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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.06.22

Antes de conversar há que vergar


Luís Alves de Fraga

 

Quem se lembra do que foi a batalha de Dien Bien Phu, em 1954? Creio que a maior parte dos meus leitores só saberá do que estou a falar por ter ouvido ou lido alguma coisa sobre o assunto e, naturalmente, nem saberá que dessa batalha resultou a Conferência de Genebra, da qual resutou a capitulação, sem condições, da França perante a força dos comunistas indochineses.

Julgo poder jurar que a quase totalidade dos que lêem este texto, desconhece que a total derrota dos franceses ‒ e combateram tropas de elite dispostas a morrer pela França ‒ passou por um aumento da campanha levada a cabo por Vo Nguyen Giap que, comandando as forças rebeldes, dirigia também as conversações na Suíça. E este homenzinho sabia o mais importante de tudo: quando se dirige uma campanha militar, que se pretende concluir com um cessar-fogo, aqueles que se sentam à mesa das negociações, estando em inferioridade militar na campanha, têm de ceder a todas as exigências do inimigo. Foi isso que determinou a saída dos franceses da Indochina, mas foi isso que levou às independências imediatas das colónias portuguesas de África (não devemos esquecer que, em Lisboa, após o 25 de Abril de 1974, se gritava o slogan nem mais um soldado para a guerra), tal como foi isso que levou os alemães a solicitarem um armistício, em Novembro de 1918, por estarem com o ímpeto militar quebrado, levando a sua importância na Europa a quase nada. O mesmo aconteceu ao Japão, em 1945, depois dos lançamentos das duas bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e de Nagasaki. Em suma, quando se quer negociar há que ter superioridade militar sobre o inimigo, há que vergá-lo.

 

As televisões nacionais e internacionais, nos últimos dias, têm feito grandes reportagens à volta do bombardeamento, com um míssil, de um centro comercial na Ucrânia. Temos de juntar as pontas para perceber estes novos acontecimentos. Vamos a isso?

Não há dúvida que a campanha no Donbass está praticamente concluída pelos russos e que, dificilmente, as tropas ucranianas conseguirão reconquistar a região; era preciso uma total reviravolta no armento pesado e na aviação para desalojar os russos. Moscovo, penso, não quer prolongar a campanha na Ucrânia, mas deseja vergar o inimigo até levar o governo de Kiev à mesa das conversações para aceitar o que lhe for imposto pelo Kremlin. Todavia, parece, Zelenski não está disposto a reconhecer a derrota, até porque, um pouco inocentemente, julga que os EUA, a OTAN e o G7, em concordância com as afirmações feitas nestes últimos dias, lhe vão dar tudo aquilo de que precisa para continuar a sacrificar, sem dó nem piedade, o seu povo e os seus soldados. Por outro lado, Moscovo, face à esperança de Kiev, e na dúvida sobre o futuro apoio da OTAN e dos EUA, marca a sua força através de bombardeamentos selectivos sobre alvos supostamente militares ‒ poderão ou não corresponder à verdade, sendo que alguns efeitos colaterais venham por mero arrasto, ‒ um pouco por todo o território ucraniano, para que fique cada vez mais evidente a sua capacidade de destruição, se o presidente e o governo da Ucrânia se recusarem a sentar à mesa das conversações.

Esta é uma das explicações para estes ataques inesperados partindo da Rússia ou da Bielorrússia.

 

Claro que temos de entrar com uma outra variável: a vontade dos EUA quererem aceitar ou não a realização de uma paz entre a Rússia e a Ucrânia, pois, parece, que importante para Washington, Casa Branca e Pentágono é vergar a Rússia até ao ponto de ela perder qualquer tipo de valor militar na Europa e no mundo. Se assim for, Biden encontrou em Zelenski o louco que era preciso para o sacrifício de um povo em nome de um valor que deixou, há muito, de ser o seu para ser, exclusivamente, o dos americanos.

Daqui ressalta uma outra variável: será que a UE e os países europeus que integram a OTAN estão dispostos a pagar uma factura económica de valor tão alto que vai colocar os nacionais europeus contra os seus governantes? Não alvitramos uma resposta pois, não estando em nenhum centro de decisão, não conseguimos vislumbrar mais longe do que a hipótese colocada.

29.06.22

A OTAN durante a URSS e depois


Luís Alves de Fraga

 

Creio que já aqui falei da criação da OTAN, em 1948, e das suas finalidades, todavia, volto com brevidade ao assunto para lhe dar continuação nos anos posteriores e, em especial, depois da implosão da URSS.

 

No ano da fundação vivia-se ainda o final da 2.ª Guerra Mundial e o receio de um ataque da URSS não era de todo infundado, porque Moscovo havia garantido, em Ialta, que os Estados independentes e soberanos que ficavam na sua esfera de influência manteriam regimes democráticos e livres de influências estranhas. Ora, o que aconteceu entre 1944 e 1948 foi algo diferente: o Kremlin estendeu a sua asa protectora a esses países e, de forma clara ou ínvia, transformou-os em democracias socialistas, o mesmo é dizer, em regimes de repressão política consonante com o da URSS.

Exactamente o mesmo processo atingiu a dividida Alemanha nazi, que se tornou independente, a Leste, formando um novo Estado: a República Democrática da Alemanha.

Tratava-se de uma cunha enfiada na Alemanha Federal que poderia ser a ponta-de-lança para uma invasão da Europa Ocidental, no todo ou na parte. Este receio agravou-se quando, em Junho de 1948, a URSS decretou o bloqueio da cidade de Berlim (que estava incluída na Alemanha Democrática) de modo a levar as outras potências ocupantes ‒ EUA, Reino Unido e França ‒ a retirarem-se, cedendo a antiga capital da Alemanha ao novo Estado, o mesmo é dizer, à influência soviética. Esta crise foi traumatizante para os Aliados e fez temer, no Ocidente, pelas intenções soviéticas. Contudo, se quisermos ser perfeccionistas e olhar com muita atenção para a sequência dos factos veremos que a OTAN foi, realmente, criada em 17 de Março de 1948, pelo Tratado de Bruxelas, e o Bloqueio de Berlim começou no dia 24 de Junho do mesmo ano. Ou seja, o bloqueio é uma resposta estratégica à criação da Aliança.

Não pretendo dizer que as intenções da URSS não fossem aquelas que vulgarmente se lhe atribui, mas a realidade cronológica mostra bem que, enquanto a ameaça soviética não passava disso mesmo ‒ medo do que Moscovo pudesse fazer ‒, a ameaça Aliada transformou-se em força militar concreta. Estamos perante um jogo estratégico do mais puro calibre: os Aliados mexeram a rainha no tabuleiro do xadrez internacional e a URSS moveu o cavalo para gerar um xeque que não era mate, mas foi de difícil resposta (a ponte aérea para alimentar os berlinenses durou onze meses).

Curiosamente, como já disse noutra altura, a criação do Pacto de Varsóvia resultou da integração da Alemanha Federal na OTAN. Como se vê, mais uma vez, a aliança entre Estados soviéticos foi uma resposta estratégica a uma jogada dos Aliados e não o contrário.

A única iniciativa de Moscovo a que os EUA tiveram de dar resposta, porque representava uma verdadeira ameaça à integridade do seu território, foi a chamada crise dos mísseis de Cuba; de resto, o equilíbrio foi sempre mantido com movimentos estratégicos mais ou menos duros por parte do Kremlin.

Mas é preciso considerar que todos os momentos de tensão decorreram do enfrentamento directo dos dois blocos no âmbito do Atlântico Norte, porque houve os conflitos periféricos, fora desta zona, nos quais, umas vezes os americanos e outras os soviéticos, se envolveram directamente e outras indirectamente.

 

Quando em 26 de Dezembro de 1991, foi dada por finda a existência da URSS, os diferentes Estados que a compunham ‒ alguns já se haviam antecipado ‒ sentiram-se livres para iniciar o caminho para a tão desejada como fantasiada economia de mercado a par de uma democracia liberal da qual não tinham a mínima experiência.

O desmantelamento do aparelho produtivo soviético deu origem a que os antigos elementos do PCUS ou dos partidos comunistas dos Estados satélites que dirigiam superiormente grandes complexos industriais ou de distribuição de stokes se apropriassem dos mesmos e formassem verdadeiros impérios pessoais, passando rapidamente de socialistas convictos a capitalistas ambiciosos; atrás deles vieram outros empreendedores ‒ os oligarcas ‒ que, de formas lícitas de misturas com as ilícitas, arranjaram fortunas fabulosas, vindo a poder colocar-se perante os políticos ‒ oportunistas ou não ‒ em posições de força por recurso à corrupção. Pode dizer-se que, da queda da URSS, nasceu uma nova forma de capitalismo e uma nova forma de gerir o poder político tão ou mais corrupta do que todas as que a história do Ocidente nos conta. Este quadro traçado a largas e grossas linhas, creio, aplica-se a todos os Estados ditos socialistas antes de 1991.

 

A par desta imensa confusão, em abono da mais elementar verdade, houve Estados cuja população receou a possibilidade de se gerar no Kremlin uma nova onda que levasse a Rússia a procurar, para sua própria defesa, por um lado, e, por outro, por força da sua geopolítica, enquanto território continental e potência terrestre, a reocupação desses países. É que, como consequência da geografia russa, a defesa eficaz das suas fronteiras passa ‒ do mesmo modo que acontece com todos os Estados, mas mais em evidência, porque maior, com os EUA ‒ pela existência de territórios ou bases avançadas que coloquem o potencial inimigo cada vez mais longe da linha demarcadora do espaço nacional. Trata-se de um princípio tão velho como a guerra entre povos distintos: entre a minha casa e o meu inimigo devem estar várias casas de vizinhos meus amigos, que sofrem primeiro o embate da invasão, de forma a que, no meu lar, não haja que erguer trincheiras para me defender, fazendo que a vida decorra na maior tranquilidade possível. É estratégia pura!

Pois bem, nos sete anos que se seguiram ao desfazer da URSS, por conveniência dos Estados e, em simultâneo, por conveniência da OTAN, esta aliança captou para o seu círculo uma série de países que haviam sido satélites da já morta e enterrada União Soviética. Este movimento colocou as forças da Aliança muito mais próximas das fronteiras russas, facto que vulnerabilizou aquele Estado e deu supremacia ao Ocidente.

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Ou seja, nunca se procurou captar por completo para a área do liberalismo ocidental a nova Rússia, porque prevaleceu sempre a desconfiança geopolítica sobre a potência terrestre e os seus intentos geoestratégicos de alcançar o domínio dos mares. Foi um erro crasso, na minha opinião. Continuou-se a ver a Rússia como uma potência incapaz de ser amiga e, não o sendo, é uma potencial inimiga.

Mas só vendo a Rússia como fonte de conflito é que se podia manter a OTAN, dado que o Pacto de Varsóvia, enquanto aliança defensiva, havia-se desfeito em espuma. Assim, a velha Aliança Atlântica passou a ser um verdadeiro instrumento militar da política externa e global dos EUA e, ao mesmo tempo, o grande chapéu-de-chuva que cobria a segurança da Europa, em especial da UE, evitando-lhe gastos de maior com a segurança e a defesa.

A verdade é que esta posição dos Estados europeus interessava aos EUA, tal como nos disse, em 2005, Robert J. Lieber, na obra A Era Americana, ao afirmar taxativamente aquilo que veio a tornar-se uma realidade nos anos que se seguiram: «(…), quer a primazia quer o envolvimento activo dos EUA são essenciais se quisermos cooperar com terceiros nos próximos anos para construir uma ordem global mais estável, menos perigosa e mais benigna (…) a América não pode esperar pelo consentimento dos outros quando é necessário agir para defender a nossa segurança nacional» (p. 19).

Traduzindo este pensamento, temos que a América pode e deve tornar-se num elemento perturbador da ordem internacional quando, assim procedendo, estiver a defender os seus interesses nacionais.

Esta atitude remete-nos para dois sentidos: um, para o alargamento da OTAN como trampolim dos interesses nacionais americanos; outro, para a actual guerra russo-ucraniana como forma de, confrontando a Rússia através da Ucrânia, consolidar os seus interesses nacionais. E o resultado está à vista: usando de uma estratégia indirecta, põe em risco imediato os aliados europeus da OTAN, porque considera mais importantes os objectivos americanos do que os naturais receios da Rússia. Tudo isto em nome da ordem global ditada pelo Pentágono e pela Casa Branca.

28.06.22

A OTAN em Madrid


Luís Alves de Fraga

 

Madrid vai ser a cidade onde se encontrarão e confrontarão os membros dos governos dos países que fazem parte da OTAN. O confronto vai ocorrer entre, pelo menos, a Turquia e o secretariado-geral por causa da entrada na Aliança da Suécia e da Finlândia. E o papel da Turquia encontra várias justificações para ser o que é. Vejamo-las com um pouco mais de pormenor.

 

O governo de Ancara tem uma razão de peso para desconfiar do Ocidente, em especial da Europa ou, melhor dizendo, da União Europeia (UE): a recusa, já com várias décadas, na admissão no clube europeu. Claro que as justificações de Bruxelas foram sempre válidas ‒ nem ponho em dúvida, por um segundo que seja, esse facto, agravado agora com a pseudo democracia existente no país ‒, mas isso não invalida que exista por parte dos turcos (dos mais ocidentalizados, claro está!) um sentimento de frustração, de desgosto e de quase raiva (será que Erdogan teria chegado onde chegou se o país estivesse já integrado na UE? Esta é uma das grandes interrogações que subsistem nos dias de hoje).

Como é evidente, a OTAN não é a UE, mas, é certo, um grande número de países da UE faz parte da OTAN, o mesmo é dizer que, de um modo ínvio, os EUA têm um pé dentro da União Europeia. O conceito estratégico da Aliança condiciona a estratégia de defesa, que terá de ser definida pela UE.

Ora, face a estes condicionalismos, é natural que a Turquia, no seu próprio interesse, e porque já foi uma das pontas-de-lança mais importantes da OTAN contra a, então, URSS não queira perder estatuto junto da Aliança (mantendo, contudo, hoje, um diálogo com Rússia, que não é a URSS dos anos de 1960 e seguintes e que Ancara sabe separar convenientemente ao contrário de algumas outras capitais do mundo). A Turquia perderá estatuto na OTAN quando a Finlândia e a Suécia forem membros de pleno direito da Aliança. Perde, pois a manobra estratégica de envolvimento da Rússia deixa de passar, em primeiro lugar pelo seu território, a Sul, para se deslocar para Norte, em especial para o Mar Báltico. Ancara, como é natural neste tipo de jogo, inventa ou gera condições que impeçam a adesão dos Estados do Norte à OTAN; condições que são disfarces dos seus objectivos principais. E, muito mal andará o secretário-geral da Aliança, bem como todos os membros da mesma se fizer ouvidos de mercador às razões (verdadeiras e estratégicas) da Turquia, pois pode levar esta a, conduzida pelo poder autocrático de Erdogan, subverter a ordem mediterrânica da OTAN, saindo da Aliança e juntando-se à Rússia, dando-lhe livre passagem da sua força naval do Mar Negro para o Mediterrâneo.

 

Em Madrid, para além deste quadro, que, por enquanto, não passa de uma hipótese colocada por mim, terão de ser analisados (julgo eu) os efeitos adversos que a guerra está a produzir na economia do mundo Ocidental, uma vez que não vai ser pela via sancionatória que se vergará a Rússia, verificando-se o efeito bumerangue que já nos afecta a todos e que, dentro de pouco tempo, começará a minar a vontade de combater a política de Putin através do apoio financeiro e militar que se está a dar à Ucrânia (cada vez mais exigente e imperativa nos areópagos onde dão a palavra ao seu presidente). Aliás, estando atento às notícias que passam nas nossas televisões, tive oportunidade ouvir da boca de ucranianos, que, ao lamuriarem-se da guerra, mostram o desejo de que se alcance a paz. Ou seja, as próprias vítimas, os mais afectado pelos acontecimentos, querem acabar com o conflito para retomarem a vida dentro das possibilidades mais próximas daquilo que era a sua normalidade.

Podemos interrogar-nos sobre esta atitude de gente simples das pequenas cidades ucranianas, de gente que vive do seu trabalho e, para mim, a resposta surge quase transparente, se olhada à luz de uma certa faceta sociológica. Vejamos.

A Ucrânia foi elevada à categoria de Estado independente no ano de 1991, o mesmo é dizer há trinta e um anos. Não é em três décadas que se altera, para os mais velhos, o sentido de pátria, pois eles nasceram russos e tiveram de aceitar uma mudança para a qual em pouco ou nada contribuíram, daí esse sentimento de acabem com a guerra, pois, se tivessem oportunidade de continuar a falar e fossem capazes de o fazer, diriam porque não faz sentido lutar contra aqueles que ontem eram nossos compatriotas. E não se argumente, por favor, com o facto de existir o sentimento de identidade no povo ucraniano em oposição ao povo russo, pois no território da Rússia actual coabitam várias etnias, vários idiomas e várias religiões. Assim, as negociações para uma paz imediata têm de ser impostas a uns quantos tiranos que na Ucrânia falam ou julgam ou querem falar em nome de um povo que está destroçado e morto por um conflito que, em boa verdade, nada lhe diz.

A paz é imperativa, mesmo que à custa de perdas territoriais para bem do equilíbrio regional no Leste da Europa e para a tranquilidade do mundo Ocidental, que inclui os povos famintos de África.

Se, em Madrid, as decisões da OTAN forem no sentido das que se afirma terem sido as da reunião do G7, muito provavelmente iremos ter um Inverno bastante frio, não só por descontentamento, mas, também, por causa de uma inflação a que no Ocidente já não estávamos habituados há muitos anos.

27.06.22

Uma estratégia de Putin


Luís Alves de Fraga

 

Há exercícios que devem ser feitos para poder compreender o que pensa ou como pode pensar o adversário. Claro que nem toda a gente está capaz de entender esta manobra, que foi usada com muita frequência pelo estado-maior alemão, tanto na primeira como na segunda guerra mundial (a biografia do comandante inimigo, bem como o seu modo de actuar em campanha eram estudados até ao último pormenor de modo a poder prever a sua reacção face a qualquer movimentação futura), pois se fundamenta num mero jogo de probabilidades.

 

Hoje, sem a profundidade do que se faz num estado-maior militar, vou deixar-vos uma mera hipótese, que me assaltou, para tentar perceber o conflito que ocorre entre a Rússia e a Ucrânia. Vou tentar perceber a estratégia de Putin, colocando-me, tanto quanto me é possível, na cabeça de um antigo agente da KGB, de um primeiro-ministro de uma Rússia em desordem por causa da implosão da URSS e, finalmente, de um presidente da Federação Russa reduzida a uma entidade política sem grande peso nas decisões globais, as quais estão completamente dominadas pelos EUA, vislumbrando-se lá longe um rival, que nasce cheio de pujança: a China.

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Perante a descarada tentativa da Ucrânia se juntar à OTAN, olhando o mapa, Putin vê o imenso cerco que, a Ocidente, está a ser feito à Rússia, se se olhar o mundo partindo de uma visão eurocêntrica, porque, se o olhar, pensando que a Terra não é plana, vê que o cerco está fechado no Oriente, pelo Estado do Alasca, pelo Canadá e Gronelândia. Não pintado a azul só lhe fica, na Eurásia, o Médio Oriente com todas as suas problemáticas e o Oriente muçulmanizado, a Índia e a China. Aquilo que poderia fazer da Rússia um Estado ainda ocidental, não subjugado pela OTAN, era a manutenção de um bom entendimento com a Bielorrússia e a Ucrânia. Ora, se este último país se bandear para o lado da Aliança, a Rússia fica, cada vez, mais vulnerável ao cerco de um Ocidente sujeito ao chapéu-de-chuva americano e isso corresponde a uma ameaça, porque a unipolaridade dos EUA é, ainda, uma realidade, enquanto a China não se afirmar uma concorrente comercial e militar de Washington. Quando tal momento chegar, Pequim vai construir o seu próprio tabuleiro de influência e apoios militares no Oriente, deixando a Rússia encravada entre uma OTAN americanizada e um Extremo Oriente achinesado.

A consequência de um tal movimento resultará num cerco ao maior país do mundo, cujas saídas para o Atlântico, bem como para o Mediterrâneo, são muito limitadas já que para o Pacífico ficarão limitadas pela China, facto que tornará a Rússia refém dos EUA (via OTAN) e da China (via alianças a estabelecer).

Face a um cenário desta natureza o que Putin podia fazer para evitar a entrada da Ucrânia na Aliança, gerando uma redução do espaço estratégico da Rússia perante a eventualidade de um ataque pelo flanco Sul? Resposta imediata: neutralizar essa ameaça usando de meios dissuasivos (que não resultaram) e passar à ofensiva antes que o Art.º 5.º da OTAN se tornasse uma realidade naquele Estado. Foi o que fez. Mas qual o objectivo desse ataque? Como se vê, agora, ocupar a parte Leste onde os russófonos são em maior número e ocupar uma parte significativa da costa do Mar Negro para ganhar maior liberdade de acção naval naquele mar interior, estendendo, deste modo, a sua esfera de defesa fronteiriça um pouco mais longe e em maior extensão (algo que é a estratégia dos EUA quando procuram espalhar bases muito longe da sua fronteira marítima).

 

Depois desta análise com base num raciocínio hipotético, deixo o mapa para se poder ver e perceber que a invasão da Ucrânia foi o resultado de uma necessidade de defesa e não um ataque expansivo… Quem estava (e está) a procurar expandir-se era a OTAN, que se vê agora ampliada com a adesão da Finlândia e da Suécia (que representa, afinal, um aperto do cerco à Rússia pelo Norte, gerando como que uma compensação: se a Rússia amplia a defesa a Sul, a OTAN reduz a distância a Norte).

 

Será que fui suficientemente claro para os meus leitores compreenderem que, afinal, a estratégia é uma forma de resposta dialéctica, tal como se estivéssemos frente a um tabuleiro de xadrez?

26.06.22

A porta dos fundos


Luís Alves de Fraga

 

As sanções económicas aplicadas à Rússia por causa da invasão da Ucrânia não têm os mesmos efeitos do que as que os EUA estabeleceram sobre, por exemplo, a Venezuela ou, muito antes, Cuba. Os Estados fracos e com pouca capacidade de manobra e de fuga para a frente têm de suportar a miséria que lhes é imposta em nome da sacrossanta democracia americana. O mesmo não acontece com a Rússia, porque sendo um grande produtor de petróleo e de gás, pode dar-se ao luxo de os vender, a preços altamente concorrenciais, a outros mercados que não os do Ocidente. Esta medida desequilibra, quase por completo, a acção sancionatória, pois estabelece novos mercados onde a concorrência sobre o Ocidente pode, a curto prazo, revelar-se prejudicial para as populações habituadas ao conforto e bem-estar que vinham beneficiando como consequência da paz na Europa. É o que, entre nós se chama, sair o tiro pela culatra.

 

Ora, segundo penso, a manobra de propaganda desencadeada pela Ucrânia, logo após o início da invasão, requerendo sanções contra a Rússia, terá sido orquestrada a partir de Washington e levou parte dos países da UE a aceitá-las face à desgraça de um Estado soberano agredido por uma potência muito maior e mais poderosa. Bruxelas caiu na armadilha, dada a semelhança que, de imediato, se estabeleceu entre Putin e Hitler, trazendo às capitais europeias a lembrança histórica da 2.ª Guerra Mundial. Reforçou-se esta parecença com auxílio de uma outra: a ambição de Pedro, O Grande, czar fundador do império russo. Assim, a conclusão imediata era a de que Putin tinha encarnado as duas figuras históricas e queria expandir a Rússia de hoje até onde lhe fosse possível, na luta contra o Ocidente.

Tudo isto era uma imensa nuvem de propaganda para consumo das massas de modo a encobrir a verdadeira acção de provocação dos EUA contra a Rússia; acção que já vinha sendo desenvolvida, desde 2014, através dos ucranianos, na luta constante sobre as populações russófonas da região do Donbass. Moscovo fez saber junto da capital da Ucrânia que tais procedimentos eram inaceitáveis e muito mais se Kiev continuasse a insistir na adesão à OTAN. A decisão do Kremlin não saiu de uma cartola como o fazem os prestidigitadores, tal como se fosse um truque para enganar todo o mundo. Não. A invasão foi uma reacção a uma acção, que se quer esconder, que se pretende fazer aceitar inventando receios e gerando medos.

 

A entrada da Ucrânia na OTAN representava para Moscovo uma ameaça, porque, estrategicamente, Washington estava a apertar o cerco à Rússia através da possibilidade de, cada vez mais perto da fronteira, poderem ser colocados mísseis de longo alcance capazes de atingir cidades russas até então não alcançáveis se fossem usados os mesmos projécteis, mas partindo de regiões mais distantes. Este é o cerne de todo o conflito. Trata-se da inversão dos actores na já histórica crise dos mísseis de Cuba, a qual Khrushchov e Kennedy souberam gerir exemplarmente e deve notar-se que Fidel Castro não mandou, antes ou depois da crise, que se atacasse a base americana de Guantanamo, instalada em território cubano. Desta vez os cubanos são ucranianos e os soviéticos são americanos e, propositadamente, não quiseram gerir a crise, evitando um estado de guerra.

 

Resta-me, no meio de tudo isto, uma dúvida: os políticos dos Estados europeus ‒ os mais importantes ‒ aperceberam-se da jogada americana ou percebendo-a foram coniventes com os EUA? É que, se a segunda hipótese for a verdadeira, tal conivência corresponde a aceitar a estratégia dos EUA enquanto potência global e, por conseguinte, uma subalternidade que coloca a soberania destes Estados ao dispor de Washington.

Não se julgue que se trata de um delírio meu! Robert J. Lieber (não é um tonto qualquer, mas um professor de ciência política e relações internacionais, na universidade de Georgetown), em 2005, já preconizava, na sua obra A Era Americana (p. 18) que um dos objectivos do seu livro era provar que «(…) num sistema internacional sem uma verdadeira autoridade central e em que os Estados Unidos são a potência dominante, os outros países continuarão a olhar para nós em busca de liderança. Neste sistema anárquico e unipolar, se a América não se envolver em aventuras mais perigosas, é pouco provável que alguém mais tenha capacidade ou vontade para o fazer».

Haverá muito mais a dizer? Esta frase, traduzindo um pensamento estratégico, poderia ser actual e diz tudo e explica tudo sobre a actuação dos EUA no momento presente. Explica também a subordinação dos Estados europeus, em especial os da União Europeia aos ditames dos EUA.

 

Face a esta estratégia, qual poderá ser a da Rússia, que, declaradamente, já só é uma grande potência mundial devido ao seu arsenal nuclear? A resposta é aquela que Moscovo está a dar: definir um novo mundo, usando a porta dos fundos, ou seja, gerar uma barreira que a separe da Europa, cortando com todos os laços que ainda mantinha com a União Europeia, depois da queda do regime soviético, e reforçar-se no Oriente, através de uma ligação económica a alguns dos países emergentes. E nós, os europeus, continuamos alegremente sem capacidade de definir uma estratégia autónoma. Até quando?

23.06.22

Uma guerra de posição ou de guerrilha?


Luís Alves de Fraga

 

Na Ucrânia a guerra continua, embora os russos, parece, estejam a conseguir avançar com algum significado no território que pretendem conquistar. Tudo se passa com uma certa lentidão, para aqueles que julgavam (e nesse número estou incluindo-me) ir durar muito pouco tempo a campanha.

Tentemos perceber essa demora no avanço russo.

 

Primeiro do que tudo, há que explicar a razão pela qual a guerra não adquiriu a sua feição mais tradicional, definida pelo fogo e movimento.

Desconheço em absoluto a táctica do exército ucraniano, mas tudo me faz pensar que o comando optou por estabelecer princípios de defesa posicional, ou seja, deixar avançar o inimigo até à distância do fogo das armas disponíveis, sejam pesadas sejam ligeiras; depois, em consequência do avanço russo, a defesa dever-se-á fazer por sucessivos recuos até se chegar ao nível do combate de rua, de prédio em prédio.

Fundamento a minha opinião no facto de os russos terem optado por executar bombardeamentos massivos antes de fazerem avançar a sua infantaria para ocupar o terreno, pois, se o fizessem, estavam a condenar muitos homens a uma morte inglória e sem resultados práticos. A destruição das primeiras linhas defensivas, seguida da destruição de todas as edificações donde seja possível o ataque isolado, tornou-se uma táctica imperativa para o comando russo. Assim, aquilo que nos impressiona nas emissões de televisão e faz parte de uma campanha de descrédito dos russos, provocando repulsa no Ocidente, resulta, afinal de uma opção do comando ucraniano, já que, se se fortificasse em campo raso e desse batalha, obrigava a um outro tipo de operação por parte do invasor. Vou tentar dizer o mesmo, mas de outra maneira.

 

Um país ‒ quase todos os da Europa Central ‒ quando espera ou prevê a ocorrência de invasão das suas fronteiras escolhe edificar linhas de defesa nas zonas ou regiões onde seja mais fácil ao inimigo progredir; deste modo, tem-se quase sempre a certeza de é ali que se vai efectuar a batalha (por vezes, o inimigo escolhe o caminho mais difícil e imprevisto ‒ caso dos alemães, no planalto das Ardenas, na 2.ª Guerra Mundial, em vez de atacar em direcção à linha Maginot, como os franceses admitiam que iria acontecer).

Na Ucrânia não existia nenhuma linha defensiva, prevendo um ataque russo. Além do mais, o país é constituído por uma grande planície por onde pode livremente avançar o inimigo, escolhendo qualquer itinerário que o leve ao objectivo. Nestas circunstâncias, as cidades mais importantes tornaram-se nos bastiões de defesa, daí que a táctica de ataque corresponda ao que antes descrevi, impondo-se a destruição quase total de todas edificações, enquanto se souber que por lá pode haver resistência. Por outro lado, as populações civis ucranianas, enquanto estão nas cidades atacadas, podem constituir um excelente alibi para impedir o inimigo de as destruir; nestas circunstâncias, o comando russo (podia ser americano, chinês ou francês) tem de ultrapassar este impedimento moral e agir com liberdade e frieza, se pretende chegar ao objectivo. Tudo isto foge aos preceitos da guerra convencional e, por conseguinte, ao que se encontra estatuído nos Tratados da Guerra ou Convenções.

 

Claro que, do ponto de vista ucraniano, os russos deviam expor a sua infantaria e os seus carros de combate para que lhes fosse (aos ucranianos) mais fácil matá-la e destrui-los. É deste modo que o actual conflito tende para uma guerra de posição e de desgaste ao invés de uma guerra de movimento. Assim, as grandes batalhas fazem-se à custa da artilharia e de toda a espécie de bombardeamento possível; o avanço ocorre quando se sabe que a oposição inimiga é insignificante.

 

Em seguida entram os russos nas cidades destruídas e convivem com os poucos sobreviventes dispostos a ficar. Mas será exactamente assim que se vai passar no futuro, seja ele muito próximo ou distante?

Julgo que não. Por muito que os russos persigam os ucranianos insubmissos, haverá sempre a tendência para manter nos territórios ocupados uma réstia de insubmissão, que constituirá o núcleo central de uma futura guerra de guerrilha alimentada pela Ucrânia não ocupada. E será isto um futuro? E será tal perspectiva digna de um país da União Europeia? Um país dividido, que se diz incompleto, poderá candidatar-se e ser aceite na UE? E, se for aceite, que UE será esta?

 

Como se vê, a guerrilha não será feita só de armas na mão, mas envolvendo uma série de Estados que alimentaram e preservaram entre si, durante cerca de setenta anos, o espírito de Jean Monnet e dos pais fundadores, que buscavam a paz, através do diálogo democrático, e o fim de todas as guerras entre os Estados europeus.

Para onde nos está a levar Bruxelas? Ou, será que não devo dizer, para onde nos está a levar, a nós europeus, esta subserviência aos planos estratégicos dos EUA?

21.06.22

Putin: ditador, assassino e invasor


Luís Alves de Fraga

 

Mais intensamente, desde o começo desta guerra, o presidente da Rússia tem sido mimoseado com vários epítetos que não favorecem a sua imagem pública, chegando a ser comparado a Hitler.

Creio que já escrevi algumas linhas sobre essa comparação que, na minha opinião, depois de vários estudos sobre estas duas personagens, em pouco lhes encontro semelhanças. Não vou hoje voltar ao mesmo cotejo, porque me parece mais interessante escrever exclusivamente sobre Putin.

 

Do material disponível, podem-se extrair várias sínteses conclusivas.

Antes do mais a mentalidade adulta deste homem foi formada dentro dos intrincados caminhos da teia da espionagem e dos serviços secretos onde, sabemo-lo muito bem, a moral comum tem pouco peso, pois interessam os resultados e estes, se possível, devem ser alcançados da forma mais eficaz, ou seja, desprezando os custos, mas valorizando os fins; qualquer coisa como: o objectivo está antes de tudo o mais, sendo que os meios não contam. Contudo, a esta simplificação, devemos juntar uma outra vertente, a da análise das consequências. Nos serviços secretos consome-se muita massa cinzenta para avaliar, antes da acção, o que pode acontecer depois da acção. Se Vladimir Putin conseguiu progredir na carreira que fez no KGB, não foi porque se limitou a estar; foi porque soube afastar concorrências e ganhar apoios dentro de um serviço onde toda a gente desconfia de toda a gente.

A capacidade para saber escolher oportunidades ficou evidente nos anos da grande confusão imediatamente a seguir a implosão do regime soviético. Soube impor-se de tal modo que, rapidamente, chegou ao círculo fechado e limitado do presidente Ieltsin.

Para percorrer todo este caminho Putin teve de usar de sagacidade, de jogo de cintura, de inteligência, de capacidade estratégica e, se calhar, de aspectos muito menos louváveis ‒ chantagem, ameaça, suborno ‒ mas que são vulgares em toda a luta política independentemente de cultura, latitude ou longitude geográfica. E tem de ser sobre estes aspectos que me vou debruçar com mais pormenor.

 

Se o mundo dos serviços secretos é um lugar de desconfiança constante o mundo da política é um lugar de mentira constante, por isso quem melhor do que um antigo agente secreto para ser político? Há formas de comportamento na política que exigem a destreza do actor cénico, pois não só representam uma determinada verdade para os eleitores como também o fazem para colegas de profissão; o político raramente diz a verdade absoluta, a verdade nua e crua, pois, para sobreviver, mascara-se de sincero e mente com completo descaramento. Mas, isto tanto acontece em democracia como em ditadura, porque os padrões morais do comportamento político são diferentes dos padrões da moral comum. Se procurarmos com atenção verificamos que há outras actividades onde, para sobreviver, tem de se usar comportamentos dúplices: o comerciante ‒ na actividade privada pode seguir um paradigma moral irrepreensível e à prova de todos os ataques, mas, no trabalho, resvala para o inaceitável ‒, o militar ‒ na vida quotidiana deve mostra-se um homem pacífico, tranquilo, contudo, em campanha tem de manter elevados padrões de agressividade, combatividade e, muitas vezes, frieza.

Assim, o político é medido pelo eleitorado em função dos resultados finais, visíveis e palpáveis, e jamais pelas promessas feitas ou, se se preferir, em função da diferença das promessas feitas e das cumpridas.

 

Putin, como bom agente secreto que, tudo indica, terá sido, entrou no mundo da política com muita facilidade, pois não lhe faltavam créditos intelectuais para isso e sobravam-lhe, até, algumas virtudes que o colocariam em qualquer cena da vida dos Médicis, quando eram senhores de todos os poderes e usavam de todas as possibilidades para se imporem na política italiana do seu tempo.

Ao que parece, o presidente de todas as Rússias já mandou envenenar inimigos políticos o que, como agente secreto, terá feito parte das armas vulgares na luta que se trava para além das vistas de quem vive entre o trabalho, a casa e os locais de lazer.

‒ É de estranhar?

‒ Oh meu Deus, quanta ingenuidade a de quem fica chocado com tais métodos! Salazar tinha uma polícia política que torturava e matava sem qualquer repugnância… E nós, os mais velhos, se calhar até nos cruzámos, no nosso dia-a-dia, com os torcionários do regime e nunca demos conta de que eram assassinos, mais, fizemos uma revolução em 25 de Abril de 1974 e não os julgámos, nem os privámos da pensão, nem, sequer, dos direitos de cidadania.

Putin ter participado como executante e ou mandante de assassinatos de cidadãos russos ou estrangeiros é, por conseguinte, uma acção dentro do âmbito das suas antigas funções de agente secreto e está dentro das acções praticadas por muitos políticos em regime democrático e, especialmente, autocrático. Para o incriminarmos teremos de incriminar muitos outros políticos que, por acção ou omissão, mandaram ou deixaram que cidadãos seus nacionais ou estrangeiros fossem assassinados em função de crimes políticos. Pessoalmente não concordo com este método de fazer política, todavia, tenho de reconhecer que existe e é mais vulgar do que imaginamos.

Portanto, segundo a moral comum, Putin é um assassino…

 

Putin ditador e invasor. Vamos ver.

Quem quiser defender que o presidente da Federação Russa é um democrata ou que na Rússia se vive numa democracia, das duas uma, ou quer enganar-nos ou anda completamente enganado sem perceber o que é uma democracia liberal (continuo a dizer que há democracia colectiva nos regimes que pretendem configurar um sistema político onde o indivíduo isolado não tem valor, porque só o tem como indivíduo colectivo).

Quem quiser afirmar a existência de uma democracia russa, argumentando com o facto de por lá haver mais do que um partido político com capacidade electiva, pode, aparentemente, fazê-lo, se omitir o peso do sistema repressivo e persecutório que controla a oposição ao regime vigente. Mais uma vez, recordemos o Estado Novo ou a ditadura de Oliveira Salazar, em Portugal, e a sua admissão, em 1948, na OTAN, onde só eram permitidos Estados com regimes democráticos. Os EUA convidaram o ditador a criar uma democracia no país… Foi fácil, bastou uma ligeira alteração no texto da Constituição Política, afirmando que o regime era o de uma democracia orgânica (explique alguém isto como melhor entender!). Em política, as coisas são o que se quiser que sejam! Por conseguinte, Putin é um ditador e um ditador não se impõe por si só já que precisa de convencer uma boa parte da população, que, normalmente, o apoia incondicionalmente até ao momento em que o repudia para sempre.

 

Claro que, com a arte da mentira, que todos os políticos usam em todos os momentos quando querem justificar as acções que, na moral comum, seriam condenáveis, Putin não chamou à invasão da Ucrânia uma invasão, do mesmo modo que Salazar não classificou, de início, a sublevação independentista em Angola, no ano de 1961, como o começo de uma guerra, pois designou-a como acção de polícia, contudo, no final do mesmo ano, classificou o ataque ao Estado Português da Índia como uma invasão. Curiosamente, o regime salazarista nunca atribuiu aos combatentes africanos, que lutavam pela independência, o estatuto de guerrilheiros, mas, com a mentira da política, chamou-lhes terroristas, que nunca foram, pois, para o serem, teriam de ter praticado actos que, pela sua natureza, assumem essa condição.

 

Em conclusão, a arma mais perigosa e mais usada na política é a propaganda, que constitui a camuflagem necessária e suficiente para transformar aquilo que, na moral comum, seria condenável em acto louvável ou vice-versa, conforme interessa a quem utiliza essa arma. Deste modo, cabe ao cidadão comum esclarecer-se para não ser vítima da demagogia dos políticos, posta em prática através da manipulação da verdade dos factos.

18.06.22

Vitórias morais ou sacrifícios inúteis


Luís Alves de Fraga

 

Hoje, 17 de Junho, se não me enganei nas contas, passa o 114.º dia de guerra na Ucrânia contra a Rússia, que lhe invadiu o território. Não vou discutir as razões da iniciativa russa, pois ficar-me-ei pela análise possível do pior tipo de perdas no conflito: as mortes de ambos os lados.

 

Falar de baixas em combate é, de há muito tempo, um tema escaldante e escorregadio, porque estamos sempre no domínio do provável e nunca no da realidade. Os governos e os estados-maiores escondem, subvertem e aumentam ou reduzem os números para não dar, durante o desenrolar do conflito, indicações ao inimigo quanto ao seu potencial humano perdido e não desmoralizar o que resta da tropa combatente, por conseguinte, neste momento, atirar números para o ar é um jogo de incertezas, no qual me proponho entrar com base numa pequena pesquisa que fiz em sítios da Internet, um pouco ao acaso, nacionais (poucos) e brasileiros (o Brasil está longe e quase nada ligado ao que se passa no Leste da Europa). Vejamos.

 

O jornal brasileiro Estado de Minas, em 14 de Abril, dizia que, segundo a ONU, teriam morrido 4 450 civis na Ucrânia e que, segundo informações deste último país, teriam morrido, até àquele momento, 19 600 soldados russos contra os 1 351, declarados pela Rússia até 25 de Março. Fonte ucraniana estimava que, até ao dia 14 de Abril, teriam morrido 14 000 soldados em defesa da sua pátria. Por outro lado, o mesmo órgão de comunicação social, dizia que tinham sido massacrados pelas tropas russas ‒ segundo números confirmáveis ‒ 700 civis, embora outras fontes não oficiais falassem em 20 000 ou 22 000.

Como se vê, as disparidades são significativas e os números parecem estar exagerados, para cima ou para baixo, conforme o lado a que respeitam. Curioso é que, no dia 4 de Abril, ou seja, dez dias antes da divulgação dos dados anteriores, a BBC News garantia que o 331.º Regimentos de Pára-quedistas da Rússia, uma unidade de elite, tinha sido desbaratada, morrendo o coronel que a comandava e mais 39 militares.

O jornal português Observador, no dia 10 de Junho, segundo fonte ucraniana, dizia terem morrido até àquela data 32 000 militares russos. Curiosamente, o jornal Exame, a 17 de Maio, confirmava o número oficial dado pelo governo russo de 1 351 militares mortos em campanha, mas, Kiev já afirmava que tinham morrido em combate 27 000 russos em sete semanas. Já, no dia 6 de Maio, o sítio Mediazona, pró-russo, concluía que haviam falecido 2 099 militares russos até àquela data. Mas, no Exame já citado, informava-se que o Ministério da Defesa britânico havia calculado que, até 17 de Maio, teriam sido mortos 12 500 militares russos.

Recentemente o presidente Zelensky não teve pejo em afirmar que as baixas diárias entre as forças militares da Ucrânia andavam na média de 100 soldados o que, por generalização, se utilizarmos até ao dia de hoje, teremos qualquer coisa como 11 400 desde o início do conflito armado, número que, pessoalmente, acho muito reduzido em contraponto daqueles que são indicados para a Rússia.

 

Sem nenhuma base de segurança, mas partindo do que acabei de expor, não me incomoda nada calcular que as baixas por morte em cada um dos exércitos já ultrapassou a fasquia dos dez mil homens e caminha para um número que, por cima do anterior, rondará mais dois ou três mil. Em suma, esta guerra, em ambos os lados, ceifou, até agora, quase de certeza, 24 000 militares, vidas que desfizeram futuros sem preço e deixaram recordações irrepetíveis.

Se internacionalmente não lançarem mais achas para esta fogueira, incitando os contendores a matarem-se até ao último homem, admito que Putin, se tiver ou lhe for oferecida uma razão, porá fim ao conflito para evitar o desprestígio interno ‒ esta coisa de dar filhos, pais, maridos à Pátria também tem um limite e a minha geração de jovens capitães bem o sabe e bem o sentiu ‒ mas torna-se imperioso que Zelensky ceda naquilo que, afinal, foi a razão da guerra: reconhecer a separação territorial e a independência da zona russófona da Ucrânia, aceitar a desmilitarização do país e negociar com cautela o retorno à tutela ucraniana de uma parte do litoral já conquistado pela Rússia. Entretanto, o Ocidente, com os EUA à frente, terá de aliviar as sanções económicas à Rússia e a UE terá de saber negociar com Washington e Moscovo de modo a envolver, parcelarmente, a Rússia na esfera dos parceiros económicos da Europa.

Se estes objectivos, ou outros semelhantes, não forem as baliza de uma paz honrosa para todas as partes, é certo e sabido que a luta vai continuar com declarado prejuízo para todos os actores activos e passivos deste conflito e, no fim, quando, por uma qualquer ocorrência política, se chegar ao ponto de alguém poder travar a mortandade haverá somente vitórias morais e sacrifícios inúteis.

16.06.22

Pronto, já está!


Luís Alves de Fraga

 

Ao começar o dia, aí pelas 7 ou 8 horas, recebo uma mensagem do jornal espanhol El País, assinada pela jornalista Berna González Harbour, que, resumindo o conteúdo mais importante do periódico, imprime o seu ponto de vista a tudo o que se passa em Espanha e no mundo. Curiosamente, hoje, o artigo dela começa com o seguinte título: «Objectivo: parar a guerra, corrigir a economia».

Como se vê, está lançado o mote. Isso acontece, tal como eu previra há tempos, porque, agora, a guerra já não é só uma coisa que afecta os russos e ucranianos, mas começa a prejudicar toda a economia, incluindo a dos EUA, mas, principalmente a da União Europeia.

 

Diz a autora, a propósito daquilo que chamou “uma troika europeia”, por causa da visita conjunta a Kiev de Macron, Draghi e Scholz: «(…) para expressar o seu apoio, mas também para deixar a mensagem de que será necessário negociar o fim de uma guerra que está causando uma inflação descontrolada. Pelo menos é isso que o presidente ucraniano teme: cenoura e vara» e, logo de seguida, explica: «A cenoura: os três líderes vão lembrá-lo [a Zelensky] que o sonho europeu está no horizonte, (…). A visita de Von der Leyen no último fim de semana foi indicativa. E amanhã Bruxelas apresentará a sua proposta para lhe conferir o estatuto de país candidato. Os 27 terão a última palavra na cúpula nos dias 23 e 24 de junho. A vara: mas Macron foi claro. A UE não está em guerra com a Rússia e a Ucrânia "terá de negociar com a Rússia".»

Como se vê, a situação começa a tomar contornos de realismo político, pondo de lado todo o apelo emocional que, de há três meses a esta parte, vinha sendo a tónica batida pelos órgãos de comunicação social portuguesa, europeia e, de certa maneira, ocidental.

Mas, Berna Harbour, um pouco mais adiante diz, recordando um outro artigo de hoje no seu jornal: «(…) com a chantagem da energia e dos cereais, Putin pretende conseguir "que os aliados façam Zelensky ver a razão, mas a responsabilidade e o direito de tomar tal decisão correspondem única e inteiramente ao Governo de Kiev". Aqui está».

 

Por mera curiosidade e desejo de obter um retrato o mais próximo possível do real, fui ler o artigo referido por Berna Harbour, e lá está Louis Doncel a informar que Kiev, com bom tempo e calor, aparece uma cidade de um país que não está em guerra, não fosse, muito de vez em quando, ouvir-se uma sirene que toca.

Mas, vou dar-lhe a palavra: «(…) alguns habitantes da capital da Ucrânia parecem entregues aos prazeres do Verão em terraços lotados ou passeios com sorvetes. O presidente francês, Emmanuel Macron, o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, chegaram esta manhã a esta cidade [Kiev] para trazer uma dupla mensagem ao presidente Volodímir Zelenski e a todo o país: o sonho europeu está no horizonte, mas antes que isso seja cumprido, é necessário um acordo para acabar com a guerra.»

Continuando na busca desse retrato da realidade do homem e mulher da rua de um país em guerra, encontrei a seguinte frase deixada por Pablo Ximénez de Sandoval também no mesmo jornal: «"Só sei que uma má paz é melhor do que uma guerra boa", argumentou uma mulher farta da destruição, da pobreza e dos militares nas ruas de Kramatorsk, cidade na frente oriental do país.»

 

É este jornalismo que as nossas televisões não fazem, porque não querem ou não as deixam fazer. Se não querem ‒ e a estação televisiva estatal, paga por todos nós, deveria procurar a imparcialidade ideológica e política ‒ estão a prestar-nos um mau serviço; se não podem, é muito oportuno que isso seja denunciado, para todos sabermos com o que podemos contar.

Claro que, com aquilo que hoje aqui vos deixo, tenho em vista um objectivo: ser-se capaz de abandonar ideias românticas, facciosismos e belicismos inconvenientes, que nos prejudicarão a todos. Mas vou mais longe: perceber-se que esse fantasma de um Putin igual a Hitler é uma irrealidade nos dias que correm, pois está à vista a capacidade militar russa… um tigre de papel, se não levarmos em conta o arsenal nuclear. E, sobre isto, quero deixar a minha opinião.

 

A arma nuclear é hoje, como foi no passado, um instrumento dissuasor, ou seja, algo que não se quer usar, mas que se espera que, pelo receio da devastação capaz de fazer, imponha bom-senso na cabeça dos actores da vida internacional, em especial daqueles que estão no primeiro plano da arena política.

A minha geração, a dos homens e mulheres que nasceram entre 1939 e 1945, sabe o que foi Hiroshima e Nagasaki, a morte instantânea de milhares de seres humanos e o sofrimento de muitos outros até que deixassem a vida por causa das queimaduras, dos cancros, deformações e malformações provocados pelas radiações atómicas.

Ora, nenhuma das actuais ogivas nucleares tem menos do que o dobro de carga destruidora das que foram lançadas pelos americanos naquelas cidades japonesas.

Armas desta natureza são simplesmente para mostrar e jamais para usar. Isto sabe-o Putin e Biden, Macron e Úrsula von der Leyen e muitos outros, mas parece estar esquecido por Zelensky e todos aqueles que querem a derrota da Rússia. Assim, quem será o louco que devemos temer?

É tempo de vergar, em nome da paz e da tranquilidade física e económica do mundo, aqueles que julgam bater-se pela sua pátria porque, às vezes, esses, por mero fanatismo, não se importam de levar a acompanhá-los, no caminho da tumba, muitos milhões… Têm a certeza única e demente de que não é para mim, mas não será para mais ninguém! Esses é que são os verdeiros Hitlers!

15.06.22

Direitos humanos e prisioneiros de guerra


Luís Alves de Fraga

 

Boris Johnson é um dos mais irresponsáveis políticos da actualidade europeia. Para além da figura ridícula que já estabeleceu como imagem de marca, é a prova evidente da imensa transformação dos hábitos e costumes da sociedade política britânica, que já nada tem a ver com a circunspecção própria da família real (embora Isabel II, com moderação, na passagem do 70.º aniversário da coroação, tenha aceitado participar no pequeno vídeo ao lado do urso Paddington, pondo-a muito mais próximo dos cidadãos britânicos vulgares).

Ao tomar a decisão de deportar para o Ruanda os imigrantes ilegais existentes no Reino Unido, Boris Johnson congregou sobre si as atenções dos compatriotas tal como as da Europa e, se calhar, a de uma boa parte do mundo. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem funcionou de imediato e conseguiu travar a saída do primeiro lote de desgraçados que iam ser atirados para um país de África onde não impera a democracia, e onde essa coisa de direitos humanos é algo desconhecido. No entanto, segundo as últimas notícias, o Primeiro-ministro britânico mandou que se continuassem os preparativos para novas deportações.

Que raio de democracia é esta e que raio de pessoa pensa ser esse homenzinho que responde pelo Governo do Reino Unido? Depois, e para escândalo de quem sabe estabelecer diferenças, o mundo ocidental permite-se criticar certas acções que estão a ocorrer na Europa de Leste!

Os direitos humanos, na Europa Ocidental são defendidos assim, tal e qual assim, porque, deste lado do Velho Continente, convencionou-se aceitar que há direitos humanos e aceita-se que um tribunal possa defendê-los. Mas esta convenção entre os Estados funciona em tempo de paz, de equilíbrio, de ponderação e de respeito. Ora, o tempo de guerra é exactamente o contrário de tudo isto; não há outro equilíbrio que não seja o ditado, em cada momento, pela força, a ponderação faz-se entre escolher matar mais inimigos e evitar que morram mais tropas das nossas e, por fim, o respeito está na boca das armas utilizadas, no calibre das munições e nos estragos que se podem provocar para levar os adversários à rendição e aceitação dos objectivos do vencedor.

Claro, há, depois, umas Convenções ou Tratados sobre o modo de fazer a guerra, que se cumprem ou desrespeitam um pouco em função da necessidade de vencer, ou seja, de quebrar a vontade do inimigo. Todavia, desse conjunto de normas sobre o modo de fazer a guerra, ressaltam algumas que, em princípio, deviam ser respeitadas por todos os contendores: as que determinam a maneira de tratar os prisioneiros, os feridos e os mortos.

O dever de serem respeitadas por todos resulta do simples facto de um prisioneiro já não estar a combater, um ferido estar em absoluta inferioridade perante o seu captor e os mortos merecerem o eterno respeito de todos, porque deram a vida, muitas vezes, por causas que, pessoalmente, lhes diziam pouco ou mesmo nada. Já nem se trata do cavalheirismo romântico e bafiento do início do século XX… Trata-se de ser prático e olhar a guerra como aquilo que ela é: um confronto de vontades com objectivos antagónicos.

 

A notícia que enche ‒ pelo menos até ontem ‒ os jornais e os telejornais é a da condenação à morte de três mercenários que lutavam nas fileiras militares da Ucrânia. Vejamos isto com algum cuidado, à luz do que está estatuído nas Convenções da guerra e da prática já vulgar de a fazer.

Segundo creio, quem começou com o julgamento de prisoneiros e condenação a prisão perpétua com fundamento em crimes de guerra foi a Ucrânia e, na minha opinião, fê-lo mal, como já aqui deixei dito, mas teve o retumbante apoio da opinião pública e publicada do Ocidente!

Agora, vem um auto proclamado responsável de uma das regiões russófonas da Ucrânia de Leste, afirmar que os mercenários feitos prisioneiros (dois britânicos e um marroquino) foram julgados e condenados à morte, depois de terem reconhecido a sua condição. Ocorre que está bem tipificada nas Convenções a condição de mercenário e a falta de protecção que têm se forem feitos prisioneiros.

A actuação contra aqueles três prisioneiros está dentro do que se encontra estabelecido internacionalmente. Contudo, o conceito de mercenário tem sofrido mutações desde o período das lutas dos territórios coloniais pela independência; hoje já são muitos os Estados do Ocidente que se socorrem de empresas que disponibilizam tropas privadas para fazer a guerra. Isso ocorre com os EUA, com a Rússia e com vários países africanos.

Pelas mudanças que se operam nos tempos que correm, parece-me, dever-se-ia levá-las em conta e ponderar as condenações à morte. É que o romantismo de conceitos definidos no século XIX e ainda na primeira metade do século XX está claramente ultrapassado por todas as grandes potências militares do mundo, tornando a guerra num acto sujo e infecto onde estão a ser consentidas todas as medidas que, de românticas, nada têm.

Julgo, é tempo de parar com fantasias que só confundem quem nunca se debruçou sobre o brutal fenómeno que é a guerra.

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