Opto por apresentar partes do livro “Prisioneiros da Geografia” da autoria de Tim Marshall, editado em Inglaterra em 2016, que, partindo dos acidentes geográficos ‒ rios, mares, montanhas, planícies, vales e florestas ou desertos ‒ explica as razões por que, independentemente do regime político, os Estados, em especial as grandes potências, optam por tomar certas medidas militares, que consideram de protecção e defesa.
Espero que a leitura vos seja benéfica para tirar conclusões e desfazer preconceitos.
«Vladimir Putin diz-se um homem religioso, um grande apoiante da Igreja Ortodoxa russa. Assim sendo, é bem possível que, todas as noites, quando se deita, faça as suas orações e pergunte a Deus: «Porque não puseste montanhas na Ucrânia?» Se Deus tivesse posto montanhas na Ucrânia, a grande extensão de terreno plano que forma a Planície do Norte Europeu não seria um território tão ideal como ponto de partida de ataques repetidos à Rússia. Assim, Putin não tem alternativa: precisa de, pelo menos, tentar controlar as planícies a oeste. O mesmo acontece com todas as nações, grandes ou pequenas. A geografia aprisiona os seus líderes, deixando-lhes poucas alternativas e uma margem de manobra mais reduzida do que se possa pensar. Foi o caso do Império Ateniense, dos Persas, dos Babilónios e de outros antes deles; foi o caso de todos os líderes em busca de um terreno elevado de onde pudessem proteger a sua tribo. A terra em que vivemos sempre nos moldou. Moldou as guerras, o poder, a política e o desenvolvimento social dos povos que, hoje, habitam quase todo o planeta. A tecnologia pode parecer ultrapassar as distâncias, tanto no espaço mental como no físico, mas é fácil esquecer que a terra onde vivemos, trabalhamos e criamos os nossos filhos tem uma importância crucial, e que as escolhas daqueles que lideram os sete mil milhões de habitantes deste planeta serão, em certa medida, sempre influenciadas pelos rios, montanhas, desertos, lagos e mares que nos rodeiam a todos — como sempre o foram. Em geral, não existe um fator geográfico mais importante do que os outros. As montanhas não são mais importantes do que os desertos, nem os rios têm mais relevância do que as selvas. Em diferentes zonas do planeta, as diferentes características geográficas estão entre os fatores mais determinantes do que as pessoas podem e não podem fazer. Em termos gerais, a geopolítica estuda as formas como a política internacional pode ser compreendida através dos fatores geográficos; não apenas da paisagem física — por exemplo, das barreiras naturais formadas pelas montanhas ou das ligações proporcionadas pelas redes fluviais —, mas também do clima, da demografia, das regiões culturais e do acesso a recursos naturais. Fatores como estes podem ter um impacto importante em vários aspetos da nossa civilização, da estratégia política e militar ao desenvolvimento social humano, incluindo a linguagem, o comércio e a religião. As realidades físicas que sustentam a política nacional e internacional são, demasiadas vezes, menosprezadas, tanto em obras sobre História como em relatos contemporâneos da política mundial. Não há dúvida de que a geografia é uma parte fundamental, tanto do «porquê» como do «quê». Pode não ser o fator determinante, mas é certamente o mais ignorado. Veja-se, por exemplo, a China e a Índia: dois países colossais com populações gigantescas que partilham uma fronteira muito extensa, mas não estão alinhados política nem culturalmente. Não admiraria que estes dois gigantes se tivessem defrontado em várias guerras, mas, na verdade, tirando uma batalha que durou um mês em 1962, nunca o fizeram. Porquê? Porque, entre eles, se ergue a cordilheira montanhosa mais alta do mundo, e é praticamente impossível fazer avançar grandes colunas militares atravessando ou transpondo os Himalaias.
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A oeste dos Montes Urais fica a Rússia Europeia. A leste fica a Sibéria, estendendo-se até ao Mar de Bering e ao Oceano Pacífico. Mesmo no século XXI, atravessá-la de comboio leva seis dias. O olhar dos líderes da Rússia tem de abarcar estas distâncias e diferenças e formular as suas políticas de acordo com elas; há já vários séculos que esse olhar se projeta em todas as direções, mas concentrando-se, essencialmente, no Oeste. Quando os escritores tentam chegar ao coração do urso, usam, muitas vezes, a famosa observação de Winston Churchill sobre a Rússia, proferida em 1939: «É um quebra-cabeças embrulhado num mistério dentro de um enigma», mas poucos completam a frase, que termina assim: «mas talvez exista uma chave. Essa chave é o interesse nacional russo.» Sete anos mais tarde, ele usou essa chave para revelar a sua versão da resposta ao quebra-cabeças, declarando: «Estou convencido de que não há nada que admirem tanto como a força, e de que não há nada que respeitem menos do que a fraqueza, especialmente a fraqueza militar.» Churchill poderia bem-estar a falar da atual liderança russa, que, apesar de se encontrar agora embrulhada no manto da democracia, continua autoritária na sua natureza, ainda com o interesse nacional no seu âmago. Quando Vladimir Putin não está a pensar em Deus e em montanhas, está a pensar em pizza. Em especial, no formato de uma fatia de pizza — um triângulo. A ponta dessa fatia é a Polónia. Aí, a vasta Planície do Norte Europeu, que se estende da França aos Urais (os quais ocupam uma área de 1600km de sul a norte, formando uma fronteira natural entre a Europa e a Ásia), tem apenas 500km de largura. Vai do Mar Báltico, a norte, até aos Montes Cárpatos, a sul. A Planície do Norte Europeu abarca toda a França Ocidental e Setentrional, a Bélgica, a Holanda, a Alemanha do Norte e quase toda a Polónia. Da perspetiva russa, esta é uma espada de dois gumes. A Polónia representa um corredor relativamente estreito para o qual a Rússia poderia conduzir as suas forças armadas, se necessário, e assim impedir o avanço de um inimigo sobre Moscovo. Mas, a partir deste ponto, a fatia começa a alargar-se; quando se chega à fronteira russa, já tem mais de 3000km de largura, e é plana até Moscovo e para lá da capital. Mesmo com um grande exército, seria difícil defender esta linha em força. Porém, a Rússia nunca foi conquistada a partir daqui, em especial devido à sua profundidade estratégica. Quando um exército se aproxima de Moscovo, tem já linhas de abastecimento insustentavelmente longas, um erro cometido por Napoleão em 1812 e repetido por Hitler em 1941. Da mesma forma, no Extremo Oriente Russo, é a geografia que protege a Rússia. É difícil mover um exército da Ásia para a Rússia Asiática; não há muito para atacar além de neve, e só se consegue avançar até aos Urais. Depois, fica-se com o controlo de um pedaço gigantesco de território, em condições difíceis, com longas linhas de abastecimento e o risco sempre presente de um contra-ataque. Poderá pensar-se que ninguém pretende invadir a Rússia, mas não é essa a opinião dos russos, e com razão. Nos últimos 500 anos, foram invadidos várias vezes a partir do Oeste. Em 1605, os polacos atravessaram a Planície do Norte Europeu, seguidos pelos suecos liderados por Carlos XII em 1708, pelos franceses sob a liderança de Napoleão em 1812 e pelos alemães duas vezes, nas duas guerras mundiais, em 1914 e 1941. Sob outra perspetiva, partindo da invasão napoleónica de 1812, mas desta vez incluindo a Guerra da Crimeia de 1853-56 e as duas guerras mundiais até 1945, os russos combateram, em média, na ou nas imediações da Planície do Norte Europeu, uma vez em cada 33 anos.
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Desde então, os russos têm visto com preocupação a aproximação constante da NATO, com a adesão de países que a Rússia afirma terem assumido o compromisso de nunca se lhe juntarem: a República Checa, a Hungria e a Polónia em 1999, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia e a Eslováquia em 2004 e a Albânia em 2009. A NATO diz que nunca foram dadas tais garantias. A Rússia, como todas as grandes potências, pensa em termos dos próximos 100 anos e sabe que, nesse espaço de tempo, tudo pode acontecer. Há um século, quem poderia ter adivinhado que as forças armadas americanas estariam estacionadas a poucas centenas de quilómetros de Moscovo, na Polónia e nos Estados Bálticos? Em 2004, apenas 15 anos depois de 1989, todos os antigos estados do Pacto de Varsóvia, exceto a Rússia, estavam na NATO ou na UE. A administração de Moscovo tem estado concentrada nesse facto, e na história russa. A Rússia, como conceito, data do século IX, tendo tido origem numa federação pouco unida de tribos eslavas do Leste conhecida como Kievan Rus, baseada em Kiev e noutras cidades ao longo do Rio Dniepre, onde agora se situa a Ucrânia. Os mongóis, expandindo o seu império, atacavam continuamente a região a partir do Sul e do Leste, e acabaram por invadi-la no século XIII. A jovem Rússia reinstalou-se então a nordeste, dentro e à volta da cidade de Moscovo. Esta Rússia dos primeiros tempos, conhecida como o Grande Principado de Moscovo, era indefensável. Não havia montanhas nem desertos, e os rios eram poucos. O solo era plano em todas as direções e, do outro lado da estepe, a sul e a leste, estavam os mongóis. O invasor poderia avançar por onde quisesse, e havia poucas posições defensivas naturais a ocupar. Surge então Ivan, o Terrível, o primeiro Czar. Este pôs em prática o conceito de ataque como defesa — i.e., iniciar a expansão consolidando a sede e depois alargando-a. Isto levou à grandeza. Ali estava um homem que confirmava a teoria de que os indivíduos podem mudar a História. Sem o seu caráter, tanto de crueldade impiedosa como de visão, a história russa teria sido muito diferente. A jovem Rússia iniciara uma expansão moderada sob a liderança do avô de Ivan, Ivan, o Grande, mas essa expansão acelerou-se depois de o Ivan mais novo chegar ao poder, em 1533. Ganhou terreno para leste, sobre os Urais, e para sul, até ao Mar Cáspio, e, mais tarde, até ao Mar Negro, aproveitando assim as montanhas do Cáucaso como barreira parcial entre si e os mongóis. Foi construída uma base militar na Chechénia para dissuadir potenciais atacantes, fossem eles a Horda Dourada Mongol, o Império Otomano ou os persas. Houve contratempos, mas, no século seguinte, a Rússia avançaria para lá dos Urais e entraria na Sibéria, acabando por anexar todo o território até à costa do Pacífico, no extremo oriental. Os russos adquiriram, assim, uma zona-tampão parcial e uma região interior — profundidade estratégica — para onde poderiam fugir em caso de invasão. Ninguém iria atacá-los em força a partir do Mar Ártico, nem atravessar os Urais para chegar a eles. O seu território estava a transformar-se no que conhecemos hoje como a Rússia e, para lá chegar a partir do Sul ou Sudeste, seria necessário ter um enorme exército, uma longuíssima linha de abastecimento e ultrapassar posições defensivas. No século XVIII, a Rússia — sob o reinado de Pedro, o Grande, que fundou o Império Russo em 1721 e, depois, da Imperatriz Catarina, a Grande — lançou o seu olhar para oeste, expandindo o Império até se tornar uma das potências da Europa, movida, essencialmente, pelo comércio e o nacionalismo. Uma Rússia mais segura e poderosa tinha agora capacidade para ocupar a Ucrânia e alcançar os Montes Cárpatos. Conquistou a maior parte do que hoje conhecemos como os Estados Bálticos — a Lituânia, a Letónia e a Estónia. Ficou, assim, protegida de qualquer incursão vinda desse lado, por terra ou a partir do Mar Báltico. Formou-se, pois, um largo anel à volta de Moscovo, que era o coração do país. Começando no Ártico, descia através da região do Báltico, atravessava a Ucrânia, depois os Cárpatos, o Mar Negro, o Cáucaso e o Mar Cáspio, voltando a subir pelos Urais, que se estendiam até ao Círculo Polar Ártico. No século XX, a Rússia comunista criou a União Soviética. Por trás da retórica que proclamava «trabalhadores de todo o mundo, uni-vos», a URSS era simplesmente o Império Russo na sua expressão mais vasta. Depois da Segunda Guerra Mundial, estendeu-se do Pacífico a Berlim, do Ártico às fronteiras do Afeganistão — uma superpotência económica, política e militar, que só encontrava rival nos EUA. A Rússia é o maior país do mundo, com duas vezes a extensão dos EUA ou da China, cinco vezes a da Índia e 25 vezes a do Reino Unido. Todavia, tem uma população relativamente pouco numerosa, de cerca de 144 milhões, inferior à da Nigéria ou do Paquistão. A sua estação de crescimento agrícola é curta e é-lhe difícil distribuir adequadamente as colheitas pelos 11 fusos horários governados por Moscovo. A Rússia, até aos Urais, é uma potência europeia na medida em que faz fronteira com o território europeu, mas não é uma potência asiática apesar de fazer fronteira com o Cazaquistão, a Mongólia, a China e a Coreia do Norte, e de ter fronteiras marítimas com vários países, incluindo o Japão e os EUA.»