, com o armamento clássico, a Rússia não vai além de um impasse militar na Ucrânia, quando, em Fevereiro, toda a gente temia que às ordens de Moscovo pudessem ficar todos os Estados da Europa. Eu próprio, logo de início, imaginei possível uma guerra relâmpago.

Ora, se a Rússia, com material de guerra clássico, não passa deste ponto, esta mesma leitura estão a fazê-la os dirigentes políticos e militares da China e vêem nisso a abertura de uma oportunidade para concorrerem ao segundo lugar. Contudo, os EUA também percebem o que se em Pequim e, por causa das dúvidas, sem o nível da paciência e da diplomacia chinesa, fazem saber que estão dispostos a apoiar, acirrando-o, o conflito entre a China continental e a Formosa ou Taiwan.

Esta atitude forçada, corresponde à do cão rafeiro que, naquele muro além, alça da pata e urina de encontro às pedras para marcar o terreno ‒ «Aqui ninguém mais mija! Este muro tem a minha protecção!» Mas esquece que, antes, o cãozinho chinês já por lá havia mictado, dizendo suavemente aos seus companheiros de raça: «Se aqui algum cão estrangeiro mijar reunimos forças e mijamos-lhe todos, ao mesmo tempo, em cima, para que saiba que, também ele, é terreno nosso!»

 

Este é o retrato figurado do que ocorre neste momento entre os EUA, a China e a Rússia. Esta é a corrida de fundo que os três estão a fazer por causa do controlo global que passa, necessariamente, por ter força militar para dissuadir os outros concorrentes nas diversas modalidades onde querem ser os detentores da medalha de ouro.

 

Com mais adornos, mais requintes de linguagem, mais voltas ou reviravoltas que alguém seja capaz de dar, a guerra na Ucrânia foi a espoleta que determinou o disparo para esta corrida de fundo pela primazia da detenção do pelouro governativo da globalização.

Será que o domínio do mar e do comércio marítimo, logo, do poder global, está a transitar do Atlântico para o Pacífico, tal como já transitou do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo, nesses períodos, feito dos Fenícios, dos Gregos, dos Cartagineses e, depois dos Romanos, os detentores incontestados do poder, para serem, muitos séculos depois, substituídos pelos Portugueses e Espanhóis, que cederam o lugar aos Ingleses e Holandeses e estes aos Americanos? Será que estamos a viver o período de transição para os Chineses? Haverá alguma espécie de determinismo nestas deslocações? Será que os EUA estão a opor-se ao sentido da História?

 

Se calhar, porque estamos no olho do furacão, não nos apercebemos dos vórtices que se nos impõem num tempo de mudança.

Seja como for, a Rússia já não é a potência que se contrapõe, em termos de poder militar clássico, aos EUA, mas caber-lhe-á, ainda, o segundo lugar no pódio?

30.07.22

De janelas e portas abertas


Luís Alves de Fraga

 

Sou do tempo em que, ao falarmos ao telefone, quando se ouvia uns estalidos se desconfiava de estarmos a ser escutados (escutas que podiam ser feitas, normalmente, por uma de três entidades: PIDE, PJ e CTT) e imediatamente se desligava. Também sou do tempo em que a nossa correspondência postal era sub-repticiamente aberta (quase não se dava por isso) e era fotocopiada ou simplesmente copiada ou confiscada (quem fazia este trabalho ou eram legionários da chamada Legião Portuguesa, funcionários dos CTT, ou a própria PIDE para cuja sede era encaminhada a correspondência dos politicamente suspeitos). Depois, aqueles que se atreviam a escrever para os jornais, em especial os da chamada pequena imprensa ‒ ou seja, os jornais de província ‒, porque na grande imprensa só tinham cabimento os jornalistas de renome, podiam ter ficha na PIDE/DGS através da denúncia das várias comissões de censura prévia, se se atrevessem a dizer o que não deviam dizer. Finalmente, os filiados ou simpatizantes do PCP ou de pequenos partidos da extrema-esquerda ou, até, os velhos democratas da chamada oposição democrática (gente vinda da 1.ª República) eram vigiados de diferentes maneiras de modo a que a polícia política pudesse exercer o seu múnus persecutório com direito a prisão por poucas horas ou por muitos anos.

Chamávamos a isto fascismo! Medidas fascistas atentatórias da liberdade.

 

Quando entrámos numa outra dimensão das comunicações interpessoais, aquelas a que chamámos Internet, quando se passou à comunicação individual através do telemóvel, quando usamos uma triangulação com satélites artificiais para saber onde estamos e o melhor caminho para irmos para onde desejamos ir, a que chamamos GPS, quando o nosso computador deixa de guardar o que nele guardávamos e coloca tudo isso naquilo a que chamamos nuvem, caros leitores, escancarámos as janelas, todas as janelas e todas as portas da nossa casa interior para nela deixarmos ver tudo o que se quiser, mas, quando passámos a utilizar redes sociais, que podem ir do simples chat a todas as outras, incluindo os inocentes blogues, deixámos que entrassem na nossa casa interior, mas, mais do que isso, para quem saiba usar toda essa informação, deixámos que manipulassem, como lhes apetecer, as nossas vidas e, mais ainda, as nossas emoções.

Já não é segredo que as eleições desse populista que foi eleito Presidente dos EUA, Donald Trump, foram manipuladas a partir da Rússia. Vem noticiado nos jornais ‒ o que não me dá garantias ‒ mas, mais do que isso, foi verificado por senadores americanos cuja informação é proveniente das investigações de organismos como o FBI. E, a não ser que o próprio FBI esteja a ser manipulado por estranhos, julgo, ainda, para este efeito e só este, ele é fiável.

 

Essa coisa que há duas décadas chamámos Big Brother, essa possibilidade de haver quem nos (para aqueles que passaram a usar as tenologias de ponta) espiasse em todos os momentos da nossa vida e nos recantos mais escusos dos nossos segredos, está, no momento que escrevo, absolutamente ultrapassada, porque já é possível que um Super Big Brother vigie e comande o Old Big Brother. E cada dia que passa essa capacidade vai aumentando pela acção permanente e persistente dos hackers, ou seja, os descobridores dos segredos das fechaduras, que admitem fechar as nossas informações nos nossos computadores, mesmo que não usemos a tal nuvem.

Os Estados julgam, mas julgam mesmo, que sabem guardar bem os seus segredos, aqueles que passaram pelos telemóveis, pelos tradicionais telefones, pelos computadores encriptados das suas repartições e pelos seus mais altos e inexpugnáveis senhores do poder. Contudo, a verdade é que há sempre a possibilidade de existir alguém que penetra na rede e chega ao fundo desses top secrets. Aliás, basta pensarmos um bocadinho para percebermos que a inteligência do ladrão anda sempre à frente da do polícia, assim, por muita segurança cibernética que possa existir, há-de haver sempre um ladrão que fura o esquema e entra nele.

 

Agora que estamos dentro deste mundo democrático e livre, regido pela ciência cibernética, podemos perceber como neste conflito entre a Rússia, os EUA e a Ucrânia, que arrebanha toda a Europa, em especial a da União, tudo está construído para parecer e não para ser o que realmente é. A luta de espiões, embora continue a fazer-se com gente de carne e osso nos mais diversos locais, está a ser, cada vez mais, substituída por gente que, com farda ou sem ela, está sentada a milhares de quilómetros de distância e bombardeia os estados-maiores e a nós com informações falsas, verdadeiras, semi-falsas e semi-verdadeiras. Bombardeia com a mesma impunidade e segurança que os drones destroem os alvos escolhidos num búnquer algures no mundo.

 

O informador da PIDE/DGS, tal como o agente dessa prestimosa organização fascista, tendo sido personagens horríveis, no seu tempo, hoje, com os olhos da História do presente e do futuro, foram meninos do coro da paróquia mais absurdamente estúpida da mais ignara diocese. Os manipuladores de opinião do passado são, historicamente, uns inocentes aprendizes de como se dá a volta à vontade colectiva de quem se quiser, pois os de hoje tanto nos levam a consumir o alimento que eles entendem que devemos comer como a votar no partido que eles querem que nós votemos.

Assim, cada vez mais, é preciso perceber estes mecanismos para fazer escolhas políticas que julgamos acertadas, pois nada nem ninguém nos garante que o sejam. E a desconfiança é a primeira virtude que este sistema de comunicação global nos impõe do mesmo modo que, nós portugueses, no tempo do fascismo, desconfiávamos do tipo que, na mesa do café ao lado da nossa, parecia ler o jornal, mas escutava o que dizíamos, ou desconfiávamos do pobre chinês vendedor de gravatas que, carregado, se acercava de nós quando conversávamos em voz baixa.

Desconfiar é a palavra de ordem!

29.07.22

Uma cultura para enganar


Luís Alves de Fraga

 

Tenho-me debruçado constantemente sobre a guerra russo-ucraniana, procurando desmontar o que parece para mostrar o que pode ser numa perspectiva estratégica. A minha preocupação tem sido a de tentar ir ao fundo das questões, mas, para ir mesmo mais longe, mais ao âmago de todo o mecanismo que nos leva a aceitar sem grandes questionamentos o que nos querem impingir como verdade única e indiscutível, impõe-se-me fazer a análise daquilo que chamamos cultura ocidental.

Vamos tentar percorrer esse caminho de uma forma simples e fácil de compreender?

 

Na Europa, por ser o que mais nos interessa de momento, o movimento de domesticação da nossa rebeldia colectiva começou com a imposição de uma religião ‒ a católica apostólica romana ‒ que não explicava o mundo, nem a vida, nem a morte, mas elevou ao máximo os índices de medo do ser humano, pois tudo era explicado com base na simples vontade de Deus e com o castigo das penas do inferno, sendo poucos os que se salvavam para gozar da paz celestial junto desse Deus justiceiro e cruel.

Da Europa levámos para o mundo esta religião de medo e de punição. Foi este mecanismo que começou por nos moldar para a cultura da aceitação de valores que vêm de cima. Morria-se, porque era a vontade de Deus, sofria-se a miséria pelo mesmo motivo, aceitava-se a autoridade despótica, porque Deus assim o queria. Este caldo de cultura foi sobrevivendo e ganhando forças durante dezoito séculos, embora alguns já o contestassem, .

 

Quase de repente ‒ comparado com o tempo de preparação ‒ surge aquilo que os homens chamaram a Revolução Industrial, que começou pela rápida produção de tecidos de vários tipos e qualidades. Surgiu na Inglaterra e passou, de seguida, à França e aos EUA. Havia que vender o mais possível de tecidos caros, mas o poder de compra para eles era baixo, então a técnica de venda mudou de agulha: tinham de se vestir os povos que por tradição e condições climatéricas andavam nus ‒ esse tornou-se o fardo do homem branco, através de civilizar os povos africanos. Mas foi-se mais longe: proibiu-se o fabrico de tecidos manufacturados onde isso era uma tradição ‒ o caso mais gritante foi o da Índia ‒ para passarem a ter venda forçada os tecidos idos da Inglaterra.

Quando o mercado começou a ficar saturado houve que inventar uma forma de ultrapassar esse escolho e um processo que havia sido usado pela aristocracia mais endinheirada de todos os países surgiu como solução: a moda. Ora, como a mais abastada burguesia fazia questão de exibir a sua fortuna através da forma de vestir das esposas e filhas, foi sobre o sexo feminino que o conluio capitalista-mercantil actuou (ganhavam os produtores de tecidos, os estilistas, as modistas e as costureiras).

 

Mas a Revolução Industrial não se ficou só pelos têxteis; abrangeu todos os produtos fabricáveis e, tal como para os tecidos, o mercado não era elástico, assim surgiu a, então, chamada propaganda que se fazia nos jornais e em prospectos, e anúncios, que usavam os mais variados métodos para despertar o desejo de compra (quem não viu, em filmes antigos, os homens com cartazes pendurados pelo pescoço anunciando tudo o que se possa imaginar?).

Percebeu-se, muito cedo, que o mercado poderia ter a dimensão que se quisesse, desde que se actuasse no mecanismo da vontade individual o qual tem como caixa de ressonância, para lhe ampliar o efeito, a inveja, o ciúme e a vaidade.

 

Podemos tentar perceber qual a razão deste sucesso mercantil e a explicação é tão simples que quase parece ridícula: é que, atrás do fabrico do quer que fosse, geraram-se profissões que se faziam pagar para trabalhar sobre o produto fabricado: o electricista, o mecânico de todo o tipo de máquinas, o canalizador, o dactilógrafo, o telegrafista, o expedidor dos transportes, o cobrador dos bilhetes, o revisor, etc., etc. E toda esta gente ganhava o suficiente para comprar, dentro das suas posses, tudo aquilo que a propaganda anunciava e que o desejo de não ficar atrás do vizinho obrigava a adquirir.

Gerou-se, deste modo, uma classe média burguesa apta a receber o que era anunciado sem grande discussão nem grande interrogação sobre o valor ou necessidade do que estava à venda.

Depois da 1.ª Guerra Mundial, fez-se a clara separação entre propaganda e publicidade; a primeira ficou reservada para a política e a segunda para a actividade comercial.

O terreno estava preparado para se poder cultivar a alienação que, afinal, tinha muitíssimo a ver com a prática da religião: quem não seguisse a moda de consumir ou a moda de pensar estava condenado ao inferno social ao ostracismo dos anarquistas: não ia às festas, não entrava nos clubes, não era, politicamente dos nossos.

 

É a vergonha de ser diferente que embota, paralisa, gripa a possibilidade de se interrogar sobre o verdadeiro valor de escolher este produto ou esta forma de pensar ou, em última análise, de apoiar determinada corrente política que está em voga.

Mas, em política, associado à vergonha, as ditaduras do pós-Grande Guerra impuseram um outro ingrediente muitíssimo mais poderoso: o medo de discordar das verdades oficiais. E é ele que, depois de derrotadas as ditaduras políticas identificadas como tal, prevalece nas democracias ditatoriais, pois, subliminarmente, faz-se passar a mesma ideia usada para ampliar o mercado e o consumo com o fim de gerar um medo interno e um medo externo.

O medo interno resulta da crítica social, do receio do desalinhamento político que a maioria impõe ‒ note-se que a maioria aumenta à custa desse mesmo medo ‒ e, sem perceber as razões e os fundamentos, o indivíduo é levado a aceitar e, às vezes, até, a defender princípios, razões, cuja razão desconhece em absoluto, só porque lhe foram impostos a partir de uma máquina propagandística que ele se recusa a interrogar.

O medo externo provém da acção que a propaganda desenvolve quanto aos receios do que a vitória do inimigo ou do adversário pode causar na rotina a que o sistema político leva a aceitar como único e normal. Durante o período fascista em Portugal, o medo da impossibilidade de viver em democracia, em liberdade, porque não se conhecia nem a democracia nem a liberdade, não se estando preparado para viver em tal regime, aceitava-se a ditadura como forma única de garantir um futuro tranquilo.

 

Para se compreender os processos de acção da propaganda política tem de se começar por recusar em bloco a verdade impingida para se perceber quais os interesses que estão por trás a fazer movimentar a máquina da alienação. É que, em política tal como na indústria, há sempre um objectivo que visa uma forma de lucro material ou imaterial.

 

Creio que, depois desta breve explicação ‒ que terá de ser meditada ‒ se torna mais clara a propaganda com que o Ocidente está a ser bombardeado para perceber a guerra russo-ucraniana. Todavia, em abono da verdade, ao que parece, na Rússia, porque se trata de um regime político de matriz ditatorial, a propaganda não carece de ser tão sofisticada, basta proibir o contraditório e pôr a circular a verdade que se quer ver aceite. Mas este regime corre um risco muito mais primário do que aquele que se desenvolve em democracia, pois a desconfiança silenciosa e silenciada leva à negação absoluta de toda a informação, restando somente os grupos altamente alienados ou, por conveniência, coniventes com o poder que aceitam ou fingem aceitar o que se diz nos órgãos de comunicação oficial.

28.07.22

Aliás, sim, mas porquê?


Luís Alves de Fraga

 

Há dias, duvidei que fosse possível a Rússia ter bombardeado, no dia seguinte à assinatura do acordo sobre saída de cereais do porto de Odessa, esse mesmo porto. Duvidei com base numa certa lógica da dialéctica que se supõe existir nas acções e reacções próprias da guerra. Não se faz um a cordo para, menos de vinte e quatro horas depois, o torpedear ou, no caso, o bombardear.

Moscovo acabou por confirmar, através de várias vias, que tinha bombardeado o porto de Odessa, mas, dada a precisão das armas utlizadas, os impactos ocorreram a uma significativa distância dos silos dos cereais armazenados e, nos dias seguintes, os bombardeamentos não têm parado um pouco dispersos por todo o território ucraniano. Que bandidos são os russos!

 

Mas, deixei-me lá ver uma coisa… Os ucranianos têm estado a sofrer os ataques russos e não têm ripostado sobre as tropas invasoras? Estão a preparar um recuo táctico, porque não têm capacidade ofensiva?

Todos sabemos que as respostas são negativas. As tropas da Ucrânia têm atacado e não tem sido pouco, as tropas russas e as suas linhas logísticas. Esse é, afinal o objectivo para o fornecimento de armas e munições que o Ocidente em geral e os EUA e o Reino Unido em particular têm estado a fazer. Sabemos de algumas vitórias pontuais dos ucranianos. Ou julgamos saber.

 

Ora bem, quando os ucranianos fazem esses ataques, o mundo aplaude e regozija-se com as destruições alcançadas, que os russos, aliás, não exibem, segundo os melhores preceitos bélicos: há que dissimular, para manter o inimigo enganado. Todavia, tão ufanos estão os ucranianos das suas conquistas que não dissimulam nem a origem das armas nem das respectivas munições ‒ como o poderiam fazer? E, vai daí, os russos, através da sua rede de informadores e das observações directas que fazem com satélites e com possíveis drones de voo a grande altitude, têm indicações precisas dos locais onde se encontram ou armazenadas as armas ou as munições que vão chegando ao território da Ucrânia e, por isso, não se fazem rogados, quando o alvo é compensador. Claro, as televisões só mostram, depois, casas esventradas, apartamentos destruídos e vivendas rurais em ruínas, mas não dizem o que havia pelas redondezas, fazendo-nos acreditar que os russos são loucos ao mandar disparar mísseis que custam pequenas fortunas para arrasar casas, escolas, hospitais e bairros residenciais.

 

Gostaria que os leitores fossem capazes de perceber que a guerra, qualquer guerra, é como os teatros de sombras: o que parece não é! O coelhinho a comer não passa de duas mãos bem colocadas para parecer um coelhinho a roer; o gigante é, afinal, um menino que, bem posicionado em relação à luz, surge como um monstro terrível.

 

Quando é que o nosso racionalismo é capaz de perceber que a Rússia de Putin é um tigre de papel, pois, se de facto, fosse aquela potência avassaladora que pretende chegar ao Atlântico na costa francesa ou mesmo portuguesa, sem utilizar o arsenal nuclear ‒ utilizando-o, qual seria a vantagem de chegar tão longe? ‒ já tinha esmagado a Ucrânia e atingido todos os objectivos que, supostamente, lhe colocam em cima da mesa do estado-maior?

Teatro de sombra que, todavia, não se deixa enganar, para não perder o prestígio que já teve e, um dos maiores erros do Ocidente está na tentativa de provar, por A mais B, que a Rússia é vencível por uma Ucrânia ajudada pelos EUA e mais a Europa, sem perceber que está a arrastar, com a aplicações de sanções económicas a Moscovo, o mundo, e em especial a União Europeia, para uma crise que só teve paralelo nos anos a seguir à 2.ª Guerra Mundial.

É tempo de abrir os olhos. As extremas-direitas estão à espera para tomarem conta do poder e, então, lá se vai o projecto europeu, a democracia e a liberdade. Será isso que tão afincadamente desejamos?

27.07.22

Uma vaga estratégia europeia


Luís Alves de Fraga

 

É natural que a grande maioria dos meus leitores não saiba ou já não se lembre de ver, no tempo do Estado Novo, navios mercantes fundeados no meio do Tejo, ali na zona vulgarmente conhecida por Mar da Palha ou talvez um pouco mais para Norte, exibindo a bandeira vermelha com a foice e o martelo, da URSS. Vinham carregar cortiça e descarregar trigo ou outros cereais. O transbordo fazia-se em grandes barcaças puxadas por rebocadores ou, muito antes, em fragatas do Tejo, à vela, navegadas por marinheiros de água doce, que conheciam como ninguém todas as manhas do estuário deste rio tão lindo, que desagua em mar português.

A prosa pode aparecer com laivos poéticos, mas é verdadeira porque, nestas coisas de comércio não há ideologias políticas; há interesses económicos e os soviéticos pagavam bem a nossa cortiça. Não podiam era atracar ao cais nem a tripulação vir a terra. Por cá não havia embaixada nem embaixador soviéticos, nem passaportes nem vistos de estadia, mas sobrava a cortiça e faltavam cereais.

 

Creio que não está estudada a história deste comércio, mas, como contemporâneo, julgo poder deduzir, como hipótese de trabalho, o seguinte: Salazar, odiando a ideologia comunista, preferia fazer comércio dentro da Europa a ter de o estabelecer com certos países do continente americano, nomeadamente os EUA, em quem não confiava, nem considerava como potência com peso diplomático no mundo. Para ele, entre a, muitas vezes, traiçoeira Grã-Bretanha e os americanos preferia a primeira aos segundos, que achava incapazes de respeitarem a cultura e os costumes europeus, porque eram broncos e crianças crescidas. A cedência da base aérea na ilha Terceira foi feita a título gratuito durante as primeiras dezenas de anos, não por abundância de meios financeiros, mas por orgulho, soberba política e, até, desprezo.

Salazar foi dos últimos políticos europeus a render-se aos encantos americanos. Talvez, sem o saber dizer deste modo, o ditador tinha uma estratégia nas relações com a grande potência militar do ocidente. E não foi por acaso que assim procedeu; ele desconfiava da posição americana quanto à descolonização e sabia que podia contar, pelo menos, com a neutralidade do Reino Unido nesse assunto. No fundo, ele descobriu a ambição global de Washington e não pactuou com ela, de tal modo que, em 1961, Kennedy condenou a política ultramarina portuguesa e acabou por decretar o bloqueio de fornecimento de material de guerra a Portugal.

Salazar sabia que, se de um lado chovia, do outro trovejava! Deste modo, manteve uma política de frieza com os americanos e uma política glacial com os russos.

E tanto assim foi que o primeiro Presidente dos Estados Unidos a visitar Portugal foi o general Eisenhower, em Maio de 1960, mas, note-se, Salazar teve o cuidado de convidar alguns anos antes, Isabel II (1957) para visitar o nosso país, convite que a soberana, com a idade de 30 anos, satisfez, depois de o seu antecessor Eduardo VII, em 1903, ter sido o primeiro monarca britânico a visitar-nos.

 

Tudo isto se passou quando o governo de Portugal, sozinho, tinha de, e podia, traçar estratégias políticas e diplomáticas de relacionamento com outras potências ‒ grandes ou pequenas ‒, obrigando a que, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, se usasse a cabeça para pensar e a que o primeiro-ministro (ou equivalente no cargo) escolhesse prioridades para salvaguardar interesses nacionais (ainda que esses interesses pudessem beneficiar só uma parte da população). Foi isso que levou a que, durante a vigência do regime fascista, o Estado fosse comprando para si as acções das companhias estrangeiras que dominavam sectores estratégicos da nossa economia. Foi a nacionalização de grandes empresas que, muitos anos mais tarde, já no âmbito do mandato da liberal União Europeia, possibilitou que se vendessem, de novo, ao estrangeiro para satisfazer as estratégias económicas desse grande espaço ao qual Portugal ficou sujeito.

Perdemos identidade, soberania, independência e capacidade de definir estratégias nacionais. A imensa Grã-Bretanha saiu da UE, exactamente por ter sentido o peso dessa grilheta.

 

E tudo isto vem a propósito da posição que a República Federal da Alemanha (RFA), ainda em tempo da URSS, ter estabelecido com Moscovo, em 1970, através da Política de Abertura, Willy Brandt, um tratado comercial que optou por usar o gás soviético para pôr a sua indústria a funcionar. Já antes, em 1960, o chanceler Adenauer, havia iniciado o comércio com a URSS, embora com críticas do mesmo Kennedy de quem Salazar desconfiava.

Ora, temos de ter em conta que, quer em 1960 quer dez anos depois, já existia o Mercado Comum e que a abertura alemã a Leste estava, não só a marcar uma posição estratégica para a recuperação económica da RFA, como a delinear uma estratégia para a CEE, que passava por cima de desentendimentos políticos para procurar, através do comércio, entendimentos vários. Havia, nesta época, uma clara separação entre o que era a OTAN ‒ aliança contra a expansão territorial da URSS, com a admissão do controlo de Moscovo sobre os Estados seus satélites, embora causando sempre espanto e revolta quando o Kremlin impunha a política dos carros de combate nas zonas que pretendiam fugir ao alinhamento comunista ‒ e o que era o interesse político e económico da Europa.

Mas, com a queda do Bloco de Leste, como repetidamente tenho dito, não só não se pôs fim à OTAN como se transformou esta organização em instrumento da estratégia global dos EUA, levando a que a União Europeia se deixasse enredar pela política da Casa Branca, perdendo Bruxelas uma óptima oportunidade para, num mundo que já não era bipolar mas multipolar, marcar a sua posição estratégica, envolvendo, também, a componente militar. A Alemanha estava em condições de providenciar a venda de armamento pesado aos seus parceiros da União, tal como a França em garantir o escudo nuclear, que Berlim não possuía.

A Europa, muito mais preocupada na actividade mercantil e subordinada à utopia originária da CEE ‒ o entendimento comercial põe fim às guerras (verdade para a Europa, mas mero sonho para quem aspira ao domínio global) ‒ aceitou estender a influência da OTAN para além dos seus limites fundadores, já que, ao abrigo do Art.º 5.º se sentia protegida, e acabou subordinada à política de Washington. E aqui estamos nós, europeus, a impor sanções económicas à Rússia e a perder a capacidade da Alemanha, motor da economia da União, seguindo caninamente a vontade que vem do lado de lá do Atlântico. Este é o pecado dos tecnocratas de Bruxelas que, deixando de ser políticos passaram a ser gestores de espaços económicos e financeiros.

Vamos pagar muito caro e aventura russo-ucraniana, que deveria ter sido circunscrita àqueles dois países, já que Moscovo não se atreve a atacar nenhum dos Estados da OTAN, por causa da cláusula determinada pelo Art.º 5.º. Estão a tentar convencer-nos do contrário e nós nem damos por isso.

26.07.22

Do direito dos outros até ao gás


Luís Alves de Fraga

 

Há dois dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia esteve de visita oficial ao Cairo e, segundo a ênfase dada pelas nossas televisões, terá dito as seguintes frases, falando da Ucrânia: «Os povos da Rússia e da Ucrânia vão continuar a viver juntos. Decerto que ajudaremos o povo ucraniano a libertar-se desse regime, que é absolutamente antipopular e anti-histórico» e «O ocidente insiste que a Ucrânia não deve iniciar negociações enquanto a Rússia não for derrotada [no] com (sic) campo de batalha».

 

Reitero, uma vez mais que sou português, coronel reformado, licenciado em Ciência Política, mestre em Estratégia e doutor em História e, por conseguinte, nada me move na defesa de Putin, nem da Rússia; pauto a minha conduta intelectual pelos ditames da descoberta da verdade possível num domínio onde a mentira impera para justificar a guerra e gerar a contra-informação. Sou um homem livre, que busca pensar pela sua cabeça, sem se deixar dominar por verdades feitas para consumo popular.

Repetida esta declaração de princípios, proponho-me analisar as frases ditas por Lavrov, no Cairo, para, depois, passar à questão da redução do consumo de gás na União Europeia.

 

Geograficamente é absolutamente indesmentível a primeira parte da primeira frase do ministro russo, dada a contiguidade territorial da Ucrânia e da Rússia («Os povos da Rússia e da Ucrânia vão continuar a viver juntos»). Quem discutir esta afirmação ou nunca olhou para o mapa ou é rotundamente idiota. Donde, até aqui, Lavrov tem toda a razão.

Vamos ao resto («Decerto que ajudaremos o povo ucraniano a libertar-se desse regime, que é absolutamente antipopular e anti-histórico»).

Comecemos por identificar o regime ucraniano.

Sem dúvida, é capitalista, fundamentado no poder de uma oligarquia enriquecida com o desmembramento do sistema económico soviético, na base da frase bem portuguesa salve-se quem puder. Houve quem se salvasse muito bem e quem ficasse na pobreza igual, ou quase igual, à que tinha no regime soviético socialista. Todavia, não é, por certo, nesta perspectiva que o ministro russo se refere ao regime político ucraniano pois, neste particular anda pouco distante do regime praticado na Rússia.

A afirmação democrática da Ucrânia está muito aquém daquilo que na Europa do Norte, Central e Meridional entendemos por democracia. Por lá, imperam grupos armados (ainda antes do estado de guerra) com todas as características neofascistas com actuações semelhantes aos camisas negras de Itália, aos camisas castanhas e às SS da Alemanha hitleriana, com uma só diferença, em vez de perseguirem comunistas e judeus perseguem russos ou russófilos. É nisto que se faz a afirmação antipopular e anti-histórica do regime político ucraniano.

Foi, por conseguinte, sobre este regime, que Lavrov se referiu no Cairo. Libertar os ucranianos de neonazis que perseguem russos ou os amigos ou simpatizantes dos russos na Ucrânia. Tão amigos e simpatizantes que, nas regiões onde são maioritários, desejam a separação política da Ucrânia.

 

Mutatis mutandis (mudando alguns pormenores) já tivemos muitas oportunidades de ver os EUA actuar da mesma forma sobre povos que, umas vezes, lhes são geograficamente contíguos e, noutras, ficam bem longe do território americano.

Dizia-se na velha Lisboa dos meus tempos de menino ou há moralidade ou comem todos! Qual será a razão de se criticar a frase do ministro Lavrov e exaltar-se a atitude de Joe Biden, que promete armamento aos ucranianos? Ou, ao longo dos tempos, aceitar que forças militares americanas intervenham, em nome da democracia, em Estados ou grupos civilizacionais diferentes, nos costumes e hábitos, dos EU?

Mas Lavrov também disse que «O ocidente insiste que a Ucrânia não deve iniciar negociações enquanto a Rússia não for derrotada [no] com (sic) campo de batalha» e, realmente, não está a dizer mentira nenhuma, se tivermos como ponto de partida a informação que nos é, literalmente, despejada sobre a cabeça, através das televisões, das rádios e dos jornais e revistas. Julgo que não se trata de uma imagem retórica, pois todo o esforço que, em especial, os EUA e o Reino Unido fazem aponta para a tentativa de repor as fronteiras da Ucrânia nos limites que tinham em 2014. Ora, isto corresponde a um envolvimento de apoio militar a um Estado para levar os seus cidadãos a morrer por uma causa que, se calhar, uma parte deles já deixou de compreender face à destruição que se semeia no solo ucraniano. Mas, mais grave, é que corresponde ao sonho de colocar de joelhos a Rússia e atirar por terra o seu orgulho nacional, o que é extremamente perigoso pois a História tem demonstrado que a pior derrota é aquela que humilha o inimigo. Face ao rebaixamento da Rússia, Moscovo pode aceitar que, perdido por cem, perdido por mil, e lá se vai a humanidade ou a maior parte dela, porque, o último recurso poderá ser a elevação do patamar bélico para a utilização do armamento nuclear.

As pessoas não percebem a linearidade destes raciocínios? Não percebem que, desta vez, quem parece defender a democracia, está a levar o mundo para o caos e para o abismo?

Que alienação é esta que nos está a tentar submergir através de uma intoxicação informativa?

 

E, porque está correlacionada directamente com a guerra russo-ucraniana, vem à baila a questão do gás e das exigências de Bruxelas quanto à poupança forçada do mesmo, durante o período que falta até ao Inverno, para satisfazer necessidades dos Estados mais frios e carecidos da Europa.

É do conhecimento geral que Portugal e a Espanha, por razões técnicas de natureza económica e de transporte, se opuseram à poupança dos tais 15% que Bruxelas vinha impor. Tudo parecia aceite, mas, ao que me consta, na reunião ministerial, na capital da União, ficou ou vai ficar decidido que não haverá excepções para manter a coesão política entre todos os Estados (aceitar-se-á que a Espanha seja só obrigada a uma poupança de 7,5%).

Aguardemos pelos resultados, mas permito-me avançar, desde já, com a minha discordância, pois definem-se estratégias de comportamento político e económico, mas é-se incapaz de encontrar alguém que dê um murro na mesa das reuniões, afirmando que falta uma estratégia europeia face à segurança e defesa da União, porque, como diz o nosso bom povo, não se pode querer sol na eira e chuva no nabal, ou seja, não se pode ‒ ou melhor, não se deve ‒ querer estar protegido pelo chapéu-de-chuva militar americano sem que se esteja sujeito à vontade imperial da Casa Branca, porque, após a queda da URSS, a vocação da OTAN transformou-se, acabando no instrumento militar do imperialismo dos EUA, que, ao acreditar ser o polícia global de um planeta onde surgiram múltiplos poderes regionais, tem vindo a tentar impor a pax americana, o mesmo é dizer a ordem global aceite por Washington.

É tempo de perceber que a União Europeia para ser uma unidade económica e financeira tem de ser uma unidade militar autónoma dos EUA, que com eles colaborará ou não de acordo com os reais interesses europeus.

25.07.22

Comparações e a paz


Luís Alves de Fraga

 

Como já disse há tempos, recebo, via e-mail, resumos de vários jornais diários nacionais e estrangeiros que, de acordo com o critério de quem os escreve, vão realçar as notícias mais importantes.

Hoje, saltou-me à vista, por ser gritante, o total silêncio de o El País sobre o bombardeamento do porto de Odessa e a repetição da notícia no resumo do Expresso.

Não quero tirar conclusões apressadas, mas nem todas as diferenças podem ser jogadas no valoroso caixote da ética jornalística, em cuja tampa figura a frase chave do bom jornalismo: Verifique a veracidade do que vai afirmar. Jornalismo não é mexerico de bairro, não é repetir o que foi ouvido aqui para dizer além. Jornalismo ‒ quando eu estudei Sociologia da Comunicação ‒ é actuar em dois sentidos: contar a verdade possível (porque se foi verificar, através de várias fontes, se a notícia tem fundamento) e ajudar o leitor a formar uma opinião independente. É claro que, em especial na segunda metade do século XX, houve os pasquins partidários que fugiram completamente a esta norma deontológica, procurando arregimentar adeptos à custa da exploração das emoções e das mentiras.

Quando os interesses capitalistas se misturaram com os políticos para tirar bons proveitos e proventos desse casamento, alguns dos grandes jornais de referência, definidos pela sua isenção, foram comprados por certos donos do dinheiro e começaram a vender gato por lebre à sombra de uma imagem de honestidade já não existente. É fácil comprar consciências, tudo depende do preço! Também é verdade que, no lado oposto, quando não havia liberdade de expressão do pensamento, os jornais foram obrigados a publicar as verdades oficiais. Mas, porque toda agente sabia que era assim, aqueles que se não deixavam alienar ou seduzir pelos cantos das sereias do poder, ganharam a experiência de saber ler o contrário do que se afirmava.

 

Donde foram lançados os mísseis que atacaram o porto de Odessa? É tão estúpido que tenham vindo do lado da Rússia, que torna a notícia inverosímil. Aliás, que eu saiba, até agora, não houve qualquer confirmação oficial russa sobre tal assunto. Não me chega um curto texto numa rede social atribuído a uma funcionária de segunda categoria da diplomacia de Moscovo.

 

Mas, curioso é que o primeiro-ministro da Hungria, Victor Orbán, claro simpatizante de Putin, tenha declarado que a guerra não terá fim enquanto Joe Biden não abandonar o poder, nos EUA.

A afirmação pode parecer idiota, sem fundamento e semelhante a tantas outras que tanta gente lança para o ar. Contudo, se a analisarmos no contexto actual, percebemos que tem uma boa ponta de verdade ‒ pessoalmente continuo a admitir que a guerra terá o seu epílogo lá para Novembro do corrente ano, por causa dos efeitos económicos que vai provocar na Europa, em especial na do Norte, onde o frio é grande e a falta de meios de aquecimento doméstico determinará reivindicações sociais capazes de levar os governos a impor negociações de paz ou, no mínimo, de cessar-fogo e, nessa altura, não sei como ficará a popularidade de Zelensky ‒ dizia eu, tem uma boa ponta de verdade, porque, realmente esta guerra não é entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim entre Moscovo e Washington, através do povo ucraniano.

Ora, se isto for verdade, temos três cenários possíveis na Ucrânia: Zelensky, entre os ucranianos afectados pela guerra e residentes em zonas rurais, deixa de ser o Presidente heróico e defensor da terra para passar a ser o tirano que impõe a guerra, os sacrifícios e a morte por uma causa que começa a deixar de ter interesse para quem tem fome e frio. Outro cenário, é que Zelenski continua a ser o heróico Presidente para os ucranianos bem instalados nas grandes cidades distantes da guerra, para quem o sacrifício é mínimo porque a fome e o frio não serão tão rigorosos. Por fim, o terceiro cenário configura-se junto dos ucranianos fugidos da sua terra, sem grandes possibilidades de integração nas sociedades de acolhimento, que passam a ver no Presidente o homem que à viva-força quer uma guerra que já não traz vantagens para ninguém a não ser para os oligarcas ucranianos que estão a ver aumentado o seu poder à custa da morte e sacrifício do povo anónimo.

 

Em face destes hipotéticos cenários o Presidente ucraniano só tem duas soluções: ou demite-se e foge e deixa livre o caminho para a Rússia colocar no poder um Presidente fantoche que lhe garante aquilo por que agora luta: a desmilitarização da Ucrânia, a desistência da entrada na OTAN e na União Europeia; ou pressiona a Administração dos EUA para encontrar uma saída imediata da guerra e, neste caso, duas alternativas sequenciais poderão delinear-se: Zelensky é um homem morto e é substituído por um verdadeiro ditador rodeado de uma auréola de democrata que vai afogar em sangue os ucranianos numa luta contra a Rússia, porque, para o Pentágono, o que está em causa é o desmantelamento da capacidade militar clássica da Rússia para que esta não possa estabelecer uma aliança com a China quando Pequim resolver impor os seus direitos no mar e nos territórios que lhe ficam adjacentes.

Daqui concluo que, ou muito me engano, ou os EUA, através da aplicação de estratégias indirectas, estão a preparar as melhores condições militares para o enfrentamento da China, que se encontra já na rampa de lançamento para ser a grande potência mundial do futuro. Se assim for, na minha opinião, a estratégia definida entre a Sala Oval, o Pentágono e a sede da CIA está errada, pois deveria de, ao invés de hostilizar a Rússia, atraí-la para os interesses ocidentais, dos quais está mais próxima, do que empurrá-la para os braços da China e das médias potências nascentes, tais como a Índia e, até, o Brasil.

Mas, como sou o primeiro a reconhecer, a estratégia é uma ciência cheia de elementos aleatórios que, podem parecer uma coisa e acabarem sendo o seu contrário.

24.07.22

O Acordo


Luís Alves de Fraga

 

Foi há dias, a 22 de Junho, que através dos esforços conjugados do Secretário-Geral das Nações Unidas, o engenheiro Guterres, e do Presidente da Turquia, Erdogan, que se estabeleceu um acordo entre a Rússia a Turquia e a ONU, bem como entre a Ucrânia e as mesmas entidades, para se criar um corredor marítimo, no Mar Negro, com o fim de poder fazer seguir para os seus destinos africanos os milhões de toneladas de cereais que se acumulam no porto de Odessa. Claro que Moscovo aproveitou para conseguir fazer sair, também, alguns dos seus produtos pelo mesmo mar, com iguais destinos. Destinos fixados no Norte de África e em outras zonas daquele continente que está a ser visitado por um alto representante russo. Julgo, para o Kremlin a última coisa que deseja é pôr-se de mal com os africanos que o apoiam.

 

O acordo foi uma vitória para a Rússia, que conseguiu assim limpar uma parte da sua imagem já bastante denegrida no Ocidente. Para a Ucrânia devia representar uma vantagem, porque liberta os silos para receberem a nova colheita e, ao mesmo tempo, uma forma de recompor as finanças tão abaladas pela guerra.

Para Erdogan o acordo teve especial importância, porque o projectou como figura charneira entre a Europa e a Eurásia, entre a OTAN e a Rússia e entre o mundo que quer a paz e o mundo que alimenta a guerra.

Estes são os efeitos lógicos e imediatamente visíveis do acordo, que, para as Nações Unidas, foi também uma vitória, pois colocou este organismo internacional como intermediário entre a paz e a guerra, talvez nem sempre desejada, entre os EUA e a Rússia.

 

Mas suponha o leitor que, apreciando uma partida de xadrez entre dois grandes jogadores e sabendo o suficiente das regras daquele jogo, quer adivinhar as razões que levam os oponentes a mexer determinadas peças, em vez de outras e ou a deixar comer peças importantes em jogadas arriscadas. Sendo um jogo essencialmente estratégico os espectadores têm e devem colocar todas as hipóteses para compreender o que pode passar na cabeça de quem tem a responsabilidade de atacar e de defender.

Vem isto a propósito do facto de, quase não tinham passado vinte e quatro horas sobre as assinaturas dos acordos, já se dizia que a Rússia tinha bombardeado o porto de Odessa furando, desta maneira escandalosa, o primeiro balão de oxigénio que parecia ter surgido desde Fevereiro até ao presente.

Assim, convido o leitor a acompanhar-me na deambulação sobre as vantagens e a desvantagens deste ataque sobre a mais importante cidade portuária da Ucrânia.

 

O que é que Putin e a Rússia ganham com o ataque ao porto de embarque? Nada, rigorosamente nada e perdem tudo, absolutamente tudo, depois de terem tido uma vitória diplomática retumbante na Turquia. Será que o todo poderoso senhor da Rússia tem uma pistola especial para dar tiros nos pés, nas pernas, na cabeça, fazendo demonstrações públicas de uma perfeita e completa estupidez? Não acredito! Não acredito eu, nem deve acreditar ninguém que perceba alguma coisa de estratégia e de como se fazem acordos, propaganda e contrapropaganda. Claro que, às vezes, e por razões estratégicas, convém fazer de conta que se acredita, mas é só um jogo de faz de conta para manter aparências e, de propósito, transcrevo do sítio do Sapo, o que lá se dizia, ontem, dia 23, pelas 19 horas: «Guterres condenou "inequivocamente" o ataque e enfatizou que "a implementação completa de [do acordo] pela Federação Russa, Ucrânia e Turquia é imperativa" ‒ note-se a subtileza, ele não condena ninguém, condena o ataque!

Então, surge a pergunta: «Quem mais é que tira vantagem do bombardeamento de Odessa, que, não sendo feito pelos russos, foi feito por alguém?» A resposta, por muito estranha que possa parecer, é uma só: a Ucrânia! A Ucrânia, até por ser a mais improvável potência sobre quem recaiam as acusações. Vamos ver.

O que é que interessa, realmente a Kiev e ao Presidente Zelensky: vender os cereais ou manter uma guerra da qual ele possa ser o herói que leva à derrota ou, pelo menos às cordas (numa linguagem própria do box), a grande Rússia?

Meus caros leitores, não tenham a menor dúvida, entre cereais e armamento, ele prefere as armas. Está-se nas tintas para a fome no mundo! Ele e todos os ucranianos que não são afectados pela guerra ‒ basta ver a normalidade da vida nas cidades do Oeste ucraniano (como tudo isto me faz lembrar a velha urbe de Lourenço Marques, no tempo em que se lutava e morria no Norte de Moçambique!... é que a distância entre Mueda e Maputo é, em linha recta, 7 750 Km) ‒, pois o importante é, se possível, a reconquista dos territórios já ocupados pela Rússia. Zelensky quer armas e quer guerra, porque sabe que a paz se vai fazer à custa da perda de uma parte do território ucraniano.

Mas, nisto do acordo para a saída dos cereais também houve outro Estado e outra política e outra estratégia que saiu a perder: os Estados Unidos. Washington e o Pentágono querem vergar o poder militar da Rússia e levar a União Europeia a reconhecer a sua própria inutilidade como potência produtiva (para tal há que a dividir, que a separar, que gerar a hostilidade entre os Estados membros).

Repare-se que na Europa, nem um único Estado, se associou aos esforços das Nações Unidas para se chegar ao acordo sobre a saída dos cereais. A Europa, subserviente, alinhou com os EUA e com o cântico americano. Bruxelas reforças as sanções ditadas pelos EUA.

 

Se olharmos o acordo dos cereais e o bombardeamento de Odessa segundo os ângulos que acabo de expor ‒ e sou um mero espectador deste jogo de xadrez que nada ganha e nada perde ‒ se calhar compreendemos melhor as meias palavras que o major-general Carlos Branco, ontem à noite, deixou suspensas na CNN Portugal com o pedido de se fazer uma averiguação séria sobre as recentes ocorrências. Tudo o que ele disse já me tinha passado pela cabeça. Por que terá sido?

Em tempo: Acabei de ler uma notícia do Jornal i, veículada pelo sítio Sapo.pt, datada de dia 24 de Julho, às 12h19, que transcrevo: «"Os mísseis Kalibr destruíram a infraestrutura militar no porto de Odessa, com um ataque de alta precisão", escreveu Maria Zakharova na rede social Telegram.» Sendo que esta senhora é a porta-voz da diplomacia russa (estou a reproduzir as palavras da notícia).

Esta informação em nada nos garante veracidade. Há dias recebi, enviado por um bom e confiável amigo meu, por e-mail, um texto intitulado "As Burras" assinado pelo, também meu amigo, Carlos Matos Gomes, coronel reformado do Exército e escritor - assina Carlos Vale Ferraz -, a quem, de imediato telefonei, por ter estranhado algumas afirmações feitas. Do lado de lá, o meu camarada garantiu-me que nunca escreveu tal texto, o qual anda a circular na Internet há dois anos. Notícias falsas. Pergunto: «Desde quando uma afirmação feita numa rede social pode ser tomada como uma realidade oficial?

21.07.22

As demissões e os mísseis


Luís Alves de Fraga

 

Há dias abordei aqui as demissões de dois altos funcionários ucranianos, por decisão do Presidente Zelensky e aventei hipóteses sobre essa atitude. Os dias passaram e eis que hoje, na newsletter que quotidianamente recebo do jornal Expresso, lá está escarrapachada a opinião do major-general Agostinho Costa ‒ militar que procura pensar fora da caixa, ou melhor dizendo, como estrategista neutro e independente, não alinhando com propagandas ‒ que diz taxativamente o seguinte:

«Estas demissões e afastamentos no SBU são o epílogo do que parece ser o resultado de uma falha de segurança relacionada com um ataque que destruiu uma messe ‒ ou clube de oficiais ‒ em Vinnytsia [centro da Ucrânia] na passada quinta-feira» e continua o jornal: “o general, baseado nas informações recolhidas, refere-se a uma "reunião de alto nível" onde deveriam ser tomadas decisões importantes, na presença de delegações internacionais, dizendo de seguida: «Dois mísseis Kalibr russos estavam apontados para um alvo em Zhytomyr (noroeste), mas terá havido uma fuga de informação e foram desviados para atingir esta reunião, liquidando todos os participantes. Este ataque em Vinnytsia terá eliminado não apenas os participantes ucranianos, altos quadros da Força Aérea, como também as delegações estrangeiras», afirmou o militar português.

A partir da fuga de informações, diz Agostinho Costa, «também permitiram que fossem divulgadas imagens de oficiais superiores do comando da Força Aérea na lista dos mortos. "Eram imagens de coronéis, oficiais da Força Aérea que estavam no local, mas não há indicações sobre quais as delegações estrangeiras presentes». Na sequência, afirma a notícia que “Na reunião de Vinnytsia, cidade situada a oeste da capital Kiev, próxima das fronteiras com a Moldávia e Roménia, estaria alegadamente em análise «um acordo de fornecimento de aeronaves de combate à Ucrânia», repetindo as palavras do general.

 

Esta não terá sido a primeira vez que os russos, de acordo com informações recebidas, atacaram unidades militares onde se estavam a desenrolar conversações entre delegações ucranianas e entidades estrangeiras sobre cedências de material. O Expresso cita o caso de «um ataque à base de Yavoriv [em 13 de março] perto de Lviv, que estava repleta de estrangeiros. Os ucranianos falaram em 30 mortos, e os russos cerca de 200», segundo disse o major-general Agostinho Costa. «Na sequência deste ataque, o então chefe local do SBU também foi afastado».

O Expresso avança que «o Presidente ucraniano revelou ainda que mais de 60 oficiais do SBU estão a trabalhar "contra a Ucrânia" nos territórios controlados pelos separatistas russófonos e pelas tropas russas, e anunciou "651 processos por traição e colaboracionismo”».

 

Claro que aquilo que o oficial português revelou tem proveniência russa, facto que parece irritar certos meios nacionais, mas, contudo, a verdade possível só se pode estabelecer se se tomar em consideração aquilo que ambos os lados fazem circular nos meios de comunicação. Sempre foi assim, em todas as guerras, quando nelas o país não toma parte activa ao lado de um dos contendores. Basta consultar os jornais portugueses do tempo da 2.ª Guerra Mundial, quando éramos neutrais, ainda que sob um regime ditatorial e simpatizante do nazismo, e vemos notícias provenientes de Londres, ou de Washington e de Berlim. E mal ia se que assim não fosse, pois logo a embaixada do país que se considerava prejudicado, reclamava junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Ora, a verdade é que Portugal, como membro da OTAN, é, de jure, neutral, embora, de facto, seja beligerante neste conflito. Mas, se queremos respeitar as normas do Direito Internacional, tão apregoadas aquando da invasão levada a cabo pela Rússia, temos de dar oportunidade a que sejam ouvidos ambos os lados em litígio.

 

O que o major-general Agostinho Costa veio fazer foi restabelecer esse princípio de equilíbrio de um Estado que, de jure, não está em guerra com a Rússia, ajudando-nos a perceber a relação entre os ataques com mísseis e as demissões de altos funcionários ucranianos.

Deste modo, fica mais claro, para quem quiser compreender, que esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia não é totalmente transparente no que toca a fidelidades, nacionalismos e traições, pois, até há bem poucos anos ‒ o que são três décadas na história de um povo, depois de séculos de boa convivência com um vizinho que, culturalmente, está muito próximo em língua e hábitos de vida? ‒ todos se confundiam na lealdade e patriotismo, ainda que por causa de uma ideologia que os identificava. Recordo que, se para Napoleão Bonaparte qualquer guerra na Europa era uma guerra civil, mais razão de ser é civil a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, pois, culturalmente, o que as separa é muito menos do que aquilo que as iguala.

Temos de ser capazes de abandonar ideias feitas e adquirirmos o hábito de pensar pela nossa cabeça com a independência possível quando não conhecemos todos os condicionalismos que ditam as situações conflituais.

20.07.22

Quando a língua foge para a verdade


Luís Alves de Fraga

 

Na continuação da guerra russo-ucraniana, vale a pena voltar atrás nas leituras por mim feitas há alguns anos para me centrar naquilo que se teorizou, se aconselhou ou se preconizou sobre a cena internacional futura, afim de tentar descortinar se os caminhos seguidos ou os, então, apontados estão em consonância com a actualidade.

Não me interessam autores de segunda ordem, porque esses, usualmente, encontram-se reféns de teses ou doutrinas políticas que lhes toldam a compreensão tanto do passado como do presente. Assim, agarrei o mais que célebre Henry Kissinger (A Ordem Mundial, escrita, no original, em 2014 e traduzida, em português, em 2015) e, lá para o fim, topei com um parágrafo que não resisto a transcrever, em especial, pelo que o autor deixa dito nas entrelinhas:

«Para os Estados Unidos, a demanda da ordem mundial funciona em dois níveis: a proclamação de princípios universais terá de ir a par com o reconhecimento das realidades históricas e culturais de outras regiões. Mesmo após análise da lição de muitas décadas difíceis, deve insistir-se na afirmação da natureza excepcional da América. A história não oferece trégua aos países que põem de lado os seus objectivos, ou o seu sentido de identidade em benefício de cursos menos pedregosos. A América tem de manter a sua noção de rumo como charneira decisiva das aspirações humanas de liberdade e como força geopolítica indispensável à afirmação de valores humanistas.»

 

Caros leitores, não ponham em dúvida o que acabaram de ler, porque eu tenho a certeza de ter feito a transcrição fiel do texto traduzido para a língua portuguesa e tomei a liberdade de destacar a negrito aquilo que me impõe a pergunta seguinte:

‒ Quem foi que invadiu a Ucrânia: a Rússia ou os Estado Unidos?

Não, não estou nem tonto nem pateta! É que, segundo a leitura subliminar das palavras de Kissinger, a Rússia é um actor secundário neste teatro que leva à cena a invasão da Ucrânia e a morte de militares deste país, da Rússia e civis inocentes.

Vejam bem a carga de imperialismo que estão subjacentes às afirmações: “natureza excepcional da América”, “A história não oferece trégua aos países que põem de lado os seus objectivos, ou o seu sentido de identidade em benefício de cursos menos pedregosos” e “A América tem de manter a sua noção de rumo como charneira decisiva das aspirações humanas de liberdade e como força geopolítica indispensável à afirmação de valores humanistas”. Isto ronda o discurso de qualquer senador ou qualquer imperador romano, para não comparar com os discursos sobre a superioridade da Alemanha de Hitler.

O mundo não era mundo se a América não fosse a charneira da humanidade!

Isto é brutal! É brutal, mas passa despercebido quando, no mundo não há desordens de maior, como foi o caso no tempo da escrita da obra que venho citando. Todavia, neste momento, quando vivemos uma guerra na Europa, no centro da verdadeira cultura ocidental, a brutalidade da última afirmação ressalta com toda a força para se nos impor como algo inadmissível, porque, se houver charneira das aspirações da humanidade ela não está nos EUA, mas sim, sem dúvida, na Europa, uma Europa mesmo que cheia de erros e de contradições.

Aquilo que os Estados Unidos querem arvorar como seu, pertence de pleno direito à Europa, uma Europa que vai do Atlântico aos Urais, uma Europa que deu para os EUA os colonos que criaram aquele recente Estado, tão recente que não tem moral para dar lições nem à Europa nem ao mundo.

 

Kissinger, arroga, para os EUA, um poder superior ao de todos os Estados, embora, entre, como soe dizer-se, com pezinhos de veludo, já que atribui aos EU uma finalidade quase salvífica em relação ao planeta Terra: “Para os Estados Unidos, a demanda da ordem mundial funciona em dois níveis: a proclamação de princípios universais terá de ir a par com o reconhecimento das realidades históricas e culturais de outras regiões”, ou seja, o Império concede reconhecer as realidades históricas das restantes unidades políticas do mundo, a par do reconhecimento das realidades culturais de outras regiões.

Ora isto não é um absoluto descaramento? Descaramento que nem foi, nem está a ser, nem será nunca, verdade! Pois, se há coisa que a política imperial dos EUA não reconhece é a História dos outros povos nem o respeito pelas culturas diferentes daquilo que os donos do poder em Washington entendem serem a cultura ocidental, que, como já tive oportunidade de mostrar, é bem diferente daquela que é a cultura ocidental europeia.

 

Em conclusão, toda a estratégia nacional dos EU é uma estratégia imperial ou imperialista, porque não se limita a defender os interesses e os objectivos que dão segurança e bem-estar ao seu povo, mas busca a subordinação dos outros povos ‒ numa clara agressão ao Direito Internacional e à soberania dos outros Estados ‒ aos interesses e objectivos daquilo que os donos do poder, nos EUA, entendem ser os objectivos nacionais e globais de Washington. No fundo, os restantes Estados ou são colónias ou protectorados americanos ou inimigos da ordem mundial por eles estabelecida.

 

E isto é tão certo que há poucos minutos chegou ao meu computador a notícia dada pelo jornal espanhol El País, que resume a situação da seguinte forma: «O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, ameaça que os territórios que Moscovo aspira controlar "se moverão ainda mais" se o Ocidente entregar mísseis de longo alcance a Kiev.»

Quem é que está a agredir quem? Quem é que está a impor uma ordem nova a quem?

 

E esta noção de sermos uma colónia dos EUA está tão entranhada em todos nós que, ontem, numa estação de televisão, um general (na reserva) do Exército português, falando da Ucrânia e das movimentações militares que se estão a operar no terreno disse, para logo de seguida emendar, qualquer coisa como: “Estamos a tomar posições… Quer dizer, os ucranianos estão a tomar posições…”.

Elucidativo, não é?

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