Ontem precisei de tratar de um assunto de alguma gravidade com a EDP Comercial e, naturalmente, liguei para o número indicado ‒ o do call centre ‒ e lá me surgiu a buzinar ao ouvido a lengalenga: se é para assuntos de… marque 2; se é para… marque 3, etc.
Disciplinadamente fui marcando de acordo com as minhas preferências e eis-me a falar com uma senhora que, cheia de delicadeza e paciência, me disse não ser ela o meu contacto correcto, mas que aguardasse, pois ia-me transferir para a colega certa. E transferiu em menos do tempo de arder um pau de fósforo.
Tratei do que tinha a tratar, mas, para finalizar a acção, teria de falar com outra assistente e foi ela quem, em poucos segundos ‒ sem eu nunca ter desligado o telemóvel ‒ me pôs a falar com quem de direito. De seguida, e porque me lembrei de regularizar um outro assunto, pedi para me passar ao departamento conveniente. Sempre com amabilidade na voz, pôs-me em contacto com quem de direito que, sempre validando a minha identidade, através de perguntas que, em princípio, só eu sei responder, me resolveu tudo o que eu pretendia. Ao todo estive ao telemóvel, exactamente, 48 minutos e 46 segundos.
Claro que, neste tempo, não resisti a fazer a pergunta ‒ desculpe, mas estão a trabalhar no vosso call centre? ‒ e a resposta foi pronta ‒ não, não. Estamos a trabalhar em teletrabalho! ‒ Do lado daqui, fiquei mudo.
Fui atendido por quatro ou cinco pessoas, com uma amabilidade incrível, uma disponibilidade fora do habitual, uma tranquilidade inusitada, cada uma em sua casa e, de certeza, todas vivendo bem distantes umas das outras!
Não quero saber se o patrão é chinês ou americano! Basta-me saber que eram portuguesas ‒ todas mulheres, com exclusão de um só interlocutor ‒ e que foram tão ou mais eficientes do que noutras ocasiões… e, até, entre ligações, davam-me música de fundo!
Enquanto cliente-pagador-utilizador não me preocupa se estas pessoas estão a trabalhar seis ou sete horas, se têm filhos ou netos à sua conta, se têm uma divisão em casa à prova de som, se estão bem sentadas ou se estão a descascar ervilhas enquanto falam comigo; interessou-me a forma como fui atendido e a simpatia que acompanhou todo o atendimento. Mas, enquanto cidadão, enquanto preocupado com os assuntos sociais do meu país, fiquei a pensar que estas pessoas, num dia de chuva, não tiveram de se levantar para enfrentar transportes públicos ou trânsito, não tiveram de vestir a fardeta de trabalho, não tiveram os olhos de águia de um vigilante em cima delas, não tiveram de comer fora de casa, não enfrentaram a hora de ponta e os apertos dos transportes públicos e, acima de tudo, não estiveram sujeitas a ser infectadas pela Covid 19 para ganharem o pão de cada dia.
Tem grandes inconvenientes o teletrabalho? Claro que tem! Mas, para quem seja capaz de olhar o futuro com olhos de descobrir, sentirá ser isto o começo de uma era que não sei como se desenvolverá, mas, que irá ao longo desta senda, não tenho dúvidas.
Para que o quadro fique completo e se perceba o que é o futuro e o que é passado, vou referir um outro assunto que me traz apreensivo.
Não tenho médico de família, porque, sendo militar e tendo um subsistema de saúde próprio, não sobrecarrego os postos de saúde, nem os médicos a eles adstritos. Mas tenho de me vacinar e, assim, tenho de figurar no tal centro de saúde da área da minha residência. Que fazer?
Averiguei e, parece, uma simples declaração do médico que habitualmente me acompanha, passada e introduzida no sistema informático usado para prescrição medicamentosa, é suficiente. Depois tem de ser entregue… pessoalmente, no tal centro de saúde.
Primeiro entrave: o médico diz que o sistema não aceita a situação, que não tem acesso ao serviço e mais umas tantas baboseiras. Mas aceita o pagamento da consulta, feito por mim, na parte que me compete, e pelo meu subsistema, na parte que lhe compete!
Consultado o centro de saúde, fui informado de que tenho de ir para uma fila, para ser inscrito no sistema, mas tenho de ir eu, ou alguém por mim, com o meu cartão de cidadão.
Depois, depois sim, tenho de aguardar que me chamem para ser vacinado onde e quando me disserem.
Vê-se a diferença?
Ora vamos lá simplificar as coisas. Admitamos que o (dá-me vontade de dizer um nome inapropriado, vulgo palavrão) filho de uma senhora muito honesta do sistema usado pelo SNS tem o meu número de utente, o meu nome, a minha idade e pode cruzar estes dados com os do cartão de cidadão (ou o contrário, se der mais jeito). Então, se cruzar dados, o sistema fica a saber que estou vivo e onde moro (se não tiver mudado de residência e não tiver actualizado o cartão de cidadão, pois ficarei fora de controlo, nesse caso, e a culpa é minha e só minha). Sabendo onde moro, sabe qual é o meu centro de saúde, mas já sabe, também (porque me manda mensagens para o meu telemóvel) qual é o meu contacto.
Com tudo isto, eu não deveria dar um passo, com ou sem médico de família para ser avisado do momento de tomar a bendita vacina.
Estou assim tão distante da simplicidade ou a merda da máquina estatal gosta de inventar processos para lixar a vida ao cidadão?
Percebe-se qual a razão por que as grandes e bem organizadas empresas comerciais dão milhões de lucros e os serviços do Estado andam numa lástima?
A explicação é só uma, para mim, que, há muitos anos, estudei métodos de normalização do trabalho administrativo: é preciso complicar, demorar, emperrar para dar trabalho a mais gente, mesmo que mal paga e sem perspectivas de carreira!
Assim, não há milhões da Europa, nem bazuca, nem bomba atómica que mude este país e o faça progredir ao nível daquilo que se espera de um Estado.