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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

29.06.21

Da Condição Militar

O correcto uso das palavras


Luís Alves de Fraga

 

«Subordinação, repito, e não submissão» disse, há dias, o capitão-de-mar-e-guerra, António Moura, presidente da assembleia-geral da Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA), na tomada de posse dos membros eleitos para um novo mandato, onde participo integrando o conselho deontológico, a propósito da forma de estar das Forças Armadas perante o poder político.

 

A semântica é terrível e estabelece toda a diferença entre o que se quer dizer e o que se deve dizer.

Na realidade, creio, a maioria dos nossos políticos de todo o leque partidário deve julgar ‒ embora saibam, suponho ‒ não haver diferença entre subordinação e submissão, quando falam de Forças Armadas.

Eu, quando aluno dos Pupilos do Exército, com quinze anos, um dia, em casa, conversando com o meu pai, disse qualquer coisa como: «O capitão ordenou ao inferior que (…)». O meu progenitor, então já na situação de reserva da nossa Marinha de Guerra, 1.º sargento enfermeiro, com uma recruta feita muito à pressa, no Alfeite, havia muitos anos antes, pouco dado a militarices, cortou-me rapidamente a palavra e obrigou-me a repetir a parte transcrita da frase. Obediente, como sempre fui à vontade paterna, disse novamente o que havia afirmado.

Muito sério, o meu pai declarou o seguinte, que ficou gravado a fogo, para sempre, na minha mente:

‒ Entre os seres humanos não há inferiores; há subordinados! Nenhum homem é inferior a outro.

 

Devo dizer, que o meu progenitor, antigo seminarista, distinto estudante, concorreu à Marinha de Guerra, para ser cabo-aluno de enfermagem, por mera necessidade financeira, tornando-se, depois, num excelente profissional. Ora, nas primeiras semanas de militar, em pleno Rossio, na companhia de um outro camarada mais dado às coisas castrenses, frente ao café Chave d’Ouro, que tinha um porteiro fardado, cheio de galões amarelos e cordões pendurados de um dos ombros, fez uma esgalhada continência. Interrogado pelo camarada para quem tinha sido a saudação, respondeu: «Para aquele almirante!» e apontou, com um gesto de cabeça, para o porteiro. Claro, o tempo foi-lhe ensinando aquilo que pouco sabia no começo da carreira, mas, de língua portuguesa e de conceitos humanos, conhecia o necessário para dar lições ao filho em fase de preparação para a vida.

 

Submissão e subordinação até parecem a mesma coisa, tal como inferior e subordinado, mas não são! O homem que fez a continência ao porteiro de um café, o homem que me deu o ser sabia-o, porque, para além de saber língua portuguesa, sabia outra coisa que hoje, num tempo de reivindicações de direitos e condenação de distinções, não se sabe. Sabia de Ética, de Moral, de Humanismo.

Nós, militares, somos subordinados, mas jamais seremos submissos.

17.06.21

Estratégia e imigração


Luís Alves de Fraga

 

A imigração não é, ao contrário do que os nossos órgãos de comunicação social nos fazem crer, um fenómeno de agora. Foi de imigrantes que se povoou o continente americano, em alguns casos convivendo com os indígenas e, noutros, exterminando-os. Também de imigrantes foram povoadas a Austrália e a Nova Zelândia, as ilhas desertas do Atlântico e de outros oceanos. E as razões que moveram os emigrantes continuam a ser as mesmas que trazem à Europa povos de África e do Médio Oriente, para não referir a vaga de chineses que se espalha no Velho Continente: busca de melhores condições de vida.

 

Se recuássemos na História alguns milhares de anos, perceberíamos que os europeus de agora têm origem em imigrantes vindos do Norte e do Leste movidos pelo desejo de encontrarem melhores terrenos de caça, de recolha de frutos e de boas terras para fazerem as suas sementeiras.

Tendo em atenção o que acabei de dizer, o leitor pode perguntar-se sobre as razões da mudança geradora de tanto alarme. É por aí que vou começar.

 

Do século V ao século XV ‒ limites da Idade Média ‒, na Europa, foram-se lançando as bases dos diferentes Estados que, no final do século XVIII ganharam estatuto de nações, por se ter consolidado a identidade do povo com o território e o passado histórico. Napoleão e, antes, a Revolução Francesa, deram consistência ao estado-nação que a paz de Westfália, em 1648, havia já consagrado como forma de relacionamento entre os Estados. Assim, compreende-se que, na melhor das hipóteses, há quase quatrocentos anos (ou duzentos, se tomarmos como marco perfeito o Congresso de Viena, em 1815) a identidade dos povos na Europa foi definida pelo rodar dos tempos e do sangue derramado em lutas de afirmação de soberania e de pertença. Há, por conseguinte, uma cultura nacional nos diferentes territórios onde se assegurou uma nacionalidade através de uma identificação com a História. Assentemos neste aspecto e passemos, agora, a outro: emigração europeia para o mundo.

 

Se excluirmos os Descobrimentos Marítimos portugueses e a deslocação de gente que o comércio foi impondo nos séculos XV e XVI, podemos dizer que, verdadeiramente, a colonização do continente americano na zona norte e central só começou no início da segunda metade do século XVII, deslocando ingleses, franceses e holandeses; no século XVI, o centro e sul do continente foi ocupado, segundo um método sistemático, por espanhóis e portugueses, estes no Brasil, desde 1532.

As razões que levaram às deslocações de emigrantes para o Novo Mundo foram de toda a natureza, desde a deportação à fuga por razões religiosas, até à simples aventura para ganhar dinheiro. Tem de se perceber que, em especial a colonização da parte norte do continente americano, foi feita por gente ida não só da Inglaterra como também de outros Estados europeus. Houve, assim, até por razões religiosas, logo de início, uma grande diversidade de culturas (e aqui o sentido de cultura é o antropológico e sociológico ‒ aquilo que o Homem acrescenta à Natureza ou a herança social ‒, não devendo confundir-se com erudição) que terão dado origem à formação de colónias distintas, que estiveram, mais tarde, na origem dos Estados. Mas, foi depois das guerras de independência por todo o continente que a população das Américas se diversificou pela variedade de regiões, formando Estados ou nações de imigrantes. Todos eles tinham atrás de si uma cultura que, sem deixar de lado, deixaram esbater para se integrarem nesse novo futuro, nessa nova esperança, nessa nova oportunidade. Nesse mesmo tempo a Europa consolidava, por vezes através de conflitos militares de menor ou maior envergadura, as suas nacionalidades, o sentido de pertença a grupos sociais com passados próprios e história única. E foi assim que chegámos ao final da 2.ª Guerra Mundial, em 1945.

 

Para consolidar a recuperação económica da Europa devastada, iniciaram-se movimentos migratórios dentro do Velho Continente idos, especialmente, dos países mais pobres do Sul, nos quais está incluído Portugal. Embora sofrendo alguns efeitos xenófobos, eram imigrantes europeus situados dentro da mesma cultura, definida, não pela língua, mas pelas crenças religiosas, pelos mesmos hábitos comportamentais. Os filhos desta geração de migrantes, através da escolarização e do contacto com os jovens naturais quase abandonaram os hábitos parentais e deixaram-se integrar na cultura dos Estados nacionais de nascença; os netos já não sentem ligação à pátria dos avós.

 

E como ocorreu o processo da integração no Novo Mundo? É o que vamos ver de seguida.

Tomarei como exemplo mais flagrante, por ser o mais diversificado nas origens dos imigrantes, o caso dos EUA.

Por lá, torna-se imperioso, para os que chegam, frequentar a escola para aprenderem a língua, se quiserem obter a nacionalidade terão de jurar bandeira e saber os mínimos sobre a Constituição Política e as Leis fundamentais do respectivo Estado e da União. Os filhos são obrigados à escolaridade oficial e torna-se vulgar a utilização da língua inglesa com a família. Em caso de necessidade são recrutados para o serviço militar. Na terceira geração são americanos com raros traços de ligação à cultura original dos avós.

 

Como se vê, o processo formativo das nações no Novo Mundo e no Velho Continente é diametralmente oposto. A única coisa que subsiste igual é que os movimentos migratórios se mantêm. Tão oposto que a nossa União Europeia nada tem a ver com a união dos Estados Unidos da América. Por cá impera, sobre todos os lindos conceitos de união, a prevalência da riqueza das nações.

 

Num tempo em que, por se ter conseguido estabelecer na Europa uma sociedade de abundância, é inevitável que se estabeleçam convergências de movimentos migratórios para este espaço onde, cada vez mais, os europeus abandonam para os imigrantes a execução dos trabalhos menos remunerados e socialmente menos reconhecidos. Contudo, para eles ‒ os imigrantes ‒ o nosso pior é melhor do que tudo o que deixaram para trás.

O confronto e a dificuldade de integração resultam das diversidades nacionais pré-existentes na Europa e da ausência de uma política uniforme de integração. É por isso que a migração se tornou num problema estratégico, por ser uma dupla ameaça: à cultura chamada ocidental e às culturas nacionais europeias.

 

A criação de uma rígida política de integração nos nossos valores (que já não passa pela conversão ao catolicismo) de liberdade de pensamento e expressão, de direitos, de oportunidades, de educação e de mobilidade social teria de fazer parte do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), porque, se deixadas livres, as comunidades imigrantes sentir-se-ão sempre marginalizadas, subalternizas e usadas, procurando na comunhão de desgraças o apoio para uma nova adveniente de, estando fora do seu território, não poderem progredir. Assim pode gerar-se o clima propício ao nascimento da ameaça à segurança interna.

O nosso CEDN contempla estas ameaças e estas fragilidades? Não! E não porque esse documento entende por defesa nacional tudo aquilo que, de forma directa ou indirecta, passa pelas Forças Armadas e, na verdade, para estas só deve estar reservada a parte mais sensível da estratégia nacional: a garantia da inviolabilidade da soberania da Nação.

 

16.06.21

Estratégia e Geopolítica


Luís Alves de Fraga

 

Ao longo dos séculos, os sábios quiseram estabelecer padrões onde encaixar os comportamentos individuais, do Homem, e os colectivos, das sociedades humanas.

Ainda no século XIX, até mesmo no início do século XX, no dealbar da Antropologia, buscava-se, na forma esquelética, a justificação para procedimentos socialmente louváveis ou reprováveis. Também na antiguidade, na Grécia, se definiram comportamentos sociais em razão da geografia. Os atenienses eram dados à filosofia, à retórica, às artes e ao comércio, por viverem numa região marítima e rica de alimentos, mas, em contrapartida, os espartanos, por habitarem as montanhas, onde a quantidade de alimentos não era abundante, transformaram-se numa sociedade guerreira, privilegiando o físico sobre o espírito.

Mas, foi nos últimos anos do século XIX que se começou a delinear o início de um novo conceito operacional que procurou juntar a política de cada Estado à sua geografia e ao seu comportamento na relação com as outras unidades políticas. Nasceu a Geopolítica. Foram seus fundadores Friedrich Ratzel e Rudolf Kjellén, contudo, o grande desenvolvimento teórico da Geopolítica deveu-se à conjugação de duas teorias expostas pelo almirante americano Alfred T. Mahan e o geógrafo e político inglês Halford John Mackinder. Com efeito, as obras de ambos vieram dar sentido às estratégias nacionais e explicar os comportamentos internacionais, de uma maneira que, até ao final da 2.ª Guerra Mundial (pessoalmente, arrisco afirmar que ainda hoje os seus fundamentos teóricos se situam na base das estratégias das grandes potências mundiais, pesem embora as novas interpretações atribuídas ao conceito de Geopolítica), se podiam justificar os comportamentos dos maiores Estados com base na disputa por eles enunciada.

Em síntese, o primeiro defendia que, quanto maior fosse o poder marítimo de um Estado, maior era a sua importância na definição do equilíbrio das relações internacionais, de tal modo que o domínio dos mares garantiria a liderança mundial; o segundo, defendeu e explicou que quem dominasse o centro do poder terrestre (o Heartland) dominava o mundo; sendo que o Coração da Terra se situava na Rússia para lá dos montes Urais, numa região inacessível ao poder marítimo. Teorizou, também, que os grandes confrontos se iriam dar em função de o poder terrestre procurar atingir o mar para, derrotando o poder marítimo, acabar dominando a Terra.

 

O surgimento da arma nuclear e dos mísseis intercontinentais, veio, aparentemente, alterar a validade das teses geopolíticas definidas no século XX, mas, por outro lado, as preocupações ambientais deram-lhes outro sentido, reforçando-as.

De qualquer modo, ainda está muito presente na política internacional, o confronto entre o poder marítimo e o poder terrestre, pois o domínio do mar garante o domínio do comércio global e, também (ainda que muita gente não saiba) o domínio das comunicações intercontinentais, que se continuam a fazer a partir dos cabos submarinos amarrados em zonas costeiras. Deste modo, percebe-se que o confronto entre os EUA e a Rússia (antes URSS) não passa por questões de ideologia política, mas por questões estratégicas, cujo fundamento encontra justificação na Geopolítica. Percebe-se, também, que o surgimento da China como potência marítima com forte penetração na área do poder terrestre da Rússia é, em simultâneo, uma ameaça para a sua vizinha do Norte e para os EUA.

 

Expostas as linhas gerais desta relação, posso dizer que pensar Estratégia sem pensar Geopolítica é uma aberração, pois desarticulam-se elementos indissociáveis. Assim, pensar uma qualquer estratégia nacional sem levar em conta os factores que acabei de expor é um mero exercício sem sentido. Essa é a razão de, no Conceito Estratégico Nacional (CEN), se dar extraordinária ênfase à aliança com a NATO, atendendo à posição geopolítica do país. Todavia, amarrar o nosso destino à NATO e à UE é, de certa forma, geopoliticamente, contraditório. Vou tentar explicar.

 

Uma estratégia nacional não pode deixar de levar em conta a história do grupo social a que está ligada. Assim, a nossa História girou à volta de três ou quatro pilares fundamentais: a afirmação ibérica, a navegação e comércio de além-mar, a aliança com a Inglaterra e a quase total ausência de participação em conflitos europeus acima dos Pirenéus. Isto quer dizer que a nossa estratégia nacional, até ao fim do terceiro quartel do século XX, mesmo incluindo o período de integração na NATO, nada ou quase nada teve de europeia.

A dedução imediata e lógica, porque geoestratégica, aponta para uma nova estratégia nacional que tenha em conta as problemáticas peninsulares e as marítimas, no nosso mar (Madeira e Açores) e no Atlântico que se estende para Sul, em regime de cooperação e defesa com os países africanos ribeirinhos lusófonos ou não.

Uma estratégia nacional apoiada nestes esteios está em consonância com a nossa História e a Geopolítica a que estamos ligados.

Fora da Península, as problemáticas que mais nos podem afectar são as africanas e insulares; estas, somente porque as nossas ilhas são verdadeiras plataformas terrestres no meio do Atlântico Norte.

Deste modo, e como conclusão, a ligação portuguesa à Europa deveria ser exclusivamente comercial, aproveitando a nossa posição geográfica para servir de placa giratória entre o continente e a África Ocidental; por outro lado, deveria ser uma negação de acesso da Espanha mediterrânica ao Atlântico (para isso, ela tem a costa da Galiza, por sinal, uma má costa para a navegação dada a proximidade ao Golfo da Biscaia e ao constante mau tempo que por ali se faz sentir), cortando e dificultando o trânsito pela zona mais fácil, que é a planície alentejana.

 

Será que o nosso CED está bem definido em concordância com a História e a Geopolítica?

Deixo a pergunta para os interessados analisarem.

15.06.21

Estratégia e mercado


Luís Alves de Fraga

 

A cada passo tropeçamos com a palavra “estratégia” dita a propósito e a despropósito.

Hoje, o meu objectivo é explicar o que é uma estratégia (preferencialmente, para se compreender a estratégia nacional), como se traça e o que é necessário para pô-la de pé.

Acho que o melhor processo para conseguir, em poucas palavras, levar a bom porto o meu propósito é pessoalizar a explicação.

 

Suponha o leitor que é o principal proprietário de uma empresa de cosméticos de dimensão média/superior, num mercado altamente concorrencial. Para além de sobreviver, o seu objectivo é ampliar a quota de mercado, colocando-o no topo ou muito próximo dele.

Tem de traçar uma estratégia e, para isso, começa por fazer um ponto da situação: quem são os fabricantes de cosméticos? Onde se situa realmente na escala dos produtores? Quais são as suas possibilidades de saltar para o campo dos vencedores? Quais são as suas fragilidades perante os concorrentes? Que medidas tem de tomar para se defender da e se opor à concorrência? Com que aliados pode contar? Como pode inovar os seus produtos e como pode impô-los no mercado? Que gastos tem de fazer? Que crédito tem no mercado financeiro? Qual o sentido das investigações do seu laboratório? Que vendedores tem de ter? Que género de publicidade deve usar?

 

Feita a análise e obtidas as respostas essenciais, o leitor terá de tomar medidas. Vamos ver as mais imediatas.

Admitir, sem pesos de consciência, que tudo é permitido quando se quer atingir objectivos concorrenciais, o mesmo é dizer, objectivos que são disputados por muitos mais candidatos.

Criar um bom gabinete de publicidade e marketing, dividido em várias secções: uma para a publicidade, outra para o marketing, outra para a recolha de informações sobre a actividade da concorrência e outra para a difusão de notícias falsas.

Criar um bom departamento financeiro, com excelentes relacionamentos bancários e outras formas de financiamento.

Criar um bom laboratório de investigação e desenvolvimento (I&D) com duas finalidades separadas: analisar os produtos da concorrência, detectando-lhes as falhas e as vantagens, que serão encaminhadas para a secção de recolha de informações; inovar os seus produtos.

Criar um estado-maior onde se coordena toda a actividade da empresa.

 

Concluída toda esta fase, o leitor encarrega o estado-maior de traçar uma estratégia agressiva e este passa à acção, através de agentes infiltrados na concorrência, procurando saber tudo o que for possível sobre os outros produtores de cosméticos; com o apoio do sector financeiro, compra as empresas mais frágeis do mercado da cosmética para fazer desaparecer algumas e passar para outras as linhas de produtos menos interessantes; lançar nas redes sociais e nos órgãos de comunicação social notícias descredibilizando empresas concorrentes, embora com algum fundamento de verdade, usando para isso ou perfis falsos ou agentes comprados; infiltrar investigadores de confiança nos laboratórios das empresas cosméticas com duas finalidades: conhecer os avanços que estão a fazer e boicotar-lhes a pesquisa; através de manobras financeiras criar no mercado empresas que comercializem produtos das outras marcas, mas sobre os quais introduz ligeiras adulterações; pagar a agentes com mazelas dermatológicas para acusarem as marcas concorrentes da causa dessas mazelas; desenvolver campanhas de marketing, criando uma imagem de beneficência para apoio de causas sociais, ao mesmo tempo que procura gerar ondas de solidariedade e de comportamentos inatacáveis para a sua empresa. Em cada dia que passa, o estado-maior deve refinar mais os modos de actuação.

Claro que o estado-maior não desconhece que a concorrência pode usar os mesmos métodos contra a sua empresa, simplesmente, por acções feitas na sombra procurará anular, legal ou ilegalmente, as manobras da oposição.

Dentro de pouco tempo o leitor terá conquistado o domínio do mercado ou estará em condições de dialogar com a concorrência, partindo de uma posição de igualdade ou, até, com uma ligeira margem de superioridade.

 

Imagine que a empresa é um Estado de direito, democrático e onde, supostamente, impera a liberdade de opinião e de expressão. O processo de actuação será em tudo idêntico, sempre feito sob a capa da maior transparência, de legalidade e de participação social.

Percebe, agora, a razão de haver duas morais em política e em diplomacia? Percebe que a verdade política nunca é exactamente aquilo que parece? Que a democracia é o melhor dos sistemas políticos porque até permite que eu esteja a escrever este texto, desmontando os desvios à verdade e à inexistência de uma ética política? Que, em ditadura eu, ao dar publicidade a este texto, seria preso e acusado de tudo o que o tribunal entendesse, mas, em democracia, simplesmente estou referenciado como alguém que diz o que não é conveniente ser dito? Percebe agora que a política nacional ou internacional é, em quase tudo, igual à economia de mercado, pela simples razão de que o comando das três é a concorrência, identificada através de objectivos? Percebe que todos os jogos concorrenciais, onde os valores em discussão são muito elevados, têm o seu lado limpo e o seu lado sujo? Pense na sua vida pessoal… Quantas vezes teve de mentir, de “jogar baixo” mesmo com os seus pais ou com o seu parceiro para a vida, com os seus irmãos e os seus melhores amigos? Sabe qual a razão desta desonestidade honesta? Porque tem objectivos confessáveis e inconfessáveis, porque tem ambições cheias de boas intenções e outras cheias de más intenções, porque há em si, como em mim e como em todos nós, dois lados: um que faz de nós boas pessoas e, outro, más pessoas, contudo, isto de bom ou mau só se justifica em função do que socialmente se convencionou ser bom e mau. Nas ditaduras estes jogos estratégicos são sempre maus e indesculpáveis, mas nas democracias, sendo igualmente maus, são desculpáveis, porque, supostamente, são escrutináveis. Somente isso!

 

E pronto, poderei voltar ao assunto da estratégia, mas será para o relacionar com outros aspectos.

14.06.21

Estratégia nacional, política internacional, e estado de direito


Luís Alves de Fraga

 

Tenho procurado desenvolver alguma pedagogia realista sobre as práticas seguidas na execução das estratégias nacionais. Sei que, por vezes, choco os meus leitores ao desnudar algumas práticas estratégicas, em especial, ligadas às informações políticas ou com interesse político nacional ou internacional. É que há uma imensa diferença entre as regras de vida social e as da vida desse submundo que é o do secretismo da estratégia e das informações.

O exemplo que me ocorre, para ser compreendido por todos, é o que advém da socialização do cidadão e o da ressocialização do militar. Vejamos.

 

É crime grave matar ou agredir com violência alguém que esteja em conflito connosco; é feio exibir capacidades de violência no nosso dia-a-dia. Tudo isto está contemplado nos códigos de conduta social e nos códigos jurídicos. Pois bem, quando um jovem assenta praça nas fileiras militares toda a instrução que lhe vai ser ministrada, em resumo, ensina-o a matar e a não se deixar morrer e a desenvolver capacidades de agressividade, que ponham em risco a vida dos inimigos, salvaguardando a sua.

Ninguém, presumo, põe em causa este modelo de Forças Armadas; fazê-lo era admitir a total inutilidade dos exércitos.

 

Se compreendido o exemplo anterior, podemos partir para a compreensão de que uma coisa é a relação aparente entre os Estados, harmoniosa, menos ou mais, e outra coisa são as operações desenvolvidas na sombra, longe dos olhares dos cidadãos comuns, para garantir e gerir a relação mais ou menos harmoniosa entre os Estados.

A relação harmoniosa, mais ou menos, entre os Estados rege-se pelos princípios do Direito Internacional; as sombrias operações de manutenção da relação harmoniosa, mais ou menos, entre os Estados regem-se por um único princípio: o interesse nacional, que é sempre egoísta e sem laivos de altruísmo. O interesse nacional define a estratégia nacional, ou seja, o modo de realizá-lo.

O instrumento usado para alcançar a defesa do interesse nacional assenta na recolha constante de informações de toda a natureza sobre os parceiros ‒ amigos, concorrente ou oponentes ‒ do Estado. Toda a informação é importante, porque a vida é uma constante mudança e desenvolve-se à volta de oportunidades. É a identificação antecipada de uma oportunidade que vai permitir anular uma vulnerabilidade ou reforçar uma capacidade.

As informações colhem-se através de uma rede de informadores ou por troca de favores entre informadores. O mundo das informações e, consequentemente, dos informadores, tem uma ética que em nada ou quase nada corresponde à ética das democracias ou sequer à das autocracias. Há amizades entre quem devia ser inimigo e inimizades entre quem devia ser amigo. É um mundo de troca de favores, de traições, desculpas e de acusações que nos escapam completamente, porque tudo é ditado pelo egoísmo dos Estados e dos interesses nacionais.

 

Há protocolos de troca de informações que nos ultrapassam e ultrapassam as normas e as leis estabelecidas, mas, só assim se conseguem estabelecer os precários equilíbrios nas relações internacionais, que vão muito para além das civilizadas cimeiras de chefes de Estado, de chefes de governos e de encontros de diplomatas. Todo este aparato civilizado tem por trás de si um outro obscuro, escorregadio e traiçoeiro, que, propositadamente não vem ao conhecimento público, porque, se viesse, a harmonia seria muito menor e o conflito seria a palavra do dia.

 

Quem estuda estratégia e segurança, nas vertentes práticas, sabe que este meu discurso é verdadeiro, mas pouco ou nada compreensível pelo comum dos cidadãos que se, o vivessem no dia-a-dia, não conseguiam dormir noites tranquilas.

Tudo isto é controverso, mas esconder a cabeça na areia e fazer de conta que nada disto se passa é acreditar no Pai Natal, na Bela Adormecida e em tantas outras ficções que tornam o sono das crianças num momento de paz, amor e tranquilidade.

11.06.21

Liberdade e informações

(A estratégia nacional)


Luís Alves de Fraga

 

Mais um caso com características de escândalo político veio à boca de cena da comunicação social: informações prestadas à embaixada russa sobre a identidade da actividade de cidadãos russos frente ao edifício daquele Estado em Lisboa.

Desta vez, o Cristo a crucifixar chama-se Fernando Medina e é presidente da câmara municipal. O homem já veio pedir desculpas e assumir um erro e mais isto e aquilo que, bem vistas as coisas, não constitui um erro do edil ou dos serviços.

Mais uma vez, porque os órgãos de comunicação social e todos nós confundimos liberdade com devassidão e segurança com inconfidência, se faz uma tempestade num copo de água por causa de uma coisa que passa pelo âmbito da estratégia nacional e acontece em todos os Estados que colocam à frente de tudo os seus interesses.

 

Comecemos pela liberdade e a devassidão.

O uso da liberdade não passa por fazer tudo o que se julga ter direito ou tê-lo efectivamente sem que desse direito advenham consequências. Ter liberdade de expressão do pensamento não passa por poder dizer tudo o que se pensa. Nas ditaduras ‒ e nós cá, no tempo do fascismo, não podíamos dizer TUDO o que pensávamos; podíamos dizer algumas coisas pelas quais éramos passíveis de ser acusados judicialmente, mas outras havia que nem quase pensar nelas podíamos ‒ a liberdade é altamente limitada na expressão sob qualquer forma. Nas democracias a liberdade existe para se poder dizer tudo, mas sujeito às consequências que daí possam advir nos termos da Lei, das convenções ou das conveniências. Deste modo, a liberdade democrática é adulta ao contrário da liberdade infantil ou infantilizada das ditaduras.

Dito isto, passemos ao caso que anda na boca de toda a gente: a manifestação frente à embaixada da Rússia.

 

Manda a Lei que, para fazer uma manifestação pública se tem de dar conhecimento à autoridade competente, sendo que se têm de identificar os responsáveis pela convocação da manifestação. Quer dizer, há liberdade, mas há, também, quem se responsabiliza pelo uso desse direito.

Assim, não se diga que não há liberdade! Não se diga que não se está num estado de direito, porque o Direito contempla a responsabilidade.

Daqui, conclui-se que o uso da liberdade de manifestação não obriga a qualquer tipo de confidencialidade. Quem quer manifestar-se tem de levar em conta que está a exercer um direito que tem, como contrapartida, a exposição pública. Se não quer ser identificado, não vá à manifestação!

 

Passemos à segurança e inconfidência.

É obrigação do Estado garantir a segurança dos seus cidadãos e, até, daqueles que o não são. A segurança é um dos objectivos estratégicos dos Estados. Mas, notemos, de TODOS os Estados.

Ora, num mundo cada vez mais pequeno, cada vez mais fácil de dar guarida a meliantes que possam atentar contra a segurança de todos nós, tem de haver um excelente serviço de informações que está SEMPRE por trás da segurança.

Dada a globalidade da insegurança, cada vez mais, os serviços de informações têm de conhecer as AMEAÇAS que se podem espoletar contra o respectivo Estado. Tem, por conseguinte, de haver troca de informações, desde que nessa troca haja vantagens para os Estados envolvidos.

Estamos no domínio da estratégia nacional e, consequentemente, no do interesse nacional.

 

A câmara de Lisboa dá conhecimento às embaixadas estrangeiras ‒ será que a todas? ‒ do nome dos organizadores das manifestações que se fazem frente aos edifícios e, se calhar, mesmo contra o Estado em causa, ainda que o local da reunião não seja tão identificável. É a câmara a fazê-lo por um motivo burocrático, que denota toda a ingenuidade do nosso serviço de informações e da pouca importância que se dá à estratégia nacional. Fenando Medina já pediu desculpa e, creio, já informou que, de futuro, só a Polícia de Segurança Pública (PSP) será informada dos nomes dos organizadores!

O que ele não disse, porque não o pode dizer, é que a PSP dará conhecimento dessa informação a quem de direito, que a fará chegar às embaixadas que muito bem for determinado por quem controla os serviços de segurança.

O motivo para assim proceder resulta de um único imperativo: troca de informações: se queremos saber alguma coisa sobre a actuação das máfias russas, em Portugal, temos de dar à Rússia aquilo que só ela sabe se lhe interessa ou não!

Isto é estratégia nacional, porque é interesse nacional e segurança de todos nós. Mas o estardalhaço que os órgãos de comunicação social, os comentadores de serviço e os juristas de ocasião fazem é a prova de que nada sabem de estratégia, nem de objectivos nacionais, nem de segurança.

É com coisas destas que o ministro da Defesa Nacional se deve preocupar e informar transversalmente os seus colegas de governo. É isto que se deve explicar no ensino secundário a todos aqueles jovens que vão, dentro em pouco, ser cidadãos de corpo inteiro. Mas isto só se consegue ensinar quando se integrar que o interesse nacional não está em pertencer a esta ou àquela organização internacional, mas em garantir a segurança, o bem-estar e a integridade do Estado português.

11.06.21

A Espanha e o teste


Luís Alves de Fraga

 

Dizia o povo que, quando o cão é tinhoso todos lhe atiram pedras! Lembrei-me da frase por causa da inesperada notícia de, para passar a fronteira terrestre de Portugal para Espanha, Madrid ter exigido um teste ao Covid 19, ou prova de vacina ou prova de que já se tinha contraído a doença. Isto foi ontem. Caiu entre nós como uma bomba.

O nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, parece-me, em declarações públicas abriu a porta a uma saída airosa do Governo vizinho: “Deve ter sido erro da Direcção Geral de Saúde de Espanha!”

Hoje de manhã, depois de uma intensa noite de conversações, confirmou-se o vaticínio de Santos Silva: Madrid culpou a sua DGS e repôs de imediato a situação anterior: mera vigilância das fronteiras. Claro, em Lisboa, fez-se saber que o nosso Governo havia ameaçado com medidas retaliatórias.

O interesse de toda esta tempestade num copo de água podia ficar por aqui e nós nunca iríamos perceber nada do que se passou no Governo de Madrid ou, pelo menos, passou na cabeça dos ou de alguns governantes espanhóis.

Porque este é um dos temas que entra naquilo que, em Estratégia, se chama interesse nacional, vou tentar analisá-lo à luz do que se pode deduzir (notem os meus críticos, eu digo deduzir, pois estas coisas passam por patamares de decisão onde nós, comuns cidadãos, não temos cabidela).

 

Primeiro ponto a analisar: o turismo espanhol.

Muitos de nós não imagina, mas o turismo interno em Espanha é imenso. Um fim-de-semana alargado leva espanhóis a sair de casa para irem visitar o seu país. Assim, esta indústria alimenta-se bem com a sua própria movimentação interna.

Depois, há muitos anos, em Espanha sabe-se gerir o turismo e os turistas ‒ sejam eles de que nacionalidade forem ‒ para os levarem a ver o que eles, os espanhóis, entendem que deve ser visto (eu disse: “eles, os espanhóis, entendem que deve ser visto”).

Ocorre, ainda, que as praias mediterrânicas de Espanha se enchem de espanhóis e de turistas europeus.

Segundo ponto a analisar: qual é, neste momento, o interesse espanhol.

Porque a Espanha não pôs os ovos todos no mesmo cesto, o turismo é uma boa fonte de rendimento, mas não é a única e, talvez, não seja a principal, embora esteja no grupo das mais importantes. Todavia, em função da pandemia, tudo o que vier à rede é peixe, donde, o interesse espanhol vai no sentido de fixar no seu território todo o turismo.

 

Passemos a Portugal.

O turismo, quase única fonte de boas receitas financeiras, com a atitude da Grã-Bretanha, está em crise profunda. Assim, qual é o interesse nacional português para este sector? Trazer para o país o maior número possível de turistas! Ora, como nós por cá só agora, parece, estamos dispostos a fazer grande turismo interno ‒ ainda que à custa de sacrifícios consequência dos nossos salários baixos ‒ temos de agarrar os turistas espanhóis, que, mesmo aqui ao lado, usufruem de salários bastante mais altos, gerando-lhes a possibilidade de dar um salto ao Porto, a Coimbra, a Lisboa e muitos saltos ao Algarve.

Nesta perspectiva, Portugal, através de uma fragilidade, é uma ameaça para Espanha, dado tornar-se um destino atractivo para os nuestros hermanos, reduzindo-lhes o turismo interno.

Solução de Madrid: impor a quem entra em Espanha, ido de Portugal, as medidas anunciadas. Medidas que não visavam os portugueses (para além das populações raianas), mas sim os seus nacionais que por cá passassem uns dias ou, se calhar, até uma poucas horas.

A isto chama-se estratégia, porque identifica ameaças, que pareciam impensáveis, e adopta medidas de defesa de interesses, que surgem como ameaças para quem só tem fragilidades.

 

Percebe-se que a diplomacia nacional não teve nem alcançou vitória nenhuma perante o Governo de Madrid, limitou-se a estender a mão e mendigar as esmolas turísticas dos espanhóis. Teria sido diferente se, como resposta imediata, pusesse em vigor medidas que fossem direitas a uma fragilidade espanhola e levassem Madrid a recuar. Mas isto só consegue fazer quem tem forças de alguma natureza!

 

Claro, tudo isto é uma dedução pessoal, desmascarável facilmente, embora só seja desmascarável quem anda mascarado…

06.06.21

O Conceito Estratégico de Defesa Nacional


Luís Alves de Fraga

 

O Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) é um documento (o último) datado de 2013 que, muito provavelmente, no máximo, menos de 1% da população portuguesa leu na íntegra ou na parte. Tem a forma de uma Resolução do Conselho de Ministros com o número 19, foi publicado no Diário da República n.º 67/2013, no dia 5 de Abril, tem 19 páginas e foi elaborado no Governo de Passos Coelho.

Pela sua importância, devia ser a pequena bíblia de todos os governantes. Uma bíblia para ser lida à noite, antes de dormir e antes de todas as reuniões do conselho de ministros. Era uma forma de evitarem fazer muitas asneiras de lesa-pátria.

Mas é um documento com graves erros, algumas incorrecções e bastas lacunas.

Por hoje, procurarei realçar o que considero mais relevante em matéria de crítica.

 

Logo de início diz-se:

«Os valores e os interesses nacionais estão definidos na Constituição e na Lei de Defesa Nacional. E resultam em compromissos internacionais do Estado, como a Carta das Nações Unidas, o Tratado do Atlântico Norte e os tratados da UE

Indo à Lei de Defesa Nacional (LDN) lê-se:

«1 - A defesa nacional tem por objectivos garantir a soberania do Estado, a independência nacional e a integridade territorial de Portugal, bem como assegurar a liberdade e a segurança das populações e a protecção dos valores fundamentais da ordem constitucional contra qualquer agressão ou ameaça externas.

2 - A defesa nacional assegura ainda o cumprimento dos compromissos internacionais do Estado no domínio militar, de acordo com o interesse nacional

 

Das transcrições sobressaem três aspectos fundamentais: um, a estratégia nacional tem de estar de acordo com a Constituição Política; dois, tem de aceitar como essenciais os compromissos com a Carta da ONU, com a OTAN e com os tratados da União Europeia; três, garantir a liberdade e a segurança contra qualquer agressão ou ameaça externas. Assim, o terceiro aspecto referido está condicionado pelo segundo: a nossa liberdade e segurança estão “amarradas” à ONU, à OTAN e à UE.

Se continuarmos a ler o CEDN vamos ver que os eixos principais de todo o conceito são estas três organizações multinacionais, com especial ênfase nas duas últimas. Para não se duvidar, transcrevo o seguinte pedaço bem elucidativo:

«Os interesses nacionais (…) tornam necessária a sua integração numa rede de alianças estável e coerente. A UE e a OTAN são, assim, vitais para a segurança e defesa nacionais, bem como para a modernização e prosperidade de Portugal. Os interesses nacionais exigem uma maior coesão e solidariedade no seio da UE e da OTAN, o reforço da parceria estratégica entre estas duas organizações, bem como entre a Europa e os EUA

Resumindo, o interesse nacional só tem existência dentro daquelas organizações em estreita ligação com os EUA!

 

Para mim, bastam estes trechos para considerar que tudo o mais que vem tanto no CEDN como na LDN nega o princípio que diz defender: a independência, a segurança e a defesa nacional, porque o interesse nacional tem de levar em conta o sagrado princípio da soberania nacional.

Sei que é da mais elementar regra diplomática não colocar em causa os compromissos internacionais assumidos, mas o que condeno é a forma como se redigiu o documento, pois, ao dizer que a UE e a OTAN são vitais, está-se a declarar uma incapacidade total e pior do que isso, está-se a não admitir o conflito de interesses entre aquelas duas organizações e Portugal. E isto é tanto mais grave quanto ambas são multinacionais nas quais os interesses de cada nação se podem confrontar, sobrepondo-se uns aos outros, o que acaba por colocar os interesses nacionais portugueses ao sabor das vitórias conseguidas na luta entre os restantes interesses dessas organizações. Quer dizer, Portugal aceita ser o “pião das nicas”, o “enjeitado”, esperando receber apoio, seja de quem for, quando dele carecer.

 

Procuremos, agora, perceber quais são os interesses e valores constitutivos do património permanente nacional que devem ser defendidos a todo o transe:

«No quadro das políticas de segurança e defesa nacional estão definidos como objetivos permanentes, garantir: a soberania do Estado, a independência nacional, a integridade do território e os valores fundamentais da ordem constitucional; a liberdade e a segurança das populações, bem como os seus bens e a proteção do património nacional; a liberdade de ação dos órgãos de soberania, o regular funcionamento das instituições democráticas e a possibilidade de realização das funções e tarefas essenciais do Estado; a manutenção ou o restabelecimento da paz em condições que correspondam aos interesses nacionais; o fortalecimento das capacidades de coesão da comunidade nacional, de modo a que possa prevenir ou reagir pelos meios adequados a qualquer agressão ou ameaça externas

 

De acordo com o que explicitei antes, tudo isto, afinal, depende da boa vontade da UE, da OTAN e da boa relação que conseguirmos ter com os EUA. Mas, tal coisa não pode ser dita assim, com tanta crueza; então, diz-se de outra forma, evidenciando os apoios do Estado português para defender a sua estratégia nacional.

Voltemos ao CEDN:

«Na prossecução destes valores e interesses nacionais destacam -se, na estratégia nacional, como elementos essenciais:

— A diplomacia portuguesa, para a realização da estratégia na vertente internacional. (…).

— As Forças Armadas portuguesas, para consolidar Portugal no seu estatuto de coprodutor de segurança internacional. (…).

— A promoção da prosperidade dos portugueses, através do desenvolvimento das capacidades, materiais e imateriais, do país e da redução das suas vulnerabilidades e dependências. (…).

— A restauração da estabilidade financeira e do crescimento económico – sustentável e gerador de emprego – como indispensável para reforçar a segurança nacional. (…).»

 

Julgo não precisar de explicar muito mais para se perceberem as profundas contradições do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), pois estamos, declarada e evidentemente, perante uma pescadinha de rabo na boca. Repare-se:

A diplomacia portuguesa está enfeudada às organizações já referidas, as Forças Armadas, cada vez mais, estão incapazes de defender seja o que for, para além de participarem com pequenos contingentes militares em operações de paz no estrangeiro, a promoção da prosperidade dos portugueses está dependente dos tratados da UE e dos investimentos que o estrangeiro aqui fizer, pois venderam-se as grandes e estratégicas empresas ao capital internacional e, por fim, a restauração da estabilidade financeira e o crescimento económico estão amarrados ao euro, ao Banco Central Europeu e às suas políticas e o crescimento económico é limitado pelos constrangimentos europeus.

 

Ora, digam o que disserem, o ministro da Defesa Nacional e o Primeiro-ministro deviam ter muito mais com que se preocupar, como acabo de demonstrar, do que com a reorganização do comando superior das Forças Armadas! Muito mais, a começar por saber impor os interesses verdadeiramente nacionais nos fóruns onde se discute a política europeia e mundial.

04.06.21

O assessor do ministro e a Estratégia Nacional


Luís Alves de Fraga

 

Bruno Cardoso Reis, nome que agora se tornou conhecido de alguns portugueses por causa da polémica proposta do ministro da Defesa Nacional, por ser autor de um texto publicado pelo Instituto de Defesa Nacional (IDN) no qual vem em auxílio de Gomes Cravinho, é também assessor daquele membro do Governo, e, para além disso, a ele se deve um livrinho intitulado Pode Portugal ter uma estratégia?, dado à estampa, em 2019, através da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Mas, quem é Bruno Cardoso Reis?

 

Vasculhando-lhe o currículo visível na Internet, sabe-se que, em Portugal, é licenciado em História, pela Universidade de Lisboa (1995) e, mestre em História Contemporânea, pela mesma universidade (2000) ‒ acrescente-se que sob a orientação de António José Telo, o que, para mim, coloca algumas dúvidas metodológicas ‒ e, em 2003, na Universidade de Cambridge, obteve novo grau de mestre em Historical Studies e, logo de seguida, em 2008, agora na School of Social Sciences and Public Policy, King’s College London, tornou-se doutor em War Studies, que, traduzido à letra, será doutor em Estudos da Guerra, mas, entre nós, apresenta-se como doutor em Segurança Internacional (?).

Fomos mais longe e, de um currículo recente, sabemos que é autor de dez artigos publicados em revistas científicas (nacionais e internacionais), de dois livros (um dos quais é o pequeno volume já referenciado), de cinco capítulos em livros diversos, de um outro artigo numa publicação sem matriz especial, que apresentou cinco comunicações em eventos científicos e foi (é?) editor de uma revista científica.

Aqui temos, em linhas gerais, o esquisso do labor intelectual deste assessor, que é também, professor convidado do ISCTE.

Percebe-se que, se estivéssemos no século XVIII, ele seria um estrangeirado, o mesmo é dizer alguém que se identifica muito com o pensamento estranho a Portugal e se arvora em veículo das ideias que se defendem lá por fora. Mas estamos no século XXI, num tempo em que a paroleira nacional aceita como muito bons todos os que apresentam graus académicos conseguidos em instituições universitárias estrangeiras, com clara desvalorização dos que os obtém nas congéneres nacionais.

De certa maneira ‒ e não é por acaso ‒ lembrei-me do bacharel em Direito (feito doutor ao abrigo de uma lei ‒ § único do Art. 92.º do Decreto 3370-C de 15 de Setembro de 1917 ‒ capaz de converter em mestre um simples aprendiz) António de Oliveira Salazar (também Alves da Silva por pseudónimo), que escreveu uma série de artigos no jornal católico Novidades sobre finanças públicas, conseguindo endrominar os militares conservadores, que fizeram o 28 de Maio de 1926 (para pouca coisa mais tinham saber), que o elevaram à condição de ministro das Finanças com poderes ditatoriais. Nessa época, os doutores eram gente de ciência neste país de analfabetos!

 

Mas deixemo-nos de divagações e voltemos a Bruno Cardoso Reis e ao seu livrinho Pode Portugal ter uma estratégia?, publicado em Junho de 2019.

Com 13 centímetros de largura, 20 de altura e 111 páginas de texto, através de uma análise breve da História de Portugal, procura evidenciar, usando, às vezes, caminhos errados ou distorcidos, a constância de uma grande estratégia ‒ pessoalmente, prefiro chamar-lhe estratégia nacional, e não é despicienda a razão da minha escolha ‒ portuguesa.

Talvez o mais grave erro que comete do ponto de vista do domínio da gestação da estratégia resulte do facto de aceitá-la como produto acabado ao contrário de lhe explicar a verdadeira origem.

Realmente, para que haja estratégia têm de coexistir antes dois elementos básicos e seminais: um conflito, declarado ou potencial, e um objectivo ou, se lhe quisermos dar outra designação, um interesse. Só quando se conjugam estas duas condições é que se pode começar a definir uma estratégia.

Para se falar da estratégia nacional portuguesa (ou grande estratégia) têm de se pesquisar os interesses e os conflitos. A estratégia não nasce da vontade de um poder ‒ seja o monarca, o príncipe, o governo, o parlamento ou o comité central ‒ nasce de vontades colectivas que têm em si mesmas um projecto ou aderem a um que lhes seja interessante.

Ora, a grande falha de Bruno Cardoso Reis, é a de, em última análise, admitir que a grande estratégia ou estratégia nacional nasce num órgão de poder, seja governo, presidente, comité central, parlamento ou ministério da defesa! Ele esquece que o sustentáculo desse órgão de poder está condicionado, no fim da linha, pela geografia e pela vontade de quem executa a estratégia: os homens que nada sabem desse assunto. Foi por causa disso que a URSS desapareceu, mas não desaparece a luta entre o poder terrestre e poder naval na Rússia; foi por causa disso que houve a descolonização portuguesa, foi por causa disso que Napoleão foi derrotado já depois de ter voltado da ilha de Elba, foi por causa disso que os EUA tiveram de sair do Vietnam. E continuaria sem fim a referir falhanços estratégicos que este autor considera que foram traçados pelo poder, tivesse ele a forma política que tivesse.

 

O mais curioso de tudo é que Bruno Cardoso Reis com o livrinho de 2019, conseguiu vender a ideia, pelo menos a Gomes Cravinho e, por maioria de razão, ao almirante Silva Ribeiro, que, por certo, têm apoio em mais alguns entendidos nestas coisas de estratégia nacional.

‒ E qual foi a razão para ter vendido bem este produto?

‒ Muito simples! Demonstra que é necessário dar recheio ao Ministério da Defesa e que é necessário criar um órgão, ao nível do poder executivo, que tenha, à nossa escala e dimensão, as funções do National Security Council (p. 84).

Claro que é difícil não concordar com esta ideia, mas o que me leva a estar em oposição ao teórico Cardoso Reis é o facto de ele entender que a nossa grande estratégia ou, para mim, estratégia nacional tem de estar dependente da estratégia da NATO e da da União Europeia, quando se for capaz de definir uma, englobando todos os Estados! Só assim se justificam as afirmações do ministro quando critica os velhos generais e os acusa de estarem presos ao passado em vez de olharem para o futuro.

 

O erro do ministro, do seu assessor Cardoso Reis e de todos os seus conselheiros é um só: aquele de enforma a obra a que me venho referindo: uma estratégia nacional ou grande estratégia define-se não em função da vontade de um órgão ou de uma pessoa, mas sim em função do interesse nacional que está plasmado nas ameaças declaradas ou latentes e nos objectivos nacionais.

Ora, estes objectivos têm, imperiosamente, de ser nacionais, ou seja, tem de representar a média da vontade da Nação, e a Nação somos todos nós e jamais os burocratas do Restelo, da NATO e de Bruxelas!

Nunca ninguém nos auscultou sobre a manutenção na NATO e sobre a adesão à CEE, depois à União Europeia e, por fim, à moeda única!

Estou farto de ser enganado pelos políticos nacionais que, agora, até se propõem reduzir a influência dos generais chefes dos estados-maiores das Forças Armadas para centrar num órgão distante daqueles que estão nas fileiras e dão sentido à existência das mesmas.