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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.05.22

Como vai a guerra?


Luís Alves de Fraga

 

Passaram três meses e alguns dias sobre a invasão da Ucrânia por tropas russas. Ao contrário do que pensei logo no início, o conflito está a durar mais do que as três semanas que imaginei.

Foi engano meu, que não estou dentro do estado-maior russo ou ucraniano, ou deixei-me influenciar pelas experiências das pequenas guerras do século XIX, levadas a cabo para acerto de fronteiras ou, até mesmo, pela duração da invasão prussiana de França? É que, admiti, bastaria ocupar Kiev e provocar uma mudança governamental que fosse pró-russa e tudo estaria resolvido. Não há dúvida, enganei-me. Todavia, continuo a apostar numa curta duração deste conflito, ao invés do que se apregoa quanto a uma possível resistência superior a um ano.

Quando digo curta já admito que possa chegar a Setembro ou Outubro do corrente ano. Mais do que isso, parece-me, é eternizar uma guerra na Europa, que não convém nem aos russos nem aos europeus, embora possa ser do agrado dos americanos.

 

O meu engano inicial fundamento-o naquilo que a maioria dos comentadores ocidentais considera um recuo do estado-maior russo: o avanço em duas frentes: uma sobre Kiev e outra a Leste sobre o Donbass rumo à costa do Mar Negro.

Realmente, hoje, admito que, desde antes da abertura das hostilidades, o estado-maior russo optou por uma manobra de diversão e divisão das forças ucranianas, pois, fazendo crer que o objectivo principal era Kiev, com vista àquilo que admiti (fazer cair o governo e substitui-lo por outro pró-russo), obrigou ao reforço da defesa da capital ucraniana, chamando todas as atenções para aquela zona do território, enquanto deslocava para Leste, em direcção ao Donbass, forças capazes de iniciar operações que só mais tarde se perceberia constituírem o objectivo fundamental de toda a operação.

Com efeito, repare-se, a simples mudança do governo da Ucrânia não oferecia garantias estratégicas permanentes (recordemos os falhanços da URSS e dos EUA em operações deste tipo no Afeganistão ou só de Washington noutras regiões do Médio Oriente) enquanto que dominar militarmente a zona russófona a Leste e a costa do Mar Negro, bem como alguns dos seus principais portos, é, estrategicamente, a única solução capaz de levar ao fim do conflito. E, o mais curioso é que, na minha opinião, esse final de guerra, com perdas territoriais, pode vir a ser imposto à Ucrânia pela Europa, arrastando os EUA a ter de parar com o desejo de arrasar o poder militar russo. Assim, Putin pode apresentar aos russos uma vantagem na guerra. Se tal vier a acontecer como o antevejo, haverá dois perdedores e dois ganhadores. Os EUA e a Ucrânia perdem, de formas diferentes, mas perdem, enquanto a Rússia e a Europa ganham, também de formas diversas, mas ganham.

 

E não se diga que Putin, no quadro que acabei de traçar, sai com vontade de iniciar qualquer outro conflito sobre Estados vizinhos e não pertencentes à OTAN. Não sai, porque, para além de o seu arsenal militar estar desfalcado, está sob uma forte tensão devido às sanções económicas impostas pelos EUA e acompanhadas pela Europa.

O único golpe de rins que lhe fica para dar é o da aproximação à China, mas, admito, não irá entrar por esse caminho, pois mostrou fragilidades militares que não interessam a Pequim. Não se pense, contudo, que a Rússia sai deste conflito com um estatuto internacional inferior àquele que tinha antes; continuará a ser uma grande potência, porque vai buscar à panóplia de armas nucleares toda a força que perdeu no plano da guerra convencional. Esta última fragilidade colocará Moscovo perante a situação de ter de repor forças convencionais e ampliar a investigação de modo a conseguir encontrar novas e inovadoras soluções de fazer a guerra com armas tácticas modernas e capazes de se contraporem às dos EUA. Para que isto se torne uma realidade exequível é preciso que economicamente a Rússia se recomponha e, para tanto, carece de vender aquilo que lhe pode dar lucro: o petróleo e o gás. A médio prazo, a Europa poderá ter de substituir as compras de tais fontes de energia aos EUA por outros fornecedores onde, entre eles, se perfila, novamente, a Rússia.

Em conclusão, julgo (sem apoio de nenhuma bola de cristal, que abomino), a Europa terá todo o interesse estratégico em procurar estabelecer os termos de uma paz na Ucrânia a troco de ajuda na reconstrução daquilo que ficou destruído como compensação daquilo que foi conquistado pela Rússia, com mais uma pequena exigência a Kiev: desistir de afrontar Moscovo, desarmando-se dentro dos limites do razoável.

É isto que se mostra conveniente ao Kremlin para a Rússia não sair humilhada e o que pode contribuir para a Europa, em especial a União Europeia, não se sentir um simples pião na definição da estratégia global dos EUA.

29.05.22

Ainda a Europa e a actual guerra


Luís Alves de Fraga

 

Do pouco que sabemos sobre quem determinou o desenvolvimento das culturas orientais, podemos, talvez, aceitar que a Índia e a China foram os centros de difusão de um pensamento e de uma maneira de estar na vida diferentes da que seguimos no Ocidente.

Quando os povos do Ocidente, mais em concreto os europeus e, dentre estes os portugueses, chegaram ao Oriente perceberam que o modo de estar, de pensar e de conceber a vida eram divergentes dos padrões a que estavam habituados.

Se calhar, sem nunca terem reflectido maduramente sobre a forma de resolver as divergências culturais, os europeus usaram o processo mais velho que conhecemos para ultrapassar barreiras que pareciam ‒ e ainda parecem ‒ difíceis de transpor: a conversão à religião dominante na Europa: o catolicismo. Foi esse o método usado pelos Fenícios, os Gregos, os Cartagineses e os Romanos: conversão aos deuses que os regiam e aos quais praticavam culto. A religião foi, ao longo dos milénios, um instrumento de ultrapassagem de diferenças culturais. Foi usando-a e exportando-a que a Europa gerou aquilo que se designa hoje por cultura ocidental.

Às vezes, a ocidentalização de certos povos é mais aparente do que real; basta trajar e comportar-se socialmente como um ocidental para se julgar que o modo de pensar e agir corresponde ao padrão europeu; nada mais enganoso!

 

Ora, se isto é verdade entre um europeu e um oriental, também é verdade entre um europeu e um asiático, que não seja chinês, mesmo que professe a religião católica, embora ortodoxa. Mais verdade será se se tratar de um asiático islâmico.

Faço esta divagação com, aparentemente, pouca importância para ajudar a perceber que houve um conceito exportado pelos europeus para todo o mundo e que, por não ser uma religião, nem ter características ritualistas, é tomado de formas diferentes nas diferentes partes onde chega. Refiro-me à democracia.

Ainda antes da Revolução Francesa, quando as colónias americanas da Inglaterra se tornaram independentes, formando os Estados Unidos, a Constituição Política consagrou o regime democrático republicano como aquele que devia ser praticado pelos povos que se queriam livres de um monarca e de poderes discricionários. Era a vitória da liberdade sobre a tirania de então. A Revolução Francesa veio confirmar a justeza do princípio, levando a que o liberalismo (a liberdade do indivíduo poder dizer o que pensa, desde que não fira as normas de Direito consagradas, a liberdade de oportunidades para fazer o que a Lei não condena, mas que o pode levar até onde for capaz, a liberdade de poder exigir igual tratamento entre os cidadãos) se espalhasse pela Europa, quer sob a forma de monarquia quer de república. No continente americano ‒ do Sul ao Norte ‒ a democracia e a república foram aceites em todos os Estados, umas vezes mais cedo e outras mais tarde.

 

Mas a democracia não é um ritual religioso, nem tem regras rígidas. A democracia liberal (para a distinguir da popular) foi, é e há-de ser aquilo que os homens quiserem que seja; os escravos não votavam, nem as mulheres, nem os analfabetos, nem os que não pagavam impostos, nem estes nem aqueles a bel-prazer dos que definem as constituições políticas segundo a vontade dos grupos sociais dominantes.

E não se julgue que isto foi no passado distante! Não. Leia-se, por exemplo, de Barack Obama, Uma Terra Prometida, ou, de Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia: O Fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo, ou, de Robert J. Lieber, A Era Americana, para perceber que a democracia liberal tem latitudes tão variadas que nela podem, quase sem esforço, incluir-se regimes policiais, persecutórios (exercendo a perseguição de modo subtil), alienantes (por deformação da verdade), selectivos nas possibilidades de mobilidade social, limitativos da comunicação social (impõem sanções de vária natureza a quem não difunde a verdade oficial) e toda uma panóplia de desvios àquilo que se pensa ser a liberdade democrática liberal.

 

É, por força destas distorções, que falar em democracia relativamente a certos países da Europa corresponde a uma mentira só perceptível por poucas pessoas bem informadas e, por isso, não alienadas pelos mecanismos da propaganda política usados para parecer aquilo que realmente não é. Hoje há ditaduras-democráticas ou, se se preferir, democracias-ditatoriais em que as vítimas não sentem o peso da ditadura (aquela que se assumia como tal), porque estão cegas, não conseguindo ver para além do que lhes é determinado. Sem receio de errar, excluindo os casos mais conhecidos e que andam badalados nos jornais ou em livros de especialidade ‒ a Turquia, a Polónia e a Hungria ‒ arrisco a dizer que na Europa, em geral, a democracia vive num plano inclinado para a direita radical, que é perita (tal como a sua oposta à esquerda) em distorcer as realidades, envolvendo-as com mantos pouco diáfanos de uma propaganda exaltada por nacionalismos sem sentido, xenofobias fora de tempo e slogans a transbordar ódio vazios de sentido no momento que corre.

 

Não tenho dúvidas que, por mais que se grite o contrário, a democracia ucraniana está muito próxima da sua companheira ideológica russa ou húngara, ou turca.

Ora, sendo assim, e sabendo que os mecanismos condicionadores da democracia, da verdadeira, daquela que se deseja limpa de influências e interesses económicos, políticos e ideológicos (daquela em que o cidadão é dono de si e pode fazer valer os seus interesses) apoiar democracias selectivas pode corresponder, no curto espaço de alguns anos, a ter dentro de portas ideologias de extrema-direita, que se julgam legitimadas em função dos apoios dados à Ucrânia, onde, depois de a guerra ter acabado, certamente, se vai implantar uma democracia-ditatorial. A Europa em geral e a União Europeia em particular deveriam estar muito atentas a este fenómeno para não virem a sofrer instabilidades com as quais terão dificuldades acrescidas em lidar. Cuidado, a democracia, não sendo uma religião com ritos, tende a adaptar-se à cultura dos povos onde se diz que está implantada e as culturas eslavas, tal como as orientais, não são idênticas às da nossa Europa!

Será que os tecnocratas de Bruxelas e os políticos europeus são capazes de percepcionar o panorama que expus na generalidade?

26.05.22

O erro da Europa nesta guerra


Luís Alves de Fraga

 

Não sou um articulista com direito a informações privilegiadas (nem sei se sou articulista!), contudo, sou um espectador atento com formação em Estratégia (seja política seja militar) e em Ciência Política e, por isso, tenho o hábito de fazer leituras para além das linhas, lendo o reverso do que está escrito, de modo a perceber o que não se diz. Claro, trata-se de um jogo de hipóteses, cujo resultado se apoia em meras probabilidades. Mas, se o leitor não sabe, acredite, é deste modo, embora com acesso a informação recebida de fontes confiáveis ou não, que escrevem nos jornais e preparam as intervenções na rádio e ou na televisão os nossos comentadores de serviço.

Dada esta explicação, vamos então ver qual está a ser o erro da Europa nesta guerra.

 

Constitui um profundo erro este alinhamento subalterno da Europa, em especial da União Europeia (UE), em relação aos EUA. Evidentemente que a actuação escolhida tem um fundamento, mas é pouco ou nada imaginativo. Com efeito, está-se a antecipar o que veio a acontecer no decurso das 1.ª e 2.ª Guerras Mundiais: o pedido de ajuda aos EUA. Ora, é mais fácil repetir um cenário passado do que inventar um cenário futuro, daí que a resolução adoptada seja a que temos à vista. No entanto, o momento actual, em nada se parece com os conflitos mencionados. Vamos ver.

Actualmente há uma aliança de salvaguarda de uma larga faixa de Estados europeus para se precaver de um ataque da Rússia e dá pelo nome de NATO ou OTAN. A Rússia sabe que se atacar um só país da NATO espoleta uma guerra com todos os restantes o que, convenhamos, em termos estratégicos, corresponde a um suicídio. Assim, era lógico e prudente que os Estados que fazem parte daquela aliança se mantivessem à margem do conflito, obrigando aqueles que o desejam ou o preparam a mostrar o seu jogo, o mesmo é dizer, a empenharem-se directamente na guerra. Como sabemos, os empenhados em directo são a Ucrânia e a Rússia, mas, indirectamente, estão por trás da primeira os EUA, que, para além de mandarem material de guerra e alguns conselheiros militares, nada mais por lá têm, nem nada mais arriscam.

 

Calculo que os meus leitores estarão a pensar: «E a NATO não obrigava ao empenhamento dos Estados europeus?» Evidentemente, os EUA iriam fazer pressão para um empenhamento indirecto dos países da aliança, mas, não nos podemos esquecer, as decisões são tomadas por unanimidade. Se a França ou a Turquia ou Portugal ou outro qualquer Estado, isoladamente ou em conjunto, pusesse em causa as decisões do secretário-geral da OTAN, gerava-se um clima de impasse e, o mais que poderia ocorrer era Washington, unilateralmente, desfazer a aliança ‒ e o que aconteceriam às suas bases nos países europeus onde estão instaladas? ‒ ou começar a exercer pressão económica sobre os aliados europeus e aí, a diplomacia europeia ‒ a da UE e não só ‒ teria de saber tirar partido da proximidade com a Rússia para intervir politica e diplomaticamente de modo a interromper as operações militares.

Estranharão os leitores esta abordagem, contudo, creiam que nada tem de original… Fui buscá-la à diplomacia de Oliveira Salazar durante a 2.ª Guerra Mundial, quando estava a ser pressionado por Londres para ceder uma ou várias bases nos Açores. Só correspondeu ao solicitado quando percebeu, em Maio de 1943, que a Alemanha estava irremediavelmente derrotada. É uma estratégia de manha, de toca-e-foge, de faz que sim, mas que acaba em não ou em talvez. É, no fundo, uma estratégia que configura uma indecisão constante, até ao momento oportuno para, cedendo ou negando, obter o melhor possível nas situações mais delicadas.

Está visto que tal modo de actuar pressupunha que, dentro da UE, houvesse uma verdadeira diplomacia de paridade (não haver Estados de segunda e outros de primeira) e que, alcançada a unanimidade, houvesse uma diplomacia capaz de influenciar os governos dos países que não pertencem à União. Trata-se de uma utopia? Não. Trata-se do exercício de uma democracia livre de peias e de constrangimentos onde os fracos não têm de se sujeitar aos fortes.

 

O ganho de uma estratégia desta natureza era imenso, pois, sem desfazer a aliança, mostrava aos EUA que o peso da Europa é maior do que o dos americanos e canadianos; mostrava à Rússia que a Europa não faz a política determinada em Washington e, por maioria de razão, a estabelecida por Moscovo; e modificava a esfarrapada imagem de uma Europa sem força nem importância nas decisões globais.

 

Quanto à Ucrânia, do mesmo modo que a Casa Branca, o Pentágono e o Capitólio estão a sacrificar aquele povo, a Europa sobrepunha os seus interesses colectivos aos de Kiev. Nestas circunstâncias, talvez, nem Zelensky nem Putin tivessem ido tão longe no braço-de-ferro actual, até porque quem está por trás do primeiro são os EUA.

25.05.22

Hoje é o contrário de ontem ou talvez não


Luís Alves de Fraga

 

Logo após a vitória dos Aliados, em 1945, verificou-se que a Europa estava, para além de fisicamente destruída (as grandes cidades alemãs era um monte de entulho, as suas fábricas e linhas de caminho-de-ferro, bem como as autoestradas estavam inutilizadas e em destroços por causa dos bombardeamentos massivos) havia ficado sem capacidade produtiva e sem capacidade de compra, porque a produção se limitava aos mínimos.

No lado oposto deste quadro, estavam os EUA com todo o seu aparelho produtivo em funcionamento, uma economia florescente, sem desemprego ‒ as mulheres haviam ocupado o lugar dos homens nas fábricas ‒ e com um excelente padrão de vida.

Este panorama era, realmente, bom, porque a indústria de armamento se tornou no motor impulsionador de toda a restante economia. Acabada a guerra, a produção daquilo que não seria mais necessário ‒ armas e munições ‒, sendo suficiente para o consumo interno, não teria compradores externos se as economias restantes não se recompusessem tão rápido como possível.

Duas brilhantes ideias surgiram em Washington: dar um grande apoio financeiro à Europa para que refizesse a sua economia e pudesse tornar-se uma entidade comercial parceira dos EUA e criar um organismo que garantisse a continuidade da indústria de armamento americana.

Em 1948, foi aprovado pelo Senado um extraordinário auxílio financeiro à Europa, que tomou o nome de Plano Marshall e resultou plenamente, de tal forma que, dez anos depois, o Velho Continente dava os seus primeiros sinais de vida com a célebre exposição internacional de Bruxelas, que levou quarenta e dois milhões de pessoas a visitá-la. Era a vitória da paz sobre a guerra, mas, acima de tudo, era a afirmação de que os EUA haviam criado um mercado onde vendiam e compravam de modo a manter a sua prosperidade interna. Sem a ajuda americana tudo teria demorado muitos mais anos e o progresso e bem-estar teriam chegado à Europa muito mais tarde. Todavia, como se vê, é preciso perceber que o apoio dos EUA não foi desinteressado.

 

A outra brilhante ideia, nascida em 1949, também na América, foi a criação da NATO, como aliança entre os EUA, o Canadá e alguns países democráticos da Europa, entre os quais estava o muito democrático Portugal do Estado Novo, chefiado pelo velho ditador Oliveira Salazar.

A NATO cumpria duas funções: por um lado, abastecia de armamento os Estados europeus, por outro, constituía a ameaça permanente à URSS, que, segundo a doutrina americana, punha em risco a Europa Central, dado que apontava para a possibilidade de fazer estalar uma terceira guerra mundial, partindo da Alemanha de Leste, que se havia constituído em Estado independente, adoptando o comunismo como ideologia política.

O laço da armadilha americana estava montado! Parecendo tudo uma política de auxílio à Europa, a verdade é que tratava-se de uma acção estratégica ‒ com benefícios para os países europeus, é certo ‒ de largos dividendos para a economia dos EUA.

 

Do Plano Marshall a Europa conseguiu saltar para o estabelecimento de um mercado comum com livre circulação de pessoas e bens, gerando riqueza e evitando concorrências capazes de originar conflitos entre Estados. O grande motor dessa nova unidade comercial foi a Alemanha que, também, à semelhança dos EUA, só tinha a ganhar. Naturalmente, a Europa, ao dar a independência às suas colónias no período seguinte ao fim da guerra ‒ imposição da Carta das Nações Unidas, outro organismo onde preponderam os EUA como financiador líquido mais importante ‒ perdeu fontes de matérias-primas mais baratas, enquanto os EUA ganharam mais algumas bases militares no mundo e impuseram os seus esquemas económicos em vastas zonas do globo terrestre.

A chamada Guerra Fria entre o Ocidente e o Bloco de Leste transformou-se em guerra quente nas antigas colónias da Europa, já que por interpostas pessoas ou directamente, se combateram com o intuito de ampliar os seus mercados fornecedores e as respectivas zonas de influência. Daqui, para se chegar à pergunta crucial, é um pequeno passo: «Quem é que ganhou, no âmbito estratégico mundial, com o Plano Marshall, a criação da NATO e a descolonização?» A resposta é evidente!

 

Com o passar das décadas, na Europa, aquilo que começou por ser um mercado comum acabou por se transformar num bloco político e económico, com uma moeda própria e um peso específico na economia mundial: a União Europeia (UE).

Sendo um grande parceiro comercial no mundo, aceitando negociar com uma China a florescer economicamente e com uma Rússia desligada da ideologia comunista, a UE começou a representar um risco ‒ não imediato, mas a médio-longo prazo ‒ para a Grande Estratégia dos EUA. Note-se que esse perigo não resultava da concorrência directa, mas dos choques com a estratégia traçada por Washington para a economia e importância militar americana no mundo, em particular, num mundo globalizado.

 

O bom entendimento da Alemanha com a Rússia e os laços comerciais com a China (que passou a equacionar hipóteses estratégicas capazes de a colocar como principal potência comercial do mundo) determinaram uma alteração no comportamento dos EUA para com a Rússia, a Europa e a China. O desbocado presidente Donald Trump deixou vislumbrar, aquando da sua permanência na Casa Branca, um pouco do que poderia vir a passar-se e que Biden, com inteligência e manha, pôs em prática, usando de todos os meios secretos postos à sua disposição. Para tanto, bastou agarrar na Ucrânia, atiçando-a contra as regiões onde os russos tinham elevada densidade de simpatizantes.

Um massacre desses ucrano-russos era suficiente, assim como a promessa de apoio na reconquista da Crimeia, para levar Moscovo a movimentar, no tabuleiro da estratégia mundial, forças militares com vista a fazer regressar Kiev a uma neutralidade que lhe era favorável. Contudo, a promessa de entrada na NATO feita ao presidente ucraniano e, até, a possível admissão na UE ‒ um golpe estratégico que, ao invés de fortalecer a Europa, a pode enfraquecer (para onde vão as quotas de produção agrícola dos membros já ligados à União, se a Ucrânia for admitida?) ‒ foi o suficiente para dar alento a Zelensky, levando-o a inchar o peito e afrontar a ameaça de Moscovo.

Perante a possibilidade de concretização do prometido, o Kremlin ‒ fosse Putin ou outro qualquer a presidir ‒ reagiu, primeiro fazendo sérios avisos e, perante o ar desafiante de Kiev, invadindo preventivamente o território pivot da estratégia americana na Europa.

 

O Estado ucraniano, o seu povo, a demolição de todas as infraestruturas implantadas naquele território, bem como o número de mortos, estropiados e empobrecidos resultantes do conflito pouco interessam aos EUA, a Washington, ao Pentágono, a Biden; importante é a sua estratégia global. Para cobrir com uma boa tela de camuflagem esta frieza americana nada melhor do exaltar, nos órgãos de comunicação social, as malfeitorias dos russos com a invasão, tal como se fosse possível conduzir uma guerra sem estragos, tentando fazer esquecer os horríveis bombardeamentos levados a efeito pelas aeronaves americanas no Vietnam! Mas não é isso que me preocupa neste momento.

 

Importante é que com a eclosão do conflito na Europa e os consequentes resultados económicos e políticos dele saídos três objectivos podem ser alcançados pelo Pentágono e pela Casa Branca: o descarado enfraquecimento do poder militar russo; a desarticulação da economia europeia com as consequentes hipóteses de desentendimentos dentro do bloco; e, por fim, a possibilidade de corte de entendimentos entre Moscovo e Pequim. Ou seja, aquilo que o Plano Marshall e a NATO ajudaram a construir no Velho Continente vai cair, pedaço a pedaço, por vontade dos EUA, porque também uma Europa unida, militar e economicamente forte representam uma ameaça para os EUA dentro do tabuleiro deste xadrez da estratégia mundial que Washington não quer deixar de controlar nem perder.

E, nós por cá, sem percebermos nada disto, cortamos relações uns com os outros, porque somos acusados de estar ao lado do PCP ou de Putin ou de não sermos atlantistas!

Foi assim que não soubemos tirar bons e duradouros rendimentos das nossas antigas colónias e perdemos todas as boas oportunidades criadas quase por acaso ao longo da nossa História! Sobrevivermos como Estado e Nação é fruto de uma qualquer divindade que protege os incapazes.

19.05.22

Visão de embaixador


Luís Alves de Fraga

 

Ontem à noite vi grande parte do programa “Fronteiras XXI”, cujo painel incluía o inefável Nuno Severiano Teixeira (que, para além de outras qualidades consegue falar de tudo, mesmo que de nada saiba) e o embaixador já aposentado Fernando d’Oliveira Neves. Debatia-se o tema Putin deu um novo propósito à União Europeia?

De Londres, falava o embaixador da União Europeia no Reino Unido João Vale de Almeida, e entrou no programa, também, a ex-secretária de Estado da Defesa Nacional Ana Santos Pinto.

 

A única voz dissonante da verdade que se vai tornando oficial foi a do embaixador Fernando Neves que, com todas as cautelas que uma longa experiência diplomática lhe deram, colocou a questão de a invasão da Ucrânia ‒ que todos nós lamentamos, porque uma guerra faz mortos e feridos de ambos os lados em confronto ‒ não tanto como uma agressão ao Direito Internacional, que teve o cuidado de realçar ser um direito do mais forte, mas como uma consequência de uma política ofensiva (não o disse assim, mas o sentido foi este) dos EUA, que querem ver reduzida a capacidade da Rússia, mantendo para si o estatuto de superpotência. Para ele a política não é linear como, por exemplo, para Severiano Teixeira, que vê de um lado os bons e do outro os maus.

Fernando Neves, com aquele jeito dos diplomatas, foi dando a entender que os Estados nascidos da antiga Rússia não deveriam ser aceites no âmbito da UE, porque trazem para dentro dela problemáticas que não fazem parte da História da Europa. Já o presunçoso Severiano Teixeira defendeu que todo o Estado soberano pode e deve escolher o seu caminho, as suas alianças, os seus entendimentos.

 

Ora, quando penso nisto, vejo-me obrigado a perspectivar as relações de Estado à dimensão das relações interpessoais, coisa que corresponde a minimizar ridiculamente a complexidade da vida internacional.

Afirmações deste género, ou que apontam neste sentido, são risíveis, porque roçam a perspectiva do homem vulgar, do homem da rua, cuja formação intelectual resulta da vaga leitura dos jornais e da audição-visão das televisões, que nos vendem as matérias informativas embrulhadas segundo um pacote pré-estabelecido.

 

A minha revolta contra a posição dos outros três intervenientes no debate não resulta de estar em desacordo com os horrores da guerra, desta guerra. O invasor pode chamar-se Putin, Francisco, Rodolfo, Afonso, Miguel, Bidend ou Trump, porque a minha condenação não recai no acto de invadir. Por amor de Deus, a História do Mundo está carregada de invasões, de guerras, de mortos, de torturas. A minha revolta resulta da forma simplista como me querem fazer acreditar na culpabilização do presidente russo, seja ele quem for.

Estamos a desenterrar fantasmas que acabaram em 1945 ou mais tarde, ao concluir-se que Estaline procedeu como Hitler. Mas esquecemos que a nossa civilização foi construída sobre o terror exercido por reis, ministros, presidentes e continua na mesma, só que disfarçada, camuflada e inventada segundo modelos modernos de comunicação.

Nós, europeus, estamos habituados a ver a guerra lá longe, em terras que quase nada nos dizem ‒ tal como um argentino ou um australiano verá esta guerra na Europa ‒ e o que nos alucina é esta proximidade e, por isso, em vez de apagarmos o fogo através da diplomacia e de desmascarar interesses envolvidos, escondemo-los e ateamos a guerra, mandando armamento para a Ucrânia na esperança de vermos a Rússia humilhada e diminuída no seu aparente poderio militar.

Estamos a ajudar, exactamente, quem?

Não se me dê como resposta, os ucranianos, pois é tão evidente que nem merece comentário, por isso tenho de repetir a pergunta: estamos a ajudar, exactamente, quem?

Claro que não é a nós que nos estamos a ajudar! A Rússia não se atreve atacar qualquer Estado que pertença à NATO!

A resposta salta-me imperiosa:

‒ Estamos, objectivamente, a ajudar os EUA na sua política globalizante e na sua tentativa imperialista de arredar a Rússia do caminho da concorrência militar e política.

Assim, realmente, Putin deu um novo propósito à UE: subalternizar-se aos EUA, com medo de perder a protecção militar norte-americana, tal como se ainda houvesse URSS e a possibilidade de a Rússia ameaçar a Europa. Tudo isso é do passado! Deixemos de usar esqueletos para imaginar o futuro do mundo e, em especial, o da Europa.

18.05.22

Esta coisa de ser médico


Luís Alves de Fraga

 

Ontem, ao fim da tarde, acompanhei um meu familiar a uma consulta médica de medicina geral e familiar, levada a efeito numa clínica privada, não das mais baratas da Grande Lisboa, porque se sentia com dores de garganta e de cabeça, cansaço geral, um pouco ranhoso e uma ligeira tosse, coisa que já se vinha arrastando, sem tratamento prescrito, desde há cinco dias.

Esse meu familiar tinha tido o cuidado de fazer, em casa, no período em causa, quatro testes rápidos para detecção de Covid 19, os quais deram sempre resultado negativo.

 

Ouvidas as queixas, a senhora doutora, com ar despachado e de quem se queria despachar, observou, à distância de mais de meio metro, com o pauzinho de baixar a língua, a garganta do paciente, auscultou-lhe as costas e, depois de tudo isto, ditou a sua sentença:

‒ Os pulmões estão bem; a garganta está ligeiramente inflamada; mas não há nada melhor do que fazer o teste na farmácia, porque deve estar com Covid ou, depois, logo se vê!

O meu familiar replicou que tinha feito, em casa, havia poucas horas ‒ quatro ou cinco ‒ um desses testes rápidos…

‒ Não, não. Tem de fazer numa farmácia ou num laboratório. Eles depois comunicam ao SNS e, não carece de qualquer atestado ou declaração médica, para justificar as faltas que tenha de dar no seu emprego.

E pronto, ao cabo de seis ou sete minutos de consulta, recebemos um papel com a indicação do tipo de teste (eu julguei que era um daqueles que demoram horas a obter o resultado), uma prescrição medicamentosa de um xarope, pastilhas de Tantum Verde, um anti-histamínico e mais Nimed.

 

Seguimos, de imediato, para o laboratório da cínica onde foi feito o teste exactamente nos mesmos moldes daqueles que se fazem em casa; os outros acabaram ou já nem são aconselháveis. Aviados os medicamentos, o meu familiar recolheu ao seu lar e eu fiquei a pensar…

 

Há pessoas que jamais deveriam ter obtido o diploma de médico com aprovação da Ordem para exercer clínica. E por uma razão muito simples: o exercício da medicina obriga a ter-se vocação e capacidade de empatia com o doente de modo a que se estabeleça um fio condutor de confiança entre o médico e o paciente. Mas não se trata só de empatia; é preciso que o clínico saiba ler nos olhos e na face daquele que tem na frente e, física ou psicologicamente, está a sofrer. Olhar para o doente como um ser absolutamente ignorante dos seus padecimentos e do que espera do médico é coisa que muitos tipos de bata branca e estetoscópio ao pescoço não sabem fazer. Julgo que, nestas condições o curso que lhes estava mais apropriado, na área da saúde, era o de veterinário, porque os pacientes desses médicos, para além de não saberem queixar-se, aceitam qualquer tratamento, medicamento ou sentimento com indiferença, pois, raramente se estabelece qualquer relação emotiva entre quem trata e quem sofre.

 

Na verdade, esta coisa de ser médico não passa por ser um bom aluno na escola básica, no ensino secundário e, até, na faculdade; passa por se ter vocação e capacidade de entrar dentro do sofrimento do outro, não para o lamuriar, mas para o tratar das suas queixas físicas de modo a sarar as dores psíquicas, que surgem do facto de não se ter saúde.

Quem não tem vocação clínica não a exerça. Pode ser um excelente investigador laboratorial, talvez, até um bom professor, mas fuja do consultório. Ganhe dinheiro de outra forma, porque bestas já há muitas e, por cá, abundam as de duas pernas.

17.05.22

La color de la carpeta


Luís Alves de Fraga

La color de la carpeta é um excelente exemplo do que se está a passar neste momento em relação à informação sobre a guerra russo-ucraniana.

Repare-se como alguém pode ser influenciado pela maioria, independentemente de ter a realidade na frente dos olhos. Não a "vê", porque sofre a pressão da maioria, sofre a pressão do que se diz ou do que os outros dizem.

Acompanhem o vídeo e revejam as vossas posições sobre o que alguém quer que seja tomado como uma realidade e aquilo que a vossa análise cuidada e silenciosa vos diz.

17.05.22

A Suécia a Finlândia e a NATO


Luís Alves de Fraga

 

Depois de há mais de duzentos anos, a Suécia ter sido uma potência militar europeia com algum significado, remeteu-se a um estatuto de neutralidade quase irredutível. E percebe-se a razão: a sua localização geográfica, entalada entre a Finlândia, a Noruega, o Mar Báltico e a Dinamarca, não a coloca no caminho dos grandes conflitos europeus, para além de que a cordilheira que estabelece a fronteira com a Noruega representa um obstáculo ao avanço por aquele lado, assim, só tem que se preocupar com o Báltico e o complexo de estreitos a Sul. O próprio clima não é convidativo a grandes incursões. Manteve e mantém umas boas forças armadas, com especial ênfase na Força Aérea, que foram elementos de segurança e dissuasão suficientes.

Quanto à Finlândia (independência em 1919) e para não termos de recuar ao período anterior à 2.ª Guerra Mundial, nem a este mesmo tempo de conflito, pode dizer-se que o seu natural adversário foi a Rússia, antes e depois da URSS, o que a obrigou a um estado de permanente alerta e de grande prontidão das suas forças armadas, que, aliás, não são despiciendas.

 

Com a guerra russo-ucraniana parece ter-se definido um novo quadro na Península Escandinava e, segundo as notícias que têm vindo a lume, com excessiva persistência, a culpa dessa mudança deve-se à agressão de Moscovo sobre Kiev. E, parece, tem lógica este argumento. Contudo, para mim, esta lógica é a informação político-militar que a NATO e os EUA pretendem que nós aceitemos como se fossemos burros amarrados a uma manjedoura cheia de palha.

Sempre gostei de procurar ver os problemas sociais e políticos virando-os ao contrário de modo a poder apreciar a outra face. É o que vou tentar fazer agora, neste exercício, que, admito, pode ser especulativo, mas também ele tem a sua lógica. Vejamos.

 

Como linhas antes afirmei, se admitirmos que toda a presente crise começou e se deve à invasão da Ucrânia por parte das tropas russas, parece que a Finlândia e, até a Suécia, deviam integrar-se na NATO, pois, deste modo, ao abrigo do artigo 5.º do Tratado, um ataque a qualquer dos Estados integrantes da Aliança corresponde ao ataque a todos os restantes, então, antes que Moscovo dê ordem de expansão territorial, convém estar garantido o auxílio.

Vamos pôr o problema de outra maneira.

A Rússia invadiu preventivamente a Ucrânia, porque, embora Kiev estivesse avisada por Moscovo, teimou em fazer parte da NATO, levando os russos a correr o risco verem colocado muito mais perto da sua fronteira armamento capaz de os atacar ou de os intimidar, porque a defesa tem por finalidade dissuadir o possível agressor, ainda que este nunca efective esse papel. Ou seja, tendo a Ucrânia, os EUA e a NATO seguido à risca o aviso latino, devido a Flávio Vigécio, si vis pacem para bellum ‒ o mesmo é dizer, se queres ter paz prepara-te para a guerra ‒ eles estão a potenciar uma defesa que é, em simultâneo, uma ameaça, com a agravante de aumentarem a hipótese de a Rússia ficar muito mais exposta do que se a Ucrânia se comprometesse a não autorizar bases ou armamento da NATO dentro das suas fronteiras.

Assim, a invasão da Ucrânia transforma-se numa acção militar preventiva contra um aumento de potencial militar da NATO e, consequentemente, dos EUA contra o território russo. Deste modo, deu-se aqui uma inversão do casus belli: a continuidade da política ucraniana, americana e da NATO é que espoletaram a decisão de Moscovo. Por conseguinte, daqui para a frente, quanto maior for o apoio às tropas ucranianas maior se torna a possibilidade da Rússia fazer pressão sobre as fronteiras onde a NATO não é obrigada a intervir por se tratarem de Estados não pertencentes àquela Aliança. Pode parecer inconcebível, mas a abertura de uma nova frente de combate por parte da Rússia não deixaria de ser uma forma de aliviar a pressão que tem a Sul, em especial se essa nova frente estiver mais próxima da fronteira dos EUA. A Finlândia poderia ser a solução.

 

Esta leitura diferente para o pedido de adesão da Finlândia e da Suécia à NATO dá-nos assim, a possibilidade de interpretar o movimento como uma medida defensiva dos dois Estados escandinavos, mas, ao mesmo tempo, sendo defensiva acaba ampliando a ameaça à Rússia, porque vai fechando o cerco a Ocidente, empurrando Moscovo para o Norte e para o Oriente, na direcção dos braços da China. Colocam-se, pois, as perguntas:

‒ Qual é o objectivo dos EUA, sabendo, realmente, que o apoio à Ucrânia não é o apoio a uma democracia? Sabendo que a Turquia, a Hungria e a Polónia são meros simulacros de democracias (convirá ler, da insuspeita Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia: O fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo, de 2020) por que é que os EUA querem atacar a oligarquia russa? Será que toda esta jogada estratégica visa desmembrar a União Europeia, porque a onda de choque resultante desta guerra vai reflectir-se sobre a condução da política externa de Bruxelas nas diferentes capitais da Europa, com especial peso em Paris e Berlim, daí esta imensa campanha de desinformação e de apoio emocional à Ucrânia, que nos embota o raciocínio e nos leva a acreditar sem hesitação no que vemos e ouvimos?

 

Não tenho respostas, como é natural. Não aposto, como certos comentadores, na leitura da bola de cristal, por isso, aconselho a que não se embarque nesta loucura de uma posição anti-russa e pró-ucraniana, porque há muito jogo escondido por trás de tudo o que se está a passar. Vale a pena acreditar na democracia liberal quando ela é lógica, límpida e favorável aos interesses colectivos.

15.05.22

A guerra actual e as anteriores


Luís Alves de Fraga

 

Entre o armamento que se usa numa guerra e o modo como se faz a guerra há diferenças significativas.

Na verdade, o armamento evolui à velocidade das alterações das tecnologias. Há um exemplo esclarecedor quanto a este princípio: o avião.

Foi em 1903 que se conseguiu colocar a voar com autonomia um veículo aéreo mais pesado do que o ar. Em 1908 já se estavam a adoptar os primeiros aeroplanos no Exército francês e em 1914 já Churchill preconizava a criação de um serviço de aviação autónomo do Exército e da Marinha britânicos. Em 1912 já os espanhóis, na guerra contra Marrocos, lançavam granadas de biplanos sobre as tropas marroquinas. Nas manobras francesas de 1909 não se sabia se o aeroplano devia fazer fogo a partir do ar se devia aterrar à frente das unidades de infantaria para metralhar o inimigo, descolando de seguida ou se, simplesmente, servia para fazer reconhecimentos aéreos e regular o tiro da artilharia. Eram dúvidas sobre dúvidas, mas de uma coisa se tinha a certeza: o avião ia servir como arma de guerra.

 

Ora, lendo com atenção o que deixei dito antes, percebe-se que, qualquer inovação tecnológica, ao tentar dar-se-lhe aplicação no campo de batalha, partimos sempre dos conhecimentos das guerras anteriores até acertarmos com a melhor e verdadeira aplicação. E não foi por acaso que escolhi para exemplo o aeroplano, pois tratou-se, talvez, da inovação que, do ponto de vista tecnológico, mais progrediu em tão pouco tempo. Note-se que de uma simples estrutura de madeira e lona, em 1918, em 1945, ou seja, em vinte e sete anos depois, lançou a mais tremenda e mortífera arma que o homem inventou. Foram só vinte e sete anos! Todavia, hoje, setenta e sete anos depois do primeiro bombardeamento atómico, o avião continua a ter, na generalidade, as mesmas utilidades no campo de batalha.

 

A guerra russo-ucraniana começou por reproduzir, no plano táctico, os princípios já conhecidos de acordo com os armamentos usados: destruição imediata do poder aéreo do atacado por parte do agressor, cortar ou tentar cortar a cadeia logística do invadido, dividir a acção no terreno em várias frentes de modo a dispersar as forças da Ucrânia, mudando o escalonamento das prioridades aparentes, passando de objectivos que pareciam principais para secundários, através de recuos tácticos. Não houve nada de novo na acção militar russa.

Mas, independentemente de outras razões de ordem política e estratégica, este conflito bélico ‒ que deveria ter tido uma duração reduzida em tempo ‒ começou a arrastar-se e, de repente, uma Ucrânia capaz de opor uma resistência militar mediana até que se verificasse a viragem para uma governação que desse as garantias políticas e militares pretendidas por Moscovo, tornou-se numa Ucrânia super-resistente. Qual o segredo para esta transformação tão radical?

Certamente não posso aceitar que se deva ao discurso entusiástico e patriótico do presidente que, por profissão, conhece o modo de influenciar uma audiência até lhe arrancar palmas de alegria e satisfação ou lágrimas de compaixão. Não se deve à intoxicação da opinião pública ocidental quanto às barbáries deixadas para trás pelas tropas russas (barbáries em tudo iguais às de todas as guerras ou, até, talvez, em menor escala do que noutras mais antigas). Não!

O que justifica a resistência ‒ se eu preferisse os termos em voga e entrados na vulgar linguagem, diria resiliência ‒ das tropas ucranianas é o mesmo fenómeno que se verificou na Guerra Civil de Espanha por parte dos alemães: a introdução de novos armamentos, novas tácticas experimentais e informações de combate servidas em bandeja de prata ao estado-maior em Kiev.

Está claro, todos sabemos que essas informações, essas tácticas e esses armamentos vêm directamente dos EUA; são os satélites que dizem onde estão os quartéis-generais das tropas russas empenhadas, são os drones que vigiam, fora do alcance das armas convencionais, os movimentos no terreno, são os mísseis anticarro, são os novo drones de ataque ao solo com autodestruição, enfim, é uma nova panóplia de armas e correlativos que começam a definir os contornos da guerra futura.

Esta guerra começada segundo os trâmites das guerras do passado, está a mostrar-nos os novos limites da guerra de amanhã. E nisto incluem-se, também, os voluntários ou mercenários (usados em ambos os lados).

 

Quando olho para este conflito e percebo a manobra táctica da intoxicação propagandística associada às mudanças que referi, sinto-me ludibriado por ouvir exigências constantes de recurso a tribunais internacionais para condenação dos crimes e criminosos de guerra ‒ instrumentos do passado e de uma prática antiga ‒ quando o que se está a usar são novos modos de fazer a guerra. Modos experimentais e altamente letais, por serem de uma elevada eficiência e extraordinária eficácia. Não podemos querer, em simultâneo, sol na horta e chuva no nabal.

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