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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

29.11.20

Páginas do Meu Diário - 9


Luís Alves de Fraga

19 de Fevereiro de 2019

Hoje é terça-feira. No apontamento de ontem eu estava embalado na análise e descrição da política de Salazar durante a 2.ª Guerra Mundial. Não sei se lhe quero dar continuidade, cumprindo a promessa de ontem. Quase sempre, o que deixo aqui lançado é fruto da disposição do momento e, agora, não me apetece remoer um assunto velho e de uma política que à maioria dos que lerem, um dia, este diário já nada ou quase nada interessa. Estamos noutro século, noutra década, noutro tempo!

A notícia mais gritante que enche os órgãos de comunicação social é a da greve dos enfermeiros. Também não a compreendo. Claro que há direito a reivindicar aumentos de salários e melhores condições de trabalho, mas, numa fase em que se pretende estabilizar a vida política nacional, em que a governação está a levar em conta os desejos de toda a esquerda, estes movimentos ‒ aparentemente descontrolados e só dependentes da direcção de um sindicato ‒ a que poderei chamar inorgânicos, porque fogem ao controlo das grandes centrais sindicais, mais parecem animados pelos populismos de direita ou por aquilo que os mais velhos aprenderam a identificar durante o PREC (1974-1975) como manobras da extrema-esquerda. Os opostos tocam-se na aparência e nos métodos.

Cada dia que passa mais sinto o mau uso que as novas gerações fazem das liberdades consignadas na nossa Constituição. E não é por estar velho! É porque vejo a sua incultura política.

Fala-se muito do fascismo português e da descolonização, contudo, não se fala na reeducação política para a democracia e para a liberdade, que deveria ter-se seguido ao 25 de Abril, em 1974. Têm sido piores os efeitos dessa falta de cultura política do que os da descolonização, a qual reintegrou, rapidamente e bem, os retornados. Teria de ter havido uma aprendizagem do uso da liberdade bem diferente daquele que resultou da bagunça gerada após o golpe democrático. Teria de ter havido uma grande cautela para repensar o que estava ‒ e continua ‒ como matéria residual do salazarismo e do fascismo na vida e no quotidiano de todos nós. As reformas do ensino, em vez de terem anulado os cursos técnicos de comércio e indústria, impondo uma falsa democratização, deveriam ter considerado a necessidade de expurgar os ensinamentos nacionalistas substituindo-os por princípios de democracia. Na minha opinião, foi isto que falhou.

Estou cansado e não me apetece continuar a discorrer sobre este tema.

 

Falta um mês para o meu aniversário. Chegam-me os setenta e oito anos. Jamais pensei atingir esta idade, mas fico contente. A Madalena quer juntar toda a família. Vai ter imenso trabalho, mas gosta de ver uma casa cheia e uma boa mesa posta.

Esta coisa de fazer anos recoloca-me noutros tempos e leva-me a pensar como foi o passado. Em garoto, não tenho memória de alguma vez ter tido festa de aniversário, não a havia para mim nem para nenhum de nós em casa dos meus pais. Depois, quando entrei no Instituto dos Pupilos do Exército, também essa data nada tinha de especial, para além de poder ir jantar a casa onde nada de diferente acontecia. Houve uma excepção, que me marcou: quando fiz dezoito anos. Nesse dia a minha mãe ofereceu-me uma bolsa em malha de prata para guardar as moedas (usei-a anos a fio) e o meu pai ofereceu-me um cigarro, consentindo, assim, que fumasse em casa sem ter de me esconder.

Festas de aniversário ‒ umas pequenas, outras maiores ‒ tive-as depois de casado.

Talvez, por causa do que contei, se compreenda a pouca importância que dou à minha festa de aniversário.

Bom, por hoje chega.

28.11.20

Páginas do Meu Diário - 8


Luís Alves de Fraga

18 de Fevereiro de 2019

Voltando à importância dos domingos, recordo o som dos sinos das igrejas, na minha rua, chamando para a missa. Chegavam vindos da Penha de França, da Graça, dos Anjos e, se calhar, de outros templos mais. É coisa que por aqueles lados, agora, o ruído constante do tráfego automóvel, não permite ouvir aos domingos ou em qualquer outro dia.

Lisboa, há quase oitenta anos, era uma cidade com uma vida que subia das ruas até aos pisos mais altos das casas onde escutávamos o chamamento para as aquisições mais essenciais: as vendedeiras enchiam os ares de pregões, os ferro-velhos e os amoladores complementavam-nas.

Da Graça à Baixa era, nesses anos de fim de guerra, um salto. Ia com a minha mãe ao mercado da praça da Figueira comprar géneros frescos. Naquele imenso espaço, cheio de cheiros e barulhos, de encontrões entre gente que procurava, do peixe à fruta, da carne aos legumes, o que lhe faltava, eu perdia-me a olhar as bancas de venda, esperando pelo ansiado momento de, nos passeios do Rossio, poder caminhar sobre as grelhas de ferro ainda agora existentes, cobrindo a calha de esgoto das águas das chuvas. Divertimento único, que recordo quando volto ali e sigo os mesmos passos de então.

 

Não me lembro de ver os refugiados da guerra na Europa, mas lembro-me do contraste entre as velhas mulheres de Lisboa, que usavam saias compridas, tampando-lhes mais do meio da perna, e das outras, das que vestiam a nova moda trazida por todos os que demandavam a capital na busca de um embarque para o Novo Mundo. Ouvia, à minha mãe, falar nos penteados e nos vestidos à maneira das estrangeiras.

Na verdade, pelo que depois vim a saber, Lisboa encheu-se de refugiados e de espiões que se cruzavam nos cafés da Baixa e nos hotéis da cidade e do Estoril. A neutralidade portuguesa favorecia a existência desta espécie de terra-de-ninguém onde todos se encontravam na esperança de enganarem todos.

A manha política de Salazar possibilitou essa neutralidade, exaltada pelo regime, mas, realmente, muito vergonhosa! Foi-o, porque resultou de uma série de jogos duplos com as potências em conflito. Com a Alemanha não era só a negociata do volfrâmio; era, acima de tudo, a esperança de identidade ideológica por parte dos germânicos, quando, na verdade, o salazarismo nunca foi expansionista, nem belicista, nem outra coisa para além de um fascismo de trazer por casa. Foi duro, foi antidemocrático, foi cruel, mas nada comparável ao franquismo, ao nazismo nem ao regime italiano de Mussolini. Eles, em Berlim, sabiam das manobras manhosas de António Salazar, mas não lhes interessava desafiar mais os Aliados, em especial os Britânicos, num teatro de operações onde não viam vantagens estratégicas.

Foi essa pobreza estratégica que levou os nazis a aceitarem jogar o jogo do faz de conta. Se tivessem querido acabar com ele ter-se-iam servido do general Franco e da sua Espanha dominada pela Falange fascista, católica radical, anticomunista e, acima de tudo, nacionalista e desejosa de anexar este absurdo geográfico e político a que chamamos Portugal.

 

Com efeito, a existência independente do nosso país ‒ se é que actualmente ainda se pode falar de independência ‒ deve-se a sucessivas coincidências e acasos históricos depois de 1385.

Só para recapitular e não deixar esquecer, aqui ficam os tópicos sobre o que afirmo antes: a paz temporária com Castela, em 1411, permitiu e incentivou a jogada estratégica da tomada de Ceuta no ano de 1415, gerando um equilíbrio ibérico com base na existência independente e autónoma de Aragão e suas conquistas no Mediterrâneo, de Granada e de Portugal e suas dependências atlânticas; a expansão marítima e o comércio possibilitaram a continuação de uma superioridade na Península, bem como a chegada ao Oriente; mas, cem anos depois, a exaustão havia sido alcançada e restou a Portugal, na falta de ouro para prosseguir o comércio oriental, render-se à, já então, Espanha unificada; 1640 foi um equívoco que continua a ser mal contado ‒ porque se olha excessivamente para o lado nacionalista e muito pouco para o que representou a união dos reinos ibéricos para a grande burguesia mercantil portuguesa e espanhola, bem como para a grande nobreza de Portugal ‒ e que só vingou fruto do envolvimento da Espanha numa guerra mais séria na Europa (a Guerra dos Trinta Anos); o Brasil, e o facto de por lá os altos responsáveis terem fugido à obediência a Madrid, ficando-se pelo reconhecimento do novo rei de Portugal, salvou a restauração, tal como a ele se ficou a dever o reequilíbrio do comércio e finanças, muito embora, com a renovação da aliança com a Inglaterra se tenham desenhado os contornos da nova dependência; foi a ela, aliás, que se ficou a dever a ausência de unificação com a Espanha aquando das invasões napoleónicas, todavia, a ela se deve a independência do Brasil, a qual nos lançou por completo no braços de Londres, tábua de salvação do abraço de Madrid.

Focados de passagem estes tópicos ‒ mais tarde ou mais cedo voltarei a eles para os desenvolver, relacionando a História com a Geopolítica e os interesses internacionais com os interesses nacionais de modo a explicar os acontecimentos de um modo dinâmico ‒ volto à 2.ª Guerra Mundial e à neutralidade portuguesa.

 

Mas, se os nazis aceitaram a manha de Salazar, também Londres foi conivente com ela. Aliás, o ditador servia muito bem os interesses britânicos, porque, também eles não estavam empenhados em abrir a frente ibérica às operações militares, mas não dispensavam a utilização das bases, em especial, aéreas nos Açores para, desse modo, controlarem a zona invisível do Atlântico onde operavam, com quase total impunidade, os submarinos alemães. No fundo, os Britânicos desejavam a neutralidade portuguesa e, ao mesmo tempo, a prática de actos bélicos incompatíveis com esse estatuto. A eterna ambiguidade que Londres queria para Portugal. Havia sido assim logo no começo da Grande Guerra, em Agosto de 1914. Contudo, na 2.ª Guerra Mundial, foi Salazar quem serviu a ambiguidade, mas distribuindo-a pelos alemães e pelos britânicos.

Amanhã volto ao assunto.

26.11.20

Páginas do Meu Diário - 7


Luís Alves de Fraga

17 de Fevereiro de 2019

Hoje é domingo. E o domingo foi sempre um dia muito especial para mim, desde a mais tenra idade até ser adulto com graves e grandes responsabilidades. Apetece-me contar esta curiosidade, até porque explica outros tempos e outras formas de viver.

A consciência do dia de domingo começou quando era muito pequeno, talvez com três ou quatro anos, pois era o dia de visita a casa dos meus avós maternos, que coabitavam com a minha tia Maria José ‒ a tia Zezinha ‒ o marido e os dois filhos ‒ o Fernando e a Judite.

A minha mãe aprontava-nos, a mim e à minha irmã, para sairmos de casa o mais cedo possível ‒ não sei a hora, mas devia ser por volta das dez e meia ou, talvez, antes ‒ porque o meu pai, geralmente, só ia ter connosco há hora do jantar; tinha por hábito dormir à tarde para se refazer das noites de serviço no Hospital de Marinha. Tomávamos o eléctrico até à rua da Conceição e, depois, íamos a pé até ao Terreiro do Paço ‒ a Praça do Comércio, de hoje ‒ onde apanhávamos outro eléctrico até ao largo da Boa-Hora. Seguíamos, a pé, pela travessa do mesmo nome e entrávamos no prédio de esquina, o número 140 da Calçada da Ajuda. Os meus avós viviam no segundo andar.

Era uma asa cheia! Por lá estavam já, quando chegávamos, a sogra da tia Zezinha ‒ a primeira pessoa que vi com uma prótese ocular (um olho de vidro) ‒ de cabelos muito brancos, mexendo-se com dificuldade, e a filha dela (cunhada da minha tia), o marido, que era sargento artífice do Exército e me fez a primeira mesa com pés para comer na cama, quando estive doente, e o filho, o Hélder. Depois, aparecia o meu tio Armando, o irmão mais novo da minha mãe e da tia Zezinha, com a mulher, a tia Celeste, e o meu primo Carlos Alberto.

As mulheres mais activas ‒ a minha mãe, irmã e cunhadas ‒ iam ocupar-se dos afazeres da cozinha e mesa de refeição, os jovens ‒ a minha irmã, a minha prima e o irmão mais o Hélder ‒ iam conversar ou fazer brincadeiras próprias da idade ‒ eu e o Carlos, os mais novos, ficávamos entretidos com os brinquedos inventados ou trazidos de casa; os mais velhos de todos conversavam, se calhar, queixando-se das suas maleitas.

Recordo muito bem a imensa paciência que o meu avô Alves tinha para lidar com animais. Usava uma pequena navalha para cortar quase tudo, desde os pequenos pedaços de pão até à carne e ao queijo. Servindo-se dela recolhia alimentos que dava ao cão rafeiro, que existia lá em casa ‒ o Seta ‒ já que ao gato ‒ o Tarzan ‒ se limitava a fazer-lhe festas quando lhe saltava para o colo. Mas do que eu gostava mesmo era de ouvi-lo contar estórias das suas campanhas em Moçambique e em França! Diziam os adultos que se repetia muito, mas, para mim, os relatos tinham sempre o sabor de novidade. Precocemente foi atingido por uma notável surdez ‒ sabemos hoje, consequência das muitas tomas de quinino para combater as febres palúdicas ‒, contudo, com aquela forma própria de ser característica dos alentejanos, continuava a falar, pausadamente, para meu agrado, porque, julgo, nem o Carlos, mais novo que eu dois anos, nem todos os restantes já ligavam grande importância ao que vivera nas campanhas de pacificação e na Grande Guerra. Gostava de recordar o exercício da autoridade militar que cresceu com ele, pois, assentou praça com a idade de quinze anos e, porque era espigado, na arma de Cavalaria. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, coisa que, na época, não era frequente. E, tendo estatura elevada, tinha, também, uma especial aptidão para andar à pancada.

Chegada a hora do almoço ‒ cozinhado num fogão a lenha, de ferro e sempre preto ‒ lá íamos para a mesa, montada numa divisão da casa, designada por marquise, um acrescento ao prédio, ainda hoje perceptível, apoiado em pilares de ferro, com janelas amplas de vidro (agora já desaparecidas).

Da marquise tinha-se uma soberba vista do rio Tejo, lá mais em baixo e, do outro lado, do Porto Brandão ainda e só único agregado urbano naquela zona da colina verdejante da margem esquerda. Imediatamente, do outro lado da travessa da Boa-Hora, avistava-se a parada do quartel do Regimento de Infantaria n.º 1.

Esta divisão da velha casa pombalina dos meus avós (o corredor de entrada, era revestido com um amplo painel de azulejos com motivos azuis e amarelos) era o ponto de convivência social durante todo o dia. Confinava com a cozinha, a casa-de-banho e o quarto dos meus avós, por onde se podia entrar através de outra porta. Era tão grande que tinha espaço para, junto das paredes, estarem duas boas máquinas de costura, um divã, uma cristaleira onde se guardavam os pratos, copos e talheres e, no centro, a imensa mesa ‒ que encolhia e esticava ‒ com cadeiras onde nos sentávamos para tomar as refeições. E ainda sobrava parede, para um amplo planisfério onde o meu avô ia marcando com alfinetes as reconquistas feitas pelos Aliados na avançada contra as forças do Eixo.

Durante a refeição era o momento das conversas cruzadas, das idas à cozinha donde se voltava com grandes travessas de comida ou terrinas de sopa. Não tenho a certeza se sempre aconteceu assim, mas, creio, a partir de certa altura, o meu lugar era à direita do meu avô, de costas para a vista sobre a travessa da Boa-Hora.

De uma vez, no lado de lá da mesa, na minha frente, estava a Bernardette ‒ a Detinha, como lhe chamava toda a gente ‒, a minha irmã, que me começou a fazer caretas e a provocar. Sempre gostei dela de uma maneira muito especial. Tão especial que, recordo-me, em pequenito, nutri o desejo de casar com ela, vejam bem! Mas, também é verdade, nasci com um feitio irritadiço e incapaz de medir consequências quando perco a cabeço. Assim, zangado, peguei no garfo e zás, lá vai ele direito à cara da Detinha! E não é que ficou espetado um pouco abaixo da zona orbital do olho esquerdo!

Já não me lembro bem, mas devo ter apanhado uma valente sova dada a várias mãos, tão valente que, por questões pós-traumáticas, devo ter perdido a memória das dores nas nádegas. Não esqueci foi o garfo pendurado na zona do malar esquerdo da face da minha irmã.

25.11.20

Páginas do Meu Diário - 6


Luís Alves de Fraga

16 de Fevereiro de 2019

Afinal, os receios de ontem, eram infundados: nem rastos da mais ligeira constipação! Estou bem.

A Madalena, porque é sábado, levantou-se um pouco mais tarde e, enquanto preparava o pequeno-almoço, ligou o pequeno aparelho de rádio ‒ coisa barata e de fraquíssima qualidade sonora ‒ que temos na cozinha. Fomos falando e ouvindo um programa onde os locutores, à viva-força nos querem impor boa disposição. É uma atitude que me causa certos engulhos, pois nem sempre foi assim. Tempos houve de contida boa disposição e, às vezes, já lá vão muitos, muitos anos, de declarada indisposição.

Antes da televisão, o rádio ou, dizendo de forma completa, a radiotelefonia era o meio de comunicação com o mudo fora do nosso círculo privado de relações.

No ano em que nasci, quem nas cidades portuguesas tinha um aparelho de telefonia e estava interessado em ouvir as notícias divulgadas pelos Aliados, escutava, em segredo e com o som reduzido a quase nada, a BBC. Dizia-se que andavam na rua viaturas automóveis a verificar quem estava a escutar aquela estação de rádio britânica. Tanto quanto sei, é mentira: a polícia política perseguia, por denúncia, aqueles sobre quem recaía a suspeita de ouvirem a BBC ou de se manifestarem abertamente a favor da vitória dos Aliados. O que, na verdade, era alvo de perseguição através de um sistema de detecção de emissão rádio eram comunicações não autorizadas. Dessa acção estava encarregada, tanto quanto sei, a Legião Portuguesa

Essa organização paramilitar havia sido criada pelo Decreto-Lei n.º 27 058 de 30 de Setembro de 1936, com o fim de «defender o património espiritual da Nação e combater a ameaça comunista e o anarquismo».

Note-se que não era uma força partidária semelhante às já existentes na Alemanha ou na Itália. Salazar opusera-se a que se criassem tais tipos de bandos; estava-se em Portugal, no país dos brandos costumes, católico, conservador e não belicista. A política a fazer não passava por se mostrar agressiva, viril e guerreira, como acontecia na Itália de Mussolini. A nossa tendia mais para a sotaina ou para o hábito fradesco. Por isso mesmo, muito mais cínica, mais subtil e mais sibilina. Assim, a Legião Portuguesa, onde militavam os apoiantes incontestáveis de Salazar e do Estado Novo, ficou integrada na estrutura do Estado, com uma organização militarizada, ainda que, nesses anos, fosse a ponta-de-lança do apoio ao nazismo hitleriano. Nas fileiras da Legião falava-se abertamente na intervenção na guerra, ao lado dos exércitos germânicos, contra a vontade de Salazar, apostado na manutenção de uma neutralidade a todo o custo.

A outra vertente, essa sim, assumida pela Legião era o combate ao comunismo e ao anarquismo. E é conveniente que se perceba a razão de tal luta feroz.

Em Portugal, já só depois do final da Grande Guerra é que surgem organizados em partido os primeiros comunistas; não tinham força nem grande implantação, por falta de influência estrangeira e, verdade seja, o operariado fabril, por cá era diminuto e havia, há muito ‒ ainda no final do século XIX começo do seguinte ‒, sido captado pelo Partido Socialista, cuja maior implantação era na Covilhã ‒ indústria de lanifícios ‒ e no Porto, mas, o grosso dos trabalhadores, organizados em sindicatos, recebiam formação ideológica de matriz anarquista. Foi essa que marcou a luta com características quase terroristas durante grande parte da 1.ª República. Era o anarco-sindicalismo na sua vertente mais aguerrida. Ora, no final dos anos trinta, nem o anarco-sindicalismo estava erradicado de Portugal nem o comunismo tinha atingido grande preponderância na luta contra a ditadura. Daí que a Legião Portuguesa zelasse pela tranquilidade dos Portugueses, lutando contra ambas as correntes ideológicas.

No nosso país, uma certa classe média, desejosa de tranquilidade social, mesmo que à custa de ceder a liberdade de expressar livremente o pensamento, pouco antes do ano do meu nascimento, apanhara um susto de grande dimensão: mesmo ao lado, em Espanha, havia caído a Monarquia e foi proclamada a República que, de imediato, extravasou ‒ e percebe-se qual o motivo ‒ uma raiva surda existente nos meios rurais e urbanos de província contra a classe mais endinheirada do país, em particular os grandes agrários da Andaluzia e da Extremadura, e contra o clero católico, que, há muito, se havia conluiado com a Monarquia, com os grande senhores da terra e com o grande capital. A República trouxe uma onda raivosa de vingança, que só perdeu força quando se saciou no sangue de monges, monjas, padres e alguns latifundiários.

Embora aparentemente houvesse ordem na Espanha republicana, o certo é que, em especial, os anarquistas se foram impondo na acção reivindicativa e revolucionária. Hoje sabe-se ‒ como se soube na altura, mas não convinha divulgar ‒ os chamados rojos (vermelhos) eram muito menos comunistas do que anarquistas, acabando os primeiros por ter de ir a reboque dos segundos ‒ quase até ao final da Guerra Civil ‒ para controlar os desmandos inconsequentes de que eram autores.

A revolta de parte do Exército espanhol contra a República deu origem ao começo da Guerra Civil. Foram três anos de luta fratricida, envolvendo espanhóis e outros voluntários que lutaram em ambas as partes em confronto. No dia 1 de Abril de 1939, Franco, em Madrid, proclamou a vitória alcançada com o apoio descarado de tropas italianas, às ordens de Mussolini, e alemãs, às ordens de Hitler. Também Salazar, como pode e ao seu jeito sibilino, auxiliou Franco e a ditadura, que deixou atrás de si milhares de mortos. O receio do contágio dominou o ditador português e levou-o a adoptar medidas rigorosas contra as ideologias políticas mais atrevidas que, também, existiam entre nós. A verdade é que, com a derrota da República em Espanha, pode dizer-se, morreu o anarquismo enquanto força revolucionária; tornou-se num grupo de intelectuais bem-pensantes, mas quase incapazes de mobilizar qualquer força. O verdadeiro perigo, para os ditadores europeus e mundiais, veio a afirmar-se, através dos comunistas arregimentados pelo Partido articulado com Moscovo e seguindo directivas de lá emanadas.

A luta anticomunista acabou por servir de passaporte para os fascismos (e sobre o facto de os designar deste modo haveria muito a explicar) terem aceitação junto das democracias liberais da época receosas de revoluções soviéticas.

24.11.20

Sentimentos


Luís Alves de Fraga

 

Fala-se de sentimentos como algo que transportamos, que nasce connosco, que cultivamos, que aprendemos, que mostramos, que exaltamos. Ora, gostaria de reflectir hoje, um pouco, sobre essa coisa que chamamos sentimentos.

 

Já procuraram no dicionário o significado da palavra? Pois eu topei com dezoito diferentes! Dezoito sentidos diferentes para a utilização desta palavra, vejam bem!

Se me quiserem acompanhar, limitarei o uso desta palavra ao “estado afectivo que tem por antecedente imediato uma representação mental”.

Não oferece dificuldade em perceber o que é “estado afectivo” ‒ aquele que envolve os afectos ‒, contudo, já pode causar alguma estranheza o uso do conceito “representação mental”. Peguemos nele.

 

O homem percepciona o que vê, ouve, palpa, cheira e prova. O mundo é definido pelos sentidos e é partindo deles que se criam no cérebro imagens do que se vê, ouve, palpa, cheira e prova. São as nossas representações mentais.

Numa fase primária ou inicial todos nós percepcionamos representações mentais iguais, mas, na realidade, não são exactamente iguais, porque a minha representação mental não é, nem pode ser, igual à de quem está ao meu lado a ver, ouvir, palpar, cheirar ou a provar o mesmo que eu. E não é por ver, ouvir, palpar, cheirar ou provar melhor ou pior do que eu! É, simplesmente, porque não somos iguais. O que nos separa e distingue é um outro conceito tão subtil como o primeiro: a cultura.

 

Não me refiro àquilo a que, vulgarmente, designamos por “cultura”, ou seja, o conhecimento de literatura, de pintura, de música, de canto, de dança clássica ou folclórica, de arquitectura e de outros saberes tidos como diferenciadores das pessoas. Refiro-me a um outro conceito de cultura que, na frase simples dos sociólogos e dos antropólogos, se define por tudo aquilo que o Homem aprende com a, e na, sociedade. Tudo, desde o falar, o comer, o vestir, o amar, o odiar, o chorar, o rir, a dor, a alegria, a tristeza, a higiene, a delicadeza, a brusquidão, o pecado, a virtude, enfim, tudo, mas mesmo tudo, porque o Homem nasce nu, nu de todo o conhecimento, de todo o saber, de toda a ignorância ‒ porque a ignorância também se aprende ‒, de toda a maldade e de toda a bondade. O Homem é um dos seres a quem a Natureza não dotou de capacidade de, logo após o nascimento, saber sobreviver autónomo, embora seja o único ser racional e, por isso, capaz de desenvolver raciocínios abstractos. Tão abstractos que a maior parte da vida se passa dentro da sua cabeça, na sua mente. E a vida do Homem só tem sentido se passar pela sua capacidade de abstracção, pela sua capacidade de gerar símbolos que só ele é capaz de descodificar e de lhes atribuir significado, pois, caso contrário, será igual a qualquer ente irracional feito para nascer, viver e morrer sem deixar mais de si do que a descendência procriada.

 

Creio que, pelo dito, se pode perceber a diferença existente em cada um de nós em relação ao seu semelhante ‒ e não mais do que isso ‒, pois cada um de nós é irrepetível, mesmo sendo um clone de um seu aparentemente igual. A diferença está nas nossas representações mentais, em especial aquelas que jamais passam pelos elementos sensoriais: vista, ouvido, paladar, olfacto e tacto, embora os possam ter como ponto de partida. É a cultura o elemento que faz a diferença e aquela é apreendida de formas distintas por cada um de nós, ainda que tendo passado pelos mesmos locais, pessoas, livros, mestres, sensações e, até, progenitores.

Assim, a educação dos sentimentos é uma aparência, porque cada ser humano tem os seus sentimentos susceptíveis de serem feridos, acarinhados ou apaziguados como só ele sabe e ninguém mais! Por isso, o ser humano precisa de isolamento para sarar os seus sentimentos, se acaso ficam doentes. E, da doença dos sentimentos, unicamente o próprio pode saber.

 

A Natureza não podia ser mais perfeita quando criou o Homem, pois só ele é capaz de se desvendar e desvendar a Natureza, desvendar o seu Criador.

22.11.20

Observações numa tarde de confinamento


Luís Alves de Fraga

 

Já repararam que ninguém refere as profissões dos infectados com Covid 19?

Citam-se as idades, os sexos, os concelhos de residência, mas nada de dizer as profissões, com excepção dos trabalhadores na área da saúde. Julgo, seria interessante averiguar o motivo deste silêncio.

 

E quanto à indiferença sobre os cuidados e cautelas para evitar as infecções?

Vá, quem não foi ainda, nas manhãs de sábado e de domingo, a supermercados, grandes superfícies de vendas e a outros locais de abastecimento e falem-me, depois, do perigo de congressos políticos! Reina entre nós a mais total inconsciência apoiada na mais incrível maledicência sobre o Governo e as suas medidas sanitárias.

 

E, acaso, deram pela ausência de informação sobre custos de internamentos hospitalares de infectados com a tal Covid 19?

É que talvez fosse tempo de experimentar explicar-nos ‒ em especial aos menos cautelosos e mais refilões ‒ quanto custa um dia de internamento numa enfermaria comum, numa de cuidados intermédios, com consumo de oxigénio, e numa de cuidados intensivos! Eram, números que poderíamos atirar à cara de todos aqueles que pedem mais e mais subsídios para suportar a crise e fazem manifestações sem distanciamentos, nem máscaras, nem cuidados! Acima de tudo, porque são números que todos pagamos e vamos pagar! Temos muita pena dos empresários de hotelaria e de restauração, mas quando será que começamos a ter pena de nós, meros contribuintes de impostos?

 

E, para não vos cansar muito, já perceberam que quantos mais mortos por Covid 19 são anunciados em cada dia, em cada país ‒ e no nosso também ‒ maior é a indiferença geral?

A coisa explica-se com facilidade.

Um tipo estrangulado por um polícia em plena rua impressiona muito mais um país inteiro, um continente e um planeta do que uns largos milhares mortos por contágio na Terra. É que, quanto maior for o número publicitado, mais pequena se torna a monstruosidade... Cinco milhões de judeus mortos pelos nazis em campos de concentração durante a 2.ª Guerra Mundial, são cinco milhões, mas um negro morto a sangue-frio por um polícia americano é UM ser humano! É que fugir aos impostos com desvio de milhões para paraísos fiscais são milhões, mas UM pequeno ladrão roubar a carteira a um cidadão pacífico e tranquilo é UM ROUBO censurável e sujeito a imediata condenação!

A miragem do impossível, do incontável, do inumerável reduz-lhe a importância e é esse esquisito fenómeno que leva muitos inconscientes a porem em risco a vida de todos nós, servindo de veículos de transmissão do vírus!

 

Boas reflexões, meus amigos e cuidem-se, porque, ao fazê-lo, estão a cuidar de todos os concidadãos portugueses e da Terra.

05.11.20

A saúde mental dos Portugueses


Luís Alves de Fraga

 

Não careço de ser especialista em medicina mental para perceber certas evidências próprias do senso comum e entre elas está o resultado da tensão psíquica que esta pandemia vem gerando entre nós, pelo menos entre os mais preocupados com a segurança sanitária individual e colectiva.

 

A sociedade de consumo, esta onde vivemos, baseada no uso e deita fora, vocaciona-nos ‒ uns mais do que outros, naturalmente, em função da educação e, até, das posses financeiras ‒ para tudo (e, quando digo tudo, é mesmo tudo) ser fugaz em nós. Começou por ser a moda a impor-nos a mudança no trajar e agora já se estende às relações pessoais, ao emprego, ao estudo, às leituras, à comida, às viagens e, por conseguinte, a todos os hábitos, que eram, isso mesmo, habituais. Este mesmo texto só vai ser lido por umas escassas duas dezenas (se for!) dos meus amigos, de entre a vasta panóplia daqueles que poderiam ler e não lêem.

‒ Querem saber o motivo?

‒ Porque já vai extenso! Porque demora, porque não se limita a uma mensagem rápida para ser apreendida com um só olhar.

Usufruir é um vocábulo que perdeu sentido, na exacta medida em que usufruir estava associado à ideia de permanência, de remanso, de tranquilidade, de sentir com lentidão. Usufruir, agora, é passar e seguir, é, acima de tudo, poder dizer que se teve ou esteve.

 

A pandemia veio para ficar ‒ está a usufruir de nós, no sentido tradicional do termo! ‒ num momento em que já não temos paciência, nem hábito, nem capacidade para enfrentar seja o que for mais demorado do que o tempo de arder um pau de fósforo.

Isso justifica quase tudo o que nos está a suceder, desde não deixar de produzir, trabalhando, até não conseguir estar em casa, ocupando o tempo com tudo aquilo que não se pode fazer porque se está, usualmente, fora de casa.

Como historiador, ocorre-me um exemplo do tempo medieval ‒ um tempo em que a ideia de consumo era bem diferente da de hoje. Vamos olhar para trás e situar-nos no Inverno do ano de 1140, naquilo que começava a ser Portugal?

 

Pois bem, estamos no mês de Dezembro, numa cidade ou vila do Norte, à sombra protectora do castelo senhorial. Chove e faz frio. As janelas das casas e do castelo não têm vidraças. No castelo, o nobre, a família e os seus familiares chegados passam o dia e grande parte da noite na ampla cozinha onde, numa grande lareira, se colocam toros de madeira e se cozinham as refeições. A criadagem mistura-se com os senhores, servindo-os de comida e vinho. Conversa-se, fia-se, tece-se em teares caseiros, canta-se, dança-se, dormita-se, ouvem-se e contam-se histórias, reza-se e só muito tarde se recolhem aos aposentos frios onde existem camas, tapetes no chão, peles de animais e, nas paredes e janelas, grandes tapeçarias para quebrar o vento e a chuva que entra pelas estreitas frestas. Os dias sucedem-se sempre iguais até que a Primavera começa a despontar e se podem aparelhar os cavalos para se caçar aves ou javalis, cabras monteses ou outros animais de menor porte. Eventualmente, se houver conflitos com os senhores vizinhos, começam-se a fazer os preparativos para, no tempo mais quente e seco, iniciarem-se as investidas militares.

 

Nas casas da vila ou cidade, os habitantes, em espaços muito mais exíguos, menos confortáveis e, por vezes, menos aquecidos, ocupam-se de maneira semelhante, com menos dança e menos música, mas, quiçá, com mais histórias e vagas saídas aos campos para colher alguns frutos e caçar, com armadilhas, carne fresca de coelho. Hábitos de higiene é coisa que não existe. A água recolhe-se em poços, nas traseiras das casas, ou directamente da chuva, em barricas de madeira. No fundamental, os habitantes convivem dentro de casa ou na igreja onde vão orar.

 

Morria-se mais cedo de doenças que hoje não matam de imediato, mas sabia-se matar o tempo de acordo com as estações do ano, guardando-se as mais quentes para sair de casa. Sabia-se estar confinado e havia conformação com as impossibilidades. As pessoas desfrutavam do que tinham, uns mais, porque tinham mais, outros menos, porque tinham menos. E não havia distúrbios mentais, nem psicoses, para além das resultantes de consanguinidades ou taras de nascença.

Nas nossas casas, agora, temos tudo e, afinal, sentimos como se nada tivéssemos, porque nos sobra a ansiedade de não ter nada. Esta é a cultura do consumo, a da necessidade de ter necessidade.

Se fossemos capazes de perceber este fenómeno talvez conseguíssemos, agora, num tempo de resguardo, gozar melhor do que temos para viver rodeados do mundo que nos entra pela porta dentro em rajadas de comunicação.