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Hoje, ao acordar, pondo os pés fora da cama, assaltou-me o pensamento uma só palavra, curiosa e inesperadamente, italiana: farfalla!
Atrás dela veio-me a lembrança dessa obra-prima do cinema italiano O Carteiro de Pablo Neruda. Ainda pegada, agarrada, pendurada no frágil corpo da farfalla chegou-me a figura da tia de Beatrice.
E como os pensamentos na nossa mente são rios caudalosos que saltam fora das margens e se despenham de alturas insuspeitáveis em cascatas cristalinas, associei essa quase analfabeta tia de Beatrice, mulher com os pés no chão, desejosa de ganhar dinheiro nem que venda a alma ao diabo, mas supostamente crente em Deus, através dos conselhos do pároco bacoco, obtuso, mas desleixado quando toca a comer e a beber, associei-a, dizia, ao Sancho Pança do Don Quixote de la Mancha.
Associação puxa associação e lá vem a do carteiro e Pablo Neruda, ambos, afinal, Quixotes de níveis culturais diferentes, mas iguaizinhos como duas lágrimas, em capacidade de sonho e de poetar. É que, lá no fundo, o poeta e a poesia têm uma fonte única: o amor.
Da mesma maneira que para o carteiro faziam sentido as borboletas do poeta, irmanados no mar da paixão, para a tia de Beatrice elas, as borboletas, eram tentações pecaminosas para roubar a virtude da sobrinha, protegendo-a, se necessário, de escopeta na mão.
Mais do que as metáforas saídas das bocas de Pablo Neruda e do seu carteiro, o filme é ele mesmo uma metáfora da vida. Uma metáfora, porque nos coloca o confronto existente entre a poesia, o belo, o sentimento suave, a inocência (até a do chefe da estação dos correios que acredita na salvação comunista) e a dureza da realidade onde só tem cabimento a luta pela sobrevivência, a mentira (o político que promete e não cumpre, porque não quer cumprir nem nunca o desejou fazer), a raiva, o desespero.
E, assim, de pensamento em pensamento, acabei de lavar os dentes e fui comer o pequeno-almoço, na cozinha, de janela aberta para deixar entrar o fresco desta manhã que anuncia a Primavera, ao mesmo tempo que o ar se enchia com os gritos das gaivotas do Tejo, que vêm aqui disputar restos de comida deixados por velhas senhoras que gostam de alimentar os gatos vadios.
O que fazem as borboletas quando se acorda com elas no sentido, mesmo que seja em italiano!
No jornal El Pais de hoje está publicado um longo artigo sobre o ensino superior, pondo em causa aquilo que entre nós se designa por sistema de Bolonha, ou seja, a formação segundo a fórmula 3+2 (a licenciatura e o mestrado). Querem voltar ao sistema antigo de 4 anos para a licenciatura e 2 anos (no mínimo) para o mestrado. E justificam a tomada de decisão da forma que transcrevo de seguida (para facilitar a leitura, socorri-me da tradução automática, feita por recurso a meios informáticos e ligeiramente corrigida por mim):
«Até à implementação do Plano de Bolonha (promovido pela Europa para padronizar o ensino superior) permitia-se que as instituições elaborassem seus cursos (auditados pelos governos central e regional). Então, uma guerra estourou para oferecer o título mais específico e atraente aos alunos: Videogames, Criminologia ou Protocolo. A Espanha passou de 116 graus e diplomas para 365 carreiras diferentes, enquanto os títulos totalizam 3.008 em toda a Espanha devido à sua nomenclatura diferente.
Toda essa evolução foi feita sem nenhuma proteção reguladora, de modo que o nome das carreiras de Humanidades se multiplicou por seis (de 20 títulos passou para 120) ou a engenharia por dois (de 50 a 104), segundo dados do Observatório do Sistema Universitário. Os reitores estão cientes de que essa febre de títulos deve ser interrompida e que deve ficar claro o que é ensinado e como.
Actualmente, cada curso está atribuído a um dos cinco ramos do conhecimento - Ciências Sociais, Ciências Naturais, Engenharia, Ciências Humanas e Ciências da Saúde - mas o novo decreto obriga a ser ainda mais específico: o curso deve ser classificado numa das 25 áreas de conhecimento específicas.
A ideia da Declaração de Bolonha era criar um “sistema de qualificações facilmente compreensível e comparável”, mas o tempo mostrou que é uma confusão. O Observatório do Sistema Universitário, que agrupa docentes das universidades públicas de Barcelona, é muito crítico no seu estudo sobre Licenciaturas: quantas e quais? A partir de 2019: “Há menos referências, o que pode implicar dificuldades na escolha de carreira ou na contratação de pessoal”.
Durante anos, as universidades “Pompeu Fabra” e “Carlos III” permitiram que os alunos escolhessem disciplinas de qualquer curso de Humanidades e Ciências Sociais ou dos diferentes programas de engenharia nos primeiros dois anos, mas sem obedecer a nenhum regulamento. O novo decreto estipula que apenas 10% das vagas com essa peculiaridade podem ser oferecidas, uma vez que é muito complexo equilibrar os horários desses alunos e os roteiros. “Os graus abertos devem combinar disciplinas de pelo menos três graus de um mesmo ramo do conhecimento”, diz o documento.
O perigo é cobrir tanto que no final nada se saiba. Cristina Gelpi, vice-reitora da Universidade “Pompeu Fabra”, afirma que “a transversalidade ajuda muito trabalhar para projetos de ensino para que o resultado não seja uma soma de peças desconectadas, [e o aluno se torne] num aprendiz de coisa nenhuma. Você tem que adquirir capacidades comuns e alguns fundamentos”.»
Se calhar, a nós, por cá, também não nos ficaria mal começar a repensar todo o sistema de ensino superior para corrigir esta ânsia de toda a gente ser licenciada e ou mestrada em coisa nenhuma. É que, quando se vêem as barbas do vizinho a ardem devem pôr-se as nossas de molho!
Perguntam-me, alguns familiares e amigos, o que será essa coisa do novo normal. Tento explicar o melhor que a minha imaginação me permite. Hoje, passando os olhos pelo jornal Expresso, topei com um método que estará muito próximo daquilo que poderá vir a ser o futuro daqui a um ano ou dois, no mundo inteiro. Está explicado numa pequena notícia, na página 28 do Primeiro Caderno, que transcrevo na íntegra, embora sem a fotografia:
«O Estado judeu já começou a recolher os frutos da rapidez com que está a vacinar a sua população contra a covid-19. Esta semana começou a reabrir o sector da cultura, após meio ano de confinamento. Mas só quem tem o “passaporte verde” (como esta mulher, à entrada de um concerto em Telavive), que comprova que o detentor já foi vacinado, pode voltar às salas de espetáculos. Lá dentro, o uso de máscara continua a ser obrigatório e o público senta-se espaçadamente.»
Temos de nos ir habituando ao usa da máscara, ao distanciamento físico entre estranhos e à ideia de ter um passaporte para poder cruzar todas as portas. E temos sorte, enquanto for assim, pois poderá surgir um vírus bem pior e mais agressivo do que este que provoca a covid 19.