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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

06.12.20

Páginas do Meu Diário - 11


Luís Alves de Fraga

21 de Fevereiro de 2019

As lembranças que guardo da vida em casa dos meus pais posso separá-las em três fases: quando criança até aos treze anos de idade, dos treze aos vinte e quatro e aquando da minha vida adulta.

Das memórias mais remotas o que me ocorre agora são vários episódios: quando dormíamos ‒ eu e a minha irmã ‒ na cama do casal, com a minha mãe, porque o meu pai andava embarcado no petroleiro da nossa Armada, o S. Brás, em viagens constantes entre Lisboa e Aruba, Coraçao e Caracas onde carregava, segundo me parece, ramas para a refinaria de Lisboa (a Sacor) onde eram destiladas para consumo nacional. O meu progenitor, segundo se contava, permanecia em Lisboa pouco mais de uma semana e iniciava nova viagem, com passagem pelo porto do Funchal, na ida e na volta. Isto aconteceu durante, talvez, dois anos de guerra ‒ 1942 a 1944 ‒, porque, em 1945 ele já estava, de novo, a prestar serviço no Hospital de Marinha, no largo de Santa Clara, em Lisboa. Foi um tempo de grande susto para a minha mãe, que sabia os perigos de viajar num navio petroleiro durante a guerra.

Recordo-me de um vago sismo, à noite, tal como da queda, com grande estrondo, de um bonito florão em gesso, do tecto de uma das divisões lá de casa. Mas lembro, com saudade, os jantares de arroz-doce, que a minha mãe fazia, aproveitando a abundância de arroz e de açúcar (trazidos pelo meu pai das viagens à América Central).

Mais crescido, já com cinco ou seis anos, recordo-me dos meus tormentosos almoços e jantares. Eu conto.

Ou porque eu era, de facto, magrito ou porque a minha mãe me via magro em excesso, ela tinha imensa preocupação com as quantidades alimentares por mim ingeridas e, dado o meu pai ser enfermeiro, pedia-lhe com insistência para prover um qualquer medicamento que me abrisse o apetite. Na ausência de um fármaco havia a autoridade paterna! E aqui começava o meu tormento. A carne ou o peixe com as batas ou o arroz começavam a fazer uma imensa bola, misturada e mastigada, nas bochechas, mas irem para baixo, isso é que não iam, por mais água que bebesse. Era um tormento de choro, exaltação do meu pai, que me dizia só deixar de insistir quando eu vomitasse. Nunca senti tanta vontade de ser capaz de induzir o vómito como então!

Não me lembro como a coisa acabava, contudo, não esqueço a aversão a comer por obrigação. Até hoje, não consegui ser um garfo por aí além; como para viver e jamais vivi para comer.

Estudar era uma das tarefas que me era imposta, depois de ter entrado na escola primária. Mas havia matérias e tarefas que simplesmente eram horríveis: a tabuada, as contas, as cópias ‒ para não me enganar tinha de copiar quase palavra a palavra, em vez de copiar frases completas, dificuldade que me acompanhou por toda a vida ‒ o ditado, por causa dos muitos erros ortográficos que dava. Mas gostava de ler. Ler e decorar trechos de poemas ou mesmo poemas completos (muitos, sei-os ainda por inteiro) fazia os meus encantos. Ao chegar à, então, chamada 4.ª classe, redigia com grande facilidade e quase sempre por gosto. Todavia, recordo que a minha mãe tinha grandes inquietações para me fazer sentar à secretária e estudar. Sempre gostei de aprender, vendo fazer ou ouvindo as explicações; a disciplina de me sentar para estudar só a adquiri nos Pupilos do Exército.

Foi já quando tinha dez ou doze anos que dei conta de que, lá em casa os horários das refeições eram cumpridos com rigor britânico ou castrense. O almoço comia-se às treze horas e o jantar às vinte e trinta. Não havia excepções, nem ao domingo. Foi um rigor difícil de alcançar durante toda a minha adolescência e, até, idade adulta. Tal rebeldia valeu-me frequentes e sempre duras reprimendas do meu pai.

Ser admoestado por ele tornou-se a coisa mais fácil para mim, pois metia o pé na poça com imensa facilidade. Não percebia os sinais de alarme para os quais a minha irmã tinha uma excelente capacidade de captação. Ela escapava incólume enquanto eu, sem me dar conta dos riscos, acabava concitando sobre mim a zanga do meu progenitor.

Da minha infância recordo a brincadeira que o meu pai gostava de fazer connosco. Vou contá-la.

Naquele tempo não havia limites de idade para entrada nos espectáculos e, deste modo, uma criança com cinco, seis, sete anos podia ir ao cinema, ao teatro ou, até a uma tourada (só vi, ao vivo, três na minha vida e a primeira foi na praça de Angra de Heroísmo, com o meu pai, quando tinha seis anitos).

Ora, era mais ou menos frequente, o meu pai chegar a casa e avisar, durante o jantar, que tínhamos ‒ eu e a minha irmã ‒ de nos despachar para irmos ao cinema. Gerava-se um ambiente de festa, especialmente animado pela minha irmã ‒ mais velha sete anos ‒ que exultava. Chegados ao fim da refeição, o meu pai anunciava que tudo não tinha passado de uma brincadeira e que teríamos de nos despir para deitar de seguida (a hora de dormir, naqueles tempos, rondava as vinte uma e trinta ou, o mais tardar, as vinte e duas horas). Entrava em nós uma profunda tristeza, muito mais expressiva na minha irmã, mas lá íamos, obedientes e sem qualquer trejeito de má disposição, para os nossos quartos vestir os pijamas, depois, lavar os dentes e preparar a roupa do dia seguinte. Nesse exacto momento, o meu pai dizia lá do fundo da casa: «Toca a despachar, porque o cinema começa daqui a meia hora!» Saltávamos lestos e com imensa alegria vestíamos a roupa de sair, ficando prontos em menos do tempo de arder um pau de fósforo.

Esta brincadeira repetiu-se várias vezes, mas, nem por sabermos que acabava em bem, quer eu o a minha irmã tirávamos o prazer ao meu pai de a fazer. Coisas que se aprendem e que nos moldam os sentimentos!

Não sei qual a razão, mas, ao que me lembro, a minha mãe, algumas vezes ficava em casa e não ia connosco. Ora, acontece que eu tinha uma fortíssima ligação a ela, tornada enorme paixão. Daí que, quando saíamos os três ‒ o meu pai, a minha irmã e eu ‒ a minha mãe ficava no patamar a despedir-se enquanto eu lhe perguntava: «Mamã, tens pena que eu vá? Ficas triste?». A resposta era sempre a mesma: «Não, não tenho pena, vai com o papá e a mana».

Os meus progenitores terão achado graça a esta minha preocupação e, certa vez, combinaram fazer-me uma partida. Nesse dia a pergunta saiu igual a sempre, só que a minha mãe, quando já tínhamos descido a escada, disse, cá de cima: «Tenho pena, sim, tenho pena». Recordo-me com perfeitamente de ter largado a mão do meu pai, subido a correr a escada de caracol e, lá em cima, ter dito: «Mamã, eu fico contigo». E fiquei, pois não foram capazes de me convencer do contrário.

Aos treze anos entrei para os Pupilos e a vida em casa dos meus pais ‒ a minha irmã casou um mês antes de eu começar as aulas ‒ só passou a existir, para mim, aos fins de tarde de sábado, domingos, férias de Natal, Carnaval, Páscoa e meses de Verão. E foi assim até me casar, com vinte e quatro anos e formar a minha casa e família. Foram onze anos que, por um lado, pareceram uma eternidade, mas, por outro, voaram como o rasgar de uma andorinha em fim de tarde de Primavera.

De Março de 1941 a Dezembro de 1965 a casa dos meus pais foi o local onde vivi sonhos, alegrias, tristezas, esperanças e desesperanças enquanto lá fora o mundo sofria transformações inimagináveis vinte ou trinta anos antas de eu nascer. A 2.ª Guerra Mundial findou, deixando atrás de si milhões de mortos, mas as sociedades despontaram para um novo tipo de vida, vida onde o grande consumo começou a dar os primeiros passos.

Nos últimos anos da década de 50, até em Lisboa sentíamos a mudança; era a moda que começava a impor-se massificando-se. O cinema americano conquistava espaço ao excelente cinema europeu ‒ italiano, britânico e francês. O futebol tornava-se um espectáculo capaz de movimentar milhares de indivíduos ‒ por cá construiu-se o estádio do Benfica, do Belenenses, do Sporting. Fátima arrastava peregrinos de todo o mundo. Nascia o Mercado Comum e a grande explosão do consumo e das migrações. A ONU e a NATO eram organizações internacionais das quais passámos a ouvir falar todos os dias. Da península da Coreia chegavam ao mundo notícias de uma guerra entre o mundo ocidental e o mundo oriental. As regiões colonizadas começavam a reivindicar independências; havia guerras na Indochina, na Argélia; o Brasil mudou de capital; foi lançado o primeiro satélite artificial, tendo pertencido à URSS a primazia nesse capítulo; Flugêncio Baptista foi derrubado pelos guerrilheiros da Sierra Maestra, tendo à frente Fidel Castro; um presidente dos Estados Unidos foi assassinado a tiro em Dallas, sem que antes tenha incentivado a exploração da estratoesfera, tenha aceitado uma tentativa de invasão de Cuba e gerido a crise mais dramática entre Moscovo e Washington.

Por cá, depois da morte do Presidente da República, marechal Óscar Carmona, do curto mandato do general Craveiro Lopes, surgiu o fenómeno (bastante mal contado e muito deturpado) Humberto Delgado. Em 1961, o início da Guerra Colonial, a invasão de Goa, Damão e Diu, o assalto ao paquete Santa Maria e o assalto ao quartel de Beja marcaram indelevelmente o futuro que todos pareciam apostados em travar, travando o envelhecimento do ditador reverenciado por muitos e desprezado por alguns cujos sentimentos eram calados pelo medo da repressão exercida por uma polícia política, que parecia omnipotente e omnipresente.

Foi um quarto de século tão rico de mudanças que é difícil perceber como ele se tornou na verdadeira porta de entrada da modernidade actual. Mas lá chegarei…

01.12.20

Páginas do Meu Diário - 10


Luís Alves de Fraga

20 de Fevereiro de 2019

Afinal, quando não se estuda devidamente a política externa de António Salazar durante a 2.ª Guerra Mundial, pode-se ser influenciado pela propaganda feita na época à volta do grande génio, que salvou Portugal dos horrores do conflito.

É verdade que não fomos sujeitos aos dramas advenientes da guerra, mas é mentira que isso se tenha ficado a dever a qualquer golpe de genialidade. O que aconteceu foi que Salazar ‒ além de presidente do Conselho de Ministros era também ministro da Guerra, dos Negócios Estrangeiros e das Finanças ‒ soube ir fugindo aos apertões dados tanto por Londres como por Berlim e, até, Tóquio.

Logo no começo do conflito declarou, sem consulta prévia ao Governo britânico, a neutralidade portuguesa. Em abono da mais elementar justiça ‒ se é que deve haver justiça na História ‒ é de realçar que procedeu com grande sentido de soberania (nessa altura e só nessa altura), se comparado com Bernardino Machado, em 1914, quando eclodiu a Grande Guerra, pois este, depois de uma semelhante afirmação de soberania, recuou e acabou por ceder à tentação de consultar Londres sobre o que devia fazer. Na atitude de Salazar pesou o conselho de um velho monárquico, director-geral dos Negócios Estrangeiros, Luís Teixeira de Sampayo (morreu dois dias depois de, no hotel Aviz, ter tentado beijar a mão à ex-rainha D. Amélia ‒ disse-lhe «Majestade, sinto-me mal» e caiu inanimado ‒, quando esta foi autorizada, por Salazar, a visitar Lisboa, em 1945), primo de um outro diplomata (Carlos Sampaio Garrido) que, em Budapeste, salvou a vida aos pais e a uma imã de Zsa Zsa Gabor, aconselhando o ditador a não cuidar de saber a opinião do Foreign Office, pois, no passado, se havia inquirido em excesso sobre o que fazer em matéria internacional.

Mas, para entradas de leão, Salazar teve, como é habitual naqueles que não possuem arcaboiço para mais, saídas de sendeiro. Com efeito, a neutralidade, sendo uma figura diplomática e política na relação entre Estados, carece de muito mais do que a simples afirmação de distanciamento, porque para o garantir tem de haver força, em especial, militar, e Portugal não a tinha como continua a não ter. A neutralidade pressupõe a possibilidade de dissuadir os beligerantes de qualquer agressão, uma vez que lhes pode sair mais cara do que o ponderado distanciamento e respeito pela soberania do Estado neutral.

O posicionamento geográfico de Portugal era, logo no início da guerra, invejável para Alemães e para Britânicos; não só o posicionamento continental ‒ a vasta costa marítima ao longo da qual passa quase toda a navegação do e para o Norte da Europa continua a ser interessante para controlo do comércio internacional ‒ mas, em especial, os territórios insulares da Madeira e dos Açores e, na altura, os cabos submarinos, importantíssimos para as comunicações intercontinentais, amarravam em algumas das ilhas deste último arquipélago. Somente isto exigia que, para garantir a neutralidade, Portugal fosse capaz de manter à distância a Alemanha e a Grã-Bretanha. Lisboa só podia contar com boas vontades e bons ofícios internacionais, armas insignificantes num tempo em que os tratados não passavam de simples papéis descartáveis em nome de interesses maiores!

A suma prova do que acabo de dizer foi dada em 17 de Dezembro de 1941 quando uma força militar australiana, sem aviso prévio, tomou de assalto a ilha de Timor, na parte portuguesa e na parte holandesa. Ficou ferida de morte a neutralidade nacional não por tropas do Eixo, mas por forças Aliadas. Foi uma declarada ofensa à política internacional de Portugal. Salazar reagiu com brusquidão junto de Londres, reclamando, mas só reclamando, contra o atentado perpetrado pelos Australianos que, preventivamente, garantiam posições avançadas, prevendo o ataque japonês.

Em Lisboa determinou-se, acessoriamente à reclamação diplomática, a preparação de uma força expedicionária para seguir, por via marítima, para Timor a fim de impor a neutralidade nacional. Foi uma fraquíssima demonstração de soberania, tanto mais que, em 20 de Fevereiro de 1942, atendendo a que a ilha de Timor estava ocupada por tropas Aliadas, o Japão invadiu-a e, matando a resistência imediata, levou a que fugissem para as montanhas tropas australianas com alguns civis e militares portugueses oferecendo, em acções de guerrilha, a resistência possível. As tropas expedicionárias ficaram em Lourenço Marques, Moçambique, a aguardar melhor oportunidade para avançar rumo a Timor. Entretanto, o Governo de Lisboa apresentou uma suave reclamação junto da embaixada nipónica ‒ nada comparável com o que havia feito em Londres, meses antes ‒ numa clara demonstração de não hostilidade para com um Estado que poderia declarar guerra a Portugal.

Berlim, Londres e Washington perceberam perfeitamente bem que, acima de tudo, Salazar, fizessem o que fizessem, tinha como objectivo não levar o país para a guerra, abrindo, deste modo, Portugal a todo o tipo de chantagem diplomática e, até, militar, que as chancelarias quisessem fazer. Para o ditador fascista ficava aberta uma única hipótese: retardar a efectivação das manobras aprontadas por Estados terceiros para tornar real a chantagem. Ceder, sim, mas tão lentamente quanto possível.

Nada disto foi desvendado aos Portugueses durante a guerra ou após ela. O que a propaganda fez foi exaltar as capacidades diplomáticas de António de Oliveira Salazar, tornando-o num paladino da paz, num herói, que salvou o país dos horrores do conflito! Não se dizia, nem se disse, que foi um trafulha, incapaz de salvaguardar a dignidade nacional e, acima de tudo, um oportunista.

Em consciência, ao escrever o que escrevo, não me anima raiva nenhuma, tão-somente desejo de deixar o meu testemunho de historiador nestas reflexões íntimas.

Por hoje, já chega.

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