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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.04.21

O que me chateia solenemente…


Luís Alves de Fraga

Li a notícia que se segue e fiquei sinceramente chateado com este senhor ministro!

Vou explicar o motivo.

 

Não me enfadou ele chamar-me velho e desactualizado, porque cada um é aquilo que quer ser ou aquilo que se sente. A ele poderia eu chamar-lhe muitas coisas, entre elas petulante. E petulante, porque quem é ele para saber o quer que seja de Forças Armadas? Mesmo que tivesse prestado serviço militar nunca deixaria de ter sido um mero alferes miliciano, o posto mais baixo da carreira do oficialato. Ah, mas foi consultor do Instituto de Defesa Nacional e, parece, escreveu artigos sobre defesa nacional!

Vamos dar como válido o facto de ter conhecimentos sobre defesa nacional. Vamos partir desse pressuposto. Fazendo-o, terei de me interrogar sobre o como foram adquiridos, o quando foram adquiridos e o até onde foram adquiridos esses conhecimentos. É que defesa nacional não é exactamente o mesmo que defesa militar. Esta pertence ao âmbito das Forças Armadas e aquela, a defesa nacional, ao da Estratégia Nacional. Esta envolve aquela, mas não se esgota na vertente castrense, pois ultrapassa-a largamente.

 

Ora, o que o ministro João Gomes Cravinho nos dá provas é de simplesmente pretender perceber de Forças Armadas. Aliás, ele e todos os seus antecessores têm feito os possíveis e os impossíveis para transformar o Ministério da Defesa Nacional no Ministério das Forças Armadas.

Sendo assim, têm diminuído a sua importância e o seu papel político e decisório. Têm, como ele bem o demonstra na notícia, ficado aquém daquilo que devia ser o seu papel, aquém daquilo que os militares mais velhos e mais experientes sabem que devia ser a acção do Ministério da Defesa. E eu, porque não temo, afirmo que João Gomes Cravinho não sabe ser ou não quer ser, realmente, ministro da Defesa. E não quer ser porque não sabe ou não quer saber os caminhos por onde passa a defesa de uma nação. Nem sabe ou não quer saber qual a função efectiva e constante das Forças Armadas, porque, se soubesse tudo isto, teria deixado as Forças Armadas em paz e teria começado por tentar corrigir as anomalias estruturais da nossa defesa. Mas, isso iria mexer com interesses instalados tão poderosos que até causariam dano no Governo! A tanto não chega a bravata do senhor ministro.

 

O ministro, para fazer qualquer coisa que possa parecer estar dentro do âmbito da defesa nacional, resolveu mexer na estrutura superior das Forças Armadas e como ele e aqueles que o coadjuvaram tropeçaram numa série de problemas de solução difícil, problemas identificados pelos oficiais com uma carreira feita, resolveu passar ao contra-ataque desqualificando, perante a opinião pública, quem sabe mais de defesa nacional e de defesa militar do que ele. Resolveu puxar as orelhas aos velhos oficiais!

Contudo, pobre criatura, embora de elevada estatura física, esqueceu-se de trazer o escadote para chegar às orelhas de quem lhe dá lições de organização, de estratégia e de defesa sem fazer grande esforço.

É uma pena ‒ ou talvez não ‒ que o ministro da Defesa Nacional se exponha de maneira tão triste!

24.04.21

Este tempo de hoje


Luís Alves de Fraga

 

Um Amigo mandou-me por email o seguinte texto que sinto obrigação de partilhar na minha página pelo que aqui se diz, mas, em especial, porque concordo com o que aqui se diz.

Merece os dois minutos de leitura, que poderão dar origem a uns outros dois de incómoda meditação.

(Nota: Para quem não sabe Frei Betto é um frade dominicano brasileiro, nascido em 1944, jornalista, com formação universitária e autor de diversos livros).

 

«FREI BETTO

 

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.  Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'

 

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação! Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.

 

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

 

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...

 

A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

 

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, autoestima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um “shopping-center”. É curioso: a maioria dos “shoppings-centers” tem linhas arquitetónicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...

 

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do Mc Donald...

 

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:

"Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser Feliz"!!!»

21.04.21

Escola, ensino e mobilidade social


Luís Alves de Fraga

 

Estou a ler o manuscrito original de um livro a sair muito em breve sobre uma excelente instituição de ensino (não vou revelar já e aqui para não trair a confiança dos autores), que, a dado passo, apresenta sérias reflexões sobre métodos pedagógicos da maneira como devem ser vividos os tempos de aprendizagem e, logo mais à frente, tece considerações sobre o que se aprende nas escolas e a mobilidade social.

Passo a citar:

«As coisas mais importantes da vida não se aprendem nas escolas. As pessoas aprendem-nas na vida familiar, na sua comunidade, no lazer, no trabalho, na vida da cidade e na prática de participação social. Ou seja, na teia educacional.»

«(…) Basil Bernstein e Pierre Bourdieu (…) já explanaram em anos anteriores e que leva à afirmação de que a Escola/Ensino acabam por reproduzir as estruturas da sociedade, senão sempre e em todos os contextos, pelo menos num grande número deles.»

 

Reparem no quanto de verdade está encerrado nas duas afirmações acima transcritas.

Hoje espera-se tudo ‒ porque vivemos numa alienação completa ditada pelas leis do mercado e subordinados à necessidade de consumir o que necessitamos e o que julgamos que nos faz falta (será que precisamos, efectivamente, de tudo o que compramos?) ‒ da Escola, mas tudo, havendo uma grande demissão da Família no papel educativo e integrador das crianças e jovens. À Escola e aos mestres são exigidos criação de princípios que sempre estiveram no seio da sociedade. Aprendia-se com os pais, os irmãos mais velhos, com os avós (que eram educadores sem complexos de reverterem os seus sentimentos de culpa pela forma como educaram os filhos, mimando os netos) sempre prontos a recolocar numa posição mais moderada todos os desregulados anseios próprios da juventude, com os parentes e com os amigos da família. Aprendia-se a olhar o mundo à volta, fosse campo ou cidade, e a integrar os seus valores. Chamam a isso, os sociólogos, processo de socialização do indivíduo.

 

Hoje em dia, esse mesmo processo, que não desapareceu, alterou-se por completo, pois os valores sofreram mudanças ditadas pelo mercado de consumo esse grande senhor absoluto a que estamos sujeitos e que estabelece a diferença entre comportamentos e, até, marca distinções sociais e financeiras ‒ é ele que dita quem é pobre e quem é rico, quem tem determinado estatuto e quem não o pode ter ‒ e, acima de tudo, marca princípios de moral.

Do mercado depende a informação que temos e nos inculca o que e o como devemos pensar, proceder, exigir e desprezar.

Por trás do mercado está a democracia dos grandes interesses financeiros, que nós, quais marionetas, aceitamos, julgando livre a liberdade que nos é dada. Não percebemos o nível da nossa alienação; não a percebemos nós nem aqueles que nos governam (ou talvez, alguns, a percebam muito bem, mas, porque demasiado enleados nas suas teias, têm de lhe obedecer com reverência).

 

Não creia o leitor que ao expor estas ideias estou a advogar uma ruptura com o paradigma político em que vivemos. Jamais!

Estou simplesmente a recordar que, se tivermos consciência da existência deste modelo condicionador das nossas atitudes, podemos atenuar-lhe os efeitos, porque, felizmente, ainda nos restam algumas opções de escolha. E é nisto que a Escola pode e deve ter um papel, desde que os mestres tenham, eles mesmos, consciência do meio e do modo em que vivemos e como a ele estamos presos.

É aqui que surge a problemática da mobilidade social.

 

Se por tal se entender a saída de um patamar financeiro e social para cima ou para baixo dele, teremos de perceber se a Escola, neste momento, com os programas que tem, com os objectivos que marca e com a metodologia pedagógica e, mais do que tudo, classificativa, não se destina a reduzir o leque de possibilidades de mobilidade ascensional ou se, pelo contrário, não aponta para uma massificação do conhecimento e da consciência social para nivelar por baixo e para baixo, permitindo que só transitem para cima aqueles que nasceram no seio de famílias capazes de desmontar a alienação provocada e imposta pelo sistema de mercado tal como existe, dando aos seus filhos orientações capazes de lateralizarem os inconvenientes de modo a aproveitarem as vantagens e alcançarem aquilo que posso chamar de patamar da liderança. É essa descoberta ou esse estudo apurado e muito crítico que temos de fazer ou, no mínimo, devemos incentivar a que se faça.

 

Sei quanto difícil é sair da caixa para ser capaz de olhá-la criticamente, mas é um exercício que temos de fazer se quisermos projectar os nossos filhos e netos para fora da máquina trituradora ‒ recordando o exemplar e crítico filme Tempos Modernos onde, pondo-se a nu o sistema de trabalho em série e automatizado, põe-se, afinal, a descoberto uma verdade insofismável: hoje a vida é uma grande fábrica onde todos somos Charles Chaplin a apertar as porcas e os parafusos que nos põem na frente.

20.04.21

Porque estamos em Abril


Luís Alves de Fraga

 

Faltam quatro noites para comemorarmos a madrugada redentora de 25.

Em jovem, talvez já não tanto, ensaiei ser poeta (todos somos poetas alguma vez). E foi em Abril de 1976 que alinhei palavras para serem poema e saiu o que se segue.

Creiam, só já muito tarde retomei este alinhar de palavras que guardo, agora não na gaveta, mas no computador.

Aí vai…

 

Eu vi

 

Eu viu-o chegar ao quartel

para ir à inspecção

trazia na mão um papel

um aperto no coração

 

O vi o clínico aprovar

esse mancebo boçal,

fazer dele um militar

um soldado de Portugal

 

Eu vi o sargento tarimbeiro,

gritando muita vez,

instruí-lo no morteiro

e no tiro de G-3

 

Eu vi-o perder a simplicidade

do pensamento puro

e trocarem-na pela maldade

do soldado maduro

 

Eu vi-o de braço estendido

a fazer o juramento

frente ao general comovido

com o belo alinhamento

 

Eu vi-o quase a partir,

cantando para esconder

o medo de sentir

que talvez fosse morrer

 

Eu vi-o no avião

sentado a soluçar,

tapando os olhos c’o mão

não fossem d’ele troçar

 

Eu vi-o no pântano enterrado

correndo no mato infernal

como estátua emboscado

de baixo de fogo real

 

Eu vi-o com paludismo

e outros males tropicais

doente com reumatismo

tudo sofrendo sem ais

 

Eu vi

Eu vi morrer-me nos braços

esse mancebo boçal

de quem recordo os traços

porque também eu morri

na guerra colonial.

Lisboa, Abril de 1976

15.04.21

Pedro Soares Martinez: um caso de estudo


Luís Alves de Fraga

 

Morreu há dias o controverso ‒ em especial para a gente da minha geração ‒ professor Soares Martinez, com a bonita e invejável idade de noventa e cinco anos com perfeita lucidez de espírito, sempre arguto e perspicaz.

De formação científica em Leis, foi professor na Faculdade de Direito onde regeu mais do que uma cadeira, mas notabilizou-se pelo Direito Corporativo, Direito Económico e História Diplomática. Foi, em Governo de Salazar, ministro da Saúde.

 

Nascido em 1925 acompanhou, desde sempre, o crescimento da Ditadura e, depois, com bastante mais consciência da vida e de si mesmo, o crescimento e evolução do regime salazarista, designado por Estado Novo. Criou-se dentro do fascismo português e por ele passaram momentos políticos marcantes: a Guerra Civil de Espanha, a 2.ª Guerra Mundial e a Guerra em África.

Para se poder compreender a mentalidade de um homem destes é preciso perceber que, enquanto tomava consciência de si e do mundo à sua volta, era literalmente bombardeado com a propaganda ditatorial, salazarista, nacionalista, imperialista, católica e conservadora. Não lhe conheço os antecedentes familiares, mas, mesmo que proveniente de uma família republicana e democrática, teria de ser muito actuante para ficar indemne à máquina propagandística da época. É que, só é possível compreender a formação das mentalidades daquela geração, se se for capaz de imaginar a ambiência do surgimento do Estado Novo. Vou tentar, num rápido flash, fazer sentir aos meus leitores a acção da propaganda política da época.

 

Em 1925 o fascismo de Benito Mussolini florescia em Itália e dava à maioria dos italianos orgulho nacional, pois saíra da Grande Guerra em profunda decadência moral colectiva. Na vizinha Espanha, Afonso XIII, aceitava a gestão ditatorial do general Primo de Rivera que, embora falhada nos seus objectivos, foi um relâmpago de esperança para alguns sectores sociais do país. Quase logo de seguida a República em Espanha espalha o terror junto das alas mais conservadoras e católicas ‒ e, neste particular, deixou-se enredar pelos anarquistas, que estabeleceram a grande confusão ‒ acabando por gerar o clima que levou à horrível Guerra Civil. Quando Franco venceu o conflito e fez desfilar em Madrid as suas forças, no dia 1 de Abril de 1939, Soares Martinez tinha cerca de treze anos, uma idade onde tudo o que se ouve é absorvido como uma esponja absorve a água. Mas, antes, tinha crescido ao som dos clamores hitlerianos, vindos da Alemanha. Apanhou a formação da Mocidade Portuguesa no seu início, na fase da sua acção ideológica mais marcante. Cresceu com a ideia de uma grandeza de Portugal desproporcionada, mas inventada através da afirmação imperial de um país que, com as suas colónias adicionadas, era quase da dimensão da Europa.

Provavelmente, quando a 2.ª Guerra Mundial acabou, terá sentido o primeiro abalo nas convicções que lhe haviam sido incutidas e com que crescera. Todavia, não nos podemos olvidar de que, por cá, estava no auge a propaganda salazarista, anunciando aos quatro ventos a milagrosa vitória de termos sido poupados aos horrores do conflito graças à mão firme do homem que segurava o leme da governação. Tal convicção enraizou-se com a prosperidade económica que a década de 50 fez chegar ao país. Salazar, o corporativismo, o sistema de partido único eram os obreiros de tudo o que o deve ter encantado. Por esses anos, abriram-se-lhe as portas da docência, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Era inevitável, já que ele foi um fruto acabado do seu tempo. Não ser agradecido ao regime deve ter sido coisa que jamais lhe passou pela cabeça.

 

Um professor crescido e criado neste caldo de cultura, nunca poderia compreender os estudantes que reclamavam por um outro tempo, um tempo que estava mais de acordo com os tempos em que haviam nascido. Era um verdadeiro conflito de gerações. Tudo isso justificou as suas atitudes à frente da Faculdade de Direito. Para ele, homem inteligente e com uma cultura vasta, embora orientada num só sentido, era necessário um terramoto que destruísse grande parte do edifício visível da sua formação ideológica. Tal fenómeno telúrico aconteceu em 25 de Abril de 1974.

 

Pedro Soares Martinez teve de aprender a viver com uma nova realidade: uma liberdade, que não era a dele e uma democracia, que não assentava no sentido de ordem em que crescera. Aprendeu e adaptou-se, pelo menos para poder sobreviver. Foi muito depois dessa fase, talvez vinte ou trinta anos mais tarde, que o conheci. E quem era Soares Martinez nessa altura?

Um senhor idoso, muito educado, com um polimento de trato que já não é usual nos tempos que correm, aparentemente não querendo defrontar ideias, mas apresentando as suas com cautelas e prudências capazes de parecerem aceitáveis.

Há, talvez, três anos, na lição, que me foi encomendada, de abertura de um colóquio, expus ideias sobre a 1.ª República e sobre a participação de Portugal na Guerra que fizeram nascer no velho Mestre as forças para arquitectar, durante mais de dez minutos de intervenção, os argumentos com que veria, julgava, destruída a minha exposição. Fê-lo com a educação académica usada na Universidade, sem arrogância, mas uma imensa subtileza retórica, só perceptível por quem conhece bem o meio. Delicadamente ‒ como convém ao discípulo reverente ‒ deixei-o chegar ao fim, enquanto tomava notas sobre os vários aspectos focados na exposição erudita do Professor Martinez.

A minha resposta, dada com a mesma delicadeza e brandura postas por ele na questão levantada, foi demolidora. Fugi à torpe argumentação do ataque pessoal, mantendo-me no mesmo campo e no mesmo tom por ele utilizados, mas foi no seu próprio terreno e com os seus argumentos que lhe repliquei. No final, veio-me cumprimentar e agradecer a resposta, dando-me oportunidade de lhe agradecer a exposição/pergunta que me fizera, pois, sem ela, não teria tido ensejo de dizer o que disse.

Soube, mais tarde, que, ao organizador do colóquio, o velho Professor havia tecido elogios à forma como eu me safara.

Foi a última vez que o vi e que com ele falei. Com ele desapareceu um grande esteio intelectual do regime fascista. Merece o meu respeito e desejo que repouse em paz.

01.04.21

De S. Bento a Belém


Luís Alves de Fraga

 

O Primeiro-Ministro não quis ceder perante duas vontades: a do Presidente da República e a dos deputados Parlamento. Não cedeu, invocando a inconstitucionalidade das leis ‒ populares e, talvez, populistas ‒ que aumentavam a possibilidade de as famílias e empresas em dificuldades financeiras enfrentarem a crise que a pandemia veio estabelecer.

Parece um braço-de-ferro ‒ e pode sê-lo ‒ mas é, acima de tudo, uma posição consciente de quem sabe que há uma limitação legal que tem ser cumprida: respeitar a Constituição, não aumentando as despesas que não estejam consagradas no Orçamento do Estado.

 

Na minha vida de oficial de Administração Aeronáutica, por duas vezes tive de replicar a comandantes das unidades, onde eu era chefe da contabilidade, que só cumpriria a ordem de despesa, ‒ ilegal ‒ imposta pela disciplina militar, se ma desse por escrito.

Os comandantes sabiam as implicações de tal posição: a imediata reunião extraordinária do conselho administrativo e o envio da acta consequentemente elaborada para a Direcção de Finanças da Força Aérea, de modo a ilibar a responsabilidade civil e financeira dos membros do respectivo conselho, pois transitavam, de imediato, para o comandante.

Nos dois casos protagonizados, perante a minha posição, os comandantes recuaram na ordem e a lei cumpriu-se.

 

A semelhança, embora em escala muito maior, é flagrante, já que, agora, no caso de António Costa, a remessa para o Tribunal Constitucional é comparável à exigência da ordem dada por escrito. Terá de ser o Tribunal a sancionar a irregularidade e, ao fazê-lo ‒ se o fizer ‒, abre a porta a uma crise política de larguíssimo alcance, de consequências mal definidas e de responsabilidades incalculáveis. Crise que, para o julgamento histórico, terá dois culpados: todos os partidos políticos com representação na Assembleia da República e o Presidente da República.

Para já, António Costa é o grande vencedor de uma disputa que deixa muito mal Marcelo Rebelo de Sousa ‒ jurou cumprir a Constituição Política da Nação ‒ e, pelo menos, o PCP, por este ser o grande arauto da defesa da Lei-Base portuguesa. É uma mácula que vai cair sobre os dois, igualando-os, de maneira diferente, aos olhos dos mais críticos apreciadores da política nacional.

E não se diga que há mecanismos contabilísticos possíveis de ser usados, pois esse é o argumento empregado por todos os corruptos para fugir aos impostos e à liquidação de encargos. Esse foi o malabarismo de Salgado, no BES, essa é a manobra de todos os grandes vigaristas nacionais e internacionais.

Será assim que os defensores destas leis querem ser lembrados no futuro?