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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

29.10.20

Elísio de Moura e Fernando Fonseca


Luís Alves de Fraga

 

Provavelmente, estes nomes nada dizem aos meus leitores, contudo, são referências da medicina portuguesa.

Do primeiro contam-se ‒ ou contavam-se ‒ muitas histórias verdadeiras, do segundo, nem tantas. Ambos foram professores de medicina. Elísio de Moura era mais velho e a ele se devem os primeiros estudos de neurologia e psiquiatria feitos em Portugal; Fernando Fonseca destacou-se pela cautela dos seus diagnósticos.

 

De Elísio de Moura, bracarense distinto, corre que foi consultado por um paciente que sofria, há muito, de dores de estômago. A consulta foi feita em desespero de causa, porque o homem já havia corrido tudo o que era hospital e consultório médico sem qualquer proveito. O professor ouviu, tranquilamente e sem interromper, as queixas do doente e, no final, simplesmente lhe disse:

‒ Rape o bigode ‒ um bigode de estimação, que o queixoso usava desde jovem.

Intrigado, pagou a consulta e em casa desabafou, com a mulher, a fúria contra o prestigiado clínico.

‒ Rapar o bigode, ele está parvo ou julga que eu sou louco? ‒ disse para a plácida e desesperada esposa.

Os tempos passaram e as dores continuaram. A mulher, sem ter onde se agarrar, dizia-lhe para fazer o que o professor havia mandado. Já desesperado o homem, certa manhã, rapou o bigode. Após quatro ou cinco semanas, as dores no estômago desapareceram ‒ Tenho de ir falar com o médico ‒ resmungava com a esposa. E foi.

 

Perante o mestre o paciente só lhe fez uma pergunta:

‒ O que é que o meu bigode tinha a ver com as dores no estômago?

Elísio de Moura, com bonomia, explicou:

‒ Olhe, o senhor é um vaidoso e tem um tique, lamber, com o lábio inferior, o lábio superior e, por causa de não aceitar ter um bigode já com pêlos brancos, pinta-o de preto, donde, estava sempre a engolir tinta que lhe agredia as paredes do estômago.

O homem rendeu-se, pois, sem bigode e com tique, deixou de sofrer de padecimentos estomacais.

 

De Fernando Fonseca sei uma história ‒ se calhar há muitas mais ‒ que passo a contar.

Perante um quadro clínico difícil, o médico assistente de uma doente com uma embolia pulmonar, quase incapaz de falar e respirar, com a vida suspensa por um fraco fio de cabelo, aconselhou a família a que permitisse chamar o afamado professor para dele obter um diagnóstico mais preciso e a terapêutica mais aconselhável, que ele, médico da paciente há vários anos, não conseguia acertar.

Veio o professor Fernando Fonseca ao quarto da doente, sentou-se e, quando o médico assistente ia explicar o que se passava, com voz imperativa disse:

‒ Deixe a doente falar ‒ e, depois, com tom carinhoso, continuou ‒ Ora, minha senhora, como puder, conte-me tudo o que sente. Não se preocupe com o tempo, porque eu espero o que for necessário.

Ao cabo de mais de uma hora o clínico, mestre de futuros clínicos, já fora do quarto, fez o diagnóstico do mal e deu a indicação da melhor terapêutica a seguir.

 

São duas histórias que podiam acabar aqui, mas, quanto a mim, algo ficava por dizer. Faltava, tal como me dizia o professor da quarta classe, a moral da história, o mesmo é dizer, a conclusão.

São vários os laços que unem estes dois episódios, mas destaco dois, por os julgar mais importantes: o respeito pelo doente mais aquilo que ele tem para dizer e o olho clínico, ou seja, tudo o que não é dito, mas é intuído pelo médico.

 

Trago isto à colação porque, como todos já reparámos, perante médicos feitos a partir dos alunos mais classificados do nosso ensino, só há, usualmente, duas ou três coisas às quais estes jovens clínicos prestam real atenção: ao computador e ao teclado, aos meios auxiliares de diagnóstico ‒ análises, TAC, ressonâncias magnéticas, ecografias e mais uma imensa panóplia que, felizmente, existem ‒ e à receita medicamentosa. O doente, enquanto pessoa, assim como aquilo que ele diz, o que veste, as atitudes que toma, tudo isso passa ao lado destes pólos de uma máquina que serve os seres humanos, mas pouco ou nada têm a ver com humanidade. São médicos sem o tão importante e necessário olho clínico, por isso, ficam tão longe de Elísio de Moura e Fernando Fonseca, que, com muito pouco para ajudar no diagnóstico, faziam verdadeiros milagres.

13.10.20

Fases da minha vida ‒ 70

(Portugal em Junho de 1975)


Luís Alves de Fraga

 

Chegado a Lisboa no começo da segunda quinzena de Maio de 1975, apanhei em cheio com o confronto que estava a delinear-se entre a extrema-esquerda e a Igreja, nomeadamente o patriarcado.

Tudo isto para mim era uma novidade, habituado, como estava, à existência de conflitos brandos ‒ os que o foram ‒ entre negros e brancos, em Moçambique.

Não me apercebi logo do esforço notório que o Partido Socialista (PS) estava a fazer para pôr termo a tais desentendimentos, assim como, de uma maneira menos evidente, o Partido Comunista (PCP) evitava incentivar tal tipo de luta. Foi já dois ou três anos depois que percebi o alcance da prudente jogada destes dois grupamentos políticos, pois uma das causas que mais corrompeu a 1.ª República e lhe ditou o fim foi a necessidade imperiosa que, na altura, havia de desligar a Igreja do Estado. Ora, se em 1911 o clero católico era um adversário da modernidade, que a República perseguia sem quartel para dotar a nação com uma mentalidade próxima da das outras nações da Europa, em 1975 os católicos não representavam qualquer tipo de reacção à liberdade e à democratização. O pior adversário era outro e já havia sido frenado com a nacionalização da banca.

 

Nada disto eu sabia com a certeza com que agora o afirmo, mas pressenti o erro ‒ todos os erros ‒ que resultava da exaltação dos grupelhos de extrema-esquerda, dando de Portugal e das mudanças em curso uma imagem de caos. Foi o caos que eu senti naqueles meses de Maio e Junho e isso foi determinante para a forma como me posicionei perante os acontecimentos.

 

Havia dado explicações de política na cidade da Beira, a pedido de sargentos e um ou dois oficiais da Força Aérea, ficando-me por ensinar os rudimentos da democracia e das linhas gerias programáticas dos partidos socialistas/sociais-democratas, comunistas e democratas cristãos, mas, no entanto, não me passou pela cabeça falar dos movimentos extremistas de esquerda e de direita ‒ ingenuidade e ignorância minhas, por falta de experiência. Ora, o processo político em Portugal estava, nesses meses de Maio e Junho, a desenrolar-se à volta dos grupos que se reivindicavam da pureza marxista, contrária à práxis do PCP.

Contudo, para se compreender o que se passava (e passou pela minha mente) há que olhar para esses tempos com os olhos dessa época e não com toda a carga do que sabemos agora.

 

Antes do mais, é preciso ter em atenção que a maioria dos portugueses nada percebia de política, de democracia e de liberdade. O que nos enchia a cabeça ‒ e, aqui, para efeitos de explicação, incluo-me nessa maioria ‒ era a propaganda anticomunista herdade do derrubado fascismo e o medo de voltar a uma ditadura. Logo a seguir ao dia 25 de Abril, ou, talvez melhor dito, a seguir ao dia 1 de Maio de 1974 iniciou-se um processo de clivagem na sociedade ‒ urbana, em primeiro lugar, e rural um pouco mais tarde ‒ não propriamente dito com base em ideologias políticas, mas escorado na imensa propaganda ouvida e na percepção que cada um teve de qual o lado que mais lhe convinha ou que melhor servia ‒ ou podia vir a servir ‒ os seus interesses. O apelo das extremas-esquerdas foi muito forte, pois tudo se explicava com uma linearidade meridiana através da livre expressão da vontade popular; esta seria a máquina que puxaria a revolução. Quem jamais havia pensado em política absorvia com facilidade a lógica do novo movimento. Isso foi o que encontrei ao chegar a Lisboa.

Todavia, devo acrescentar que, pelos meus contactos e conhecimentos, dei também com uma significativa adesão ao Partido Comunista, com filiação ou mera simpatia, de gente que nunca tivera qualquer manifestação política.

Na altura, senti que havia oportunismos a todos os níveis da parte de quem não queria ficar para trás na revolução que, em Maio, ia já adiantada.

 

Em Lisboa e na região de Estremoz (porque, para lá me deslocava aos sábados e domingos) as fracturas sociais eram muito mais evidentes em Junho do que no mês de Dezembro de 1974, quando havia passado a licença com a família. O clima era de forte tensão entre os que temiam um futuro incerto já habituados ao ramerrame do Estado Novo, no qual as classes médias se julgavam seguras, embora o custo de vida estivesse a aumentar com uma velocidade impressionante.

No meio militar onde eu estava inserido naquele momento ‒ a comissão liquidatária de todos os conselhos administrativos da Força Aérea em Moçambique ‒ curiosamente imperavam três tipos de posições: aqueles que logo fizeram uma adesão à extrema-esquerda, os moderados e os expectantes. Não havia, felizmente, reaccionários entre a oficialidade vinda daquela colónia.

No entanto, para que o quadro por mim encontrado em Portugal fique claro, nos meses de Maio e Junho, tenho de fazer aqui uma referência aos governos de Vasco Gonçalves e à figura do general Costa Gomes. Comecemos pelo primeiro.

 

O coronel Vasco Gonçalves, engenheiro militar, foi um dos oficiais mais graduados que aderiu ao MFA, ainda antes do golpe militar de 25 de Abril de 1974 (é vulgar esquecer o coronel Marcelino Marques, de administração militar, que assumiu, na madrugada de 25, o comando da Escola Prática de Administração Militar e que, de há muito, era contrário à situação ditatorial, podendo admitir-se que teria algumas e clandestinas ligações ao PCP) sobre quem recaiu a escolha dos capitães para presidir ao 2.º Governo Provisório, na sequência do pedido de demissão do Dr. Palma Carlos, um velho democrata identificado com os ideais liberais das alas oposicionistas ao salazarismo.

Vasco Gonçalves era uma figura controversa e sobre ele teceram-se ‒ como é habitual no nosso país ‒ as mais díspares considerações, quase sempre pouco abonatórias do seu carácter e das suas posições políticas. Conheci-o, sem qualquer intimidade, alguns anos depois de estabilizada a democracia; sem o afirmar, percebia-se que navegava nas águas do PCP ou, pelo menos, deixava que os comunistas se apropriassem da sua imagem para o colarem ao partido. Em concreto, e para garantir a verdade histórica, posso dizer que, politicamente, enquanto governou ‒ e assisti aos seus governos de Maio a Setembro de 1975 ‒ foi, tanto quanto permite uma análise que eu quis fosse imparcial, não deu mostras de aceitar orientação política do PCP ou de qualquer outro agrupamento partidário; o seu comportamento, pareceu-me, na altura e hoje, resultou da sua formação marxista com evidentes conotações revolucionárias nesse domínio ideológico. Do que me recordo ‒ e tenho boa memória desses factos ‒ Vasco Gonçalves tentou assumir o papel do condutor político de uma revolução popular sem respeito por modelos pré-determinados. O modelo era o dele e a revolução seria a sua. Julgo poder, hoje, tantos anos passados sobre os acontecimentos, admitir três conclusões: entre Vasco Gonçalves e Varela Gomes não existiam tantas diferenças como se podem imaginar: ambos tinham modelos pessoais para a revolução; a grande proximidade do PCP à pessoa de Vasco Gonçalves resultava da necessidade do partido controlar o militar e não de este se deixar controlar por aquele; a actuação política de Vasco Gonçalves, enquanto foi Primeiro-ministro, balançava-se entre um comunismo leninista e um comunismo popular, sem se fixar a nenhum deles, mas, exactamente por isso, passível de incentivar a extrema-esquerda popular e populista. Por causa destas indefinições quanto a modelos políticos prévios, falou-se em gonçalvismo e teve de se anular a força desencadeada por ele, através de, afastando-o da governação, dar oportunidade à preparação do golpe militar que derrubasse a extrema-esquerda sem anular a importância democrática do PCP, tão necessária à consolidação da democracia como o sal é importante para temperar os alimentos. De certa maneira os comunistas preferiram sacrificar Vasco Gonçalves para não serem sacrificados, cooptando-o, depois, para o seu seio, quando já era inofensivo, ao mesmo tempo que lhe davam a oportunidade de entrar na História pela porta principal do partido com mais tradição de luta antifascista no Portugal de Salazar.

Para concluir como concluo tem de se olhar o passado e os factos sem preconceitos e sem predisposições ideológicas. É evidente que uma tal percepção não era a minha nesses meses conturbados de uma revolução onde andávamos às cegas a palpar caminhos como o fazem os cegos. Vasco Gonçalves, nos meses de Maio até Setembro, não era a minha aposta política; não era, porque fugia aos meus modelos político-sociais aprendidos na universidade e condicionados pela, ainda em mim subsistente (embora a negasse), propaganda salazarista.

 

E o general Costa Gomes?

Não o conhecia e só vim a falar-lhe muitos anos depois da revolução. Mas ouvia o que se dizia dele em todos os quadrantes da sociedade portuguesa. E foi por causa desse diz-que-diz que me foi possível, bem mais cedo do que em relação ao general Vasco Gonçalves, traçar um perfil do Presidente da República de então.

Oficial de cavalaria, conclui eu que ele tinha um raciocínio lógico, ponderado e pouco especulativo, em consequência de, muito jovem, ter acrescentado ao curso da Escola do Exército, a licenciatura em Matemáticas. Essa ciência caracteriza-se pelo gosto da dedução lógica para chegar a resultados concretizáveis. Naquele tempo, uma licenciatura depois de se ter assegurado o ganha-pão de todos os dias, era um luxo diletante só praticável por quem gostava da ciência que ia estudar. E a análise da vida do general leva-me a supor que tenho razão no perfil que lhe tracei, pois os matemáticos gostam de jogar com certezas, aceitando, contudo, a análise de hipóteses que cheguem ao resultado preciso.

De Rolha, como o alcunhavam na época ‒ não se deixava comprometer com qualquer canto de sereia ‒, o general Francisco da Costa Gomes, não tinha nada ou, quanto muito, a mera aparência para aqueles que não medem com precisão as decisões a tomar. Muito novo foi chamado a desempenhar funções políticas no âmbito castrense e foi no desempenho delas que acompanhou a revolta dos altos comandos militares, em Abril de 1961. Salazar afastou-o, contudo, não o impediu de chegar ao generalato e nesse posto deu provas de saber conduzir a guerra e a política em Angola. Cautelosamente, no dia 25 de Abril, recuou, embora fosse mais antigo no posto de general, para dar destaque a António de Spínola. Foi, quase pela certa, um passo bem premeditado, pois sabe-se que as revoluções, em regra, engolem os primeiros a saltar para a liça. E Costa Gomes devia saber que Spínola, por vaidade ou necessidade de prestígio, ir-se-ia chegar à ribalta sem ter, contudo, a flexibilidade política para suportar os altos e baixos que se iriam seguir à vitória do golpe militar. Foi isso que aconteceu.

Costa Gomes sucedeu na Presidência da República a Spínola e teve a sensibilidade, a cautela e a astúcia de jogar com os interesses em presença, fossem militares ou civis, de forma a ir, navegando à bolina, conduzindo Portugal para uma democracia estável e estabilizada. Julgo que não haveria, entre os militares mais velhos e mais antigos, nenhum capaz de liderar o processo político até ao ponto de se votar e aprovar a Constituição e marcar eleições para a Presidência da República, mostrando ao mundo como se passa de uma ditadura estabilizada a uma democracia estável.

 

Não quero dizer que a consolidação da democracia e da liberdade foram fruto de uma ou duas ou, até, três figuras políticas ou militares. Quero, isso sim, deixar explícito o clima que se vivia em Portugal alguns meses antes de começar o denominado Verão Quente. Estava-se em constante desequilíbrio de forças e um aspecto que me espantou ao ouvir e ler a propaganda de todos os partidos, da direita à esquerda, foi o invocar o socialismo como bandeira de atracção das massas populares. Até o CDS, em dado momento, pela boca de Freitas do Amaral, se reclamou de socialista!

Para quem como eu chegou à revolução com ela já em andamento acelerado, foi complicado escolher o rumo político a adoptar para não engrossar sectores que, numa reviravolta possível e, de certa maneira, previsível, engolissem a revolução, as liberdades e a democracia, porque todos se reclamavam, também, de democratas.

Embora eu fosse capaz ‒ consequência da formação universitária já adquirida ‒ de perceber que havia tipos diferentes de democracias, uma grande maioria da população confundia-as e foi dessa confusão e dos excessos populares dos grupos políticos de extrema-esquerda que nasceu a aversão ao PCP. Aversão que era muito mais visível e sensível no Norte do que no Sul do país. E havia quem explorasse esse sentimento.

Recordo, por exemplo, o papel anticomunista do brigadeiro Pires Veloso ‒ o vice-rei do Norte ‒ e do líder da Confederação da Agricultura Portuguesa (CAP). No momento em que se carecia de quem clarificasse o panorama revolucionário, separando as águas, muitos ‒ da extrema-esquerda à extrema-direita ‒ empenhavam-se em acirrar ódios e divergências.

 

Embora tenha sido um tempo único, confesso, não gostaria de o viver novamente, sabendo o que sei hoje, porque houve famílias que se dividiram por causa de simpatias ideológicas distintas tal como militares que perseguiram e mandaram prender camaradas e amigos.

08.10.20

Memórias, porquê?


Luís Alves de Fraga

 

Desde que, no ano de 1982, decidi fazer da pesquisa histórica a minha segunda actividade principal, comecei a perceber a importância dos documentos que contam coisas. Foi por esses anos da década de 80 do século passado que topei com vários géneros de memórias. Li com interesse redobrado Raúl Brandão, Bulhão Pato, José Relvas, João Chagas, Manuel de Arriaga, António Granjo, Jaime Cortesão, André Brun, Teófilo Duarte, Fernando Tamagnini de Abreu e Silva (nos originais manuscritos), Ferreira do Amaral, Norton de Matos, Sebastião de Magalhães Lima, Machado Santos, Marquês de Lavradio e muitos mais que será maçudo enumerar.

Uns limitaram-se a contar relatos de momentos específicos da sua vida, outros, poucos, a sua vida quase por inteiro.

Com eles, consegui viver os seus tempos, ver o que descreviam, sentir o que sentiam e isso permitiu-me ser capaz de saltitar de época em época e, mais do que tudo, saltar de maneira de olhar para outra maneira de ver e sentir o mesmo. Era como que vestir-me com a pele de cada um deles e andar a passear por onde eles se passeavam.

Julgo que nem todos nós somos capazes de vestir e despir peles; há quem tenha medo de sair de dentro de si para ser, ainda que por momentos, um outro. Parece-me que só pode dizer-se historiador quem possuir essa capacidade mutante em simultâneo com a habilidade de interpretar, sintetizar e explicar o que o outro viveu e sentiu. É como ser médico ou enfermeiro ou mecânico ou artífice, pois há quem não seja capaz de ver sangue e tratar feridas ou reparar máquinas ou ter destreza manual.

 

Cheguei a uma idade ‒ jamais pensei aqui chegar ‒ em que perdi, ganhei e modifiquei vários conceitos. O medo, perdi-o (podem prender-me, pois viver ou morrer em qualquer sítio é-me já indiferente); o pudor, modifiquei-o; a ética, revi-a; o espírito de corpo, ponderei-o. Tudo isto são estados de alma e formas de proceder socialmente que, em certas idades, são necessários e fazem parte do saber viver, mas, quando se está, como eu, numa altura da vida em que se tem de saber morrer, perdem importância ou ganham outra importância.

E reparem, foi por causa da ética, da defesa das instituições, de não atentar contra o pudor que, durante muito tempo, na Igreja Católica, nas artes teátricas e musicais, no desporto e em mais actividades se esconderam os abusos sexuais. Foi por causa de não escandalizar nem reduzir o papel do homem na família e na sociedade que se mantiveram em silêncio as agressões de toda a ordem exercidas sobre a mulher.

Mas ganhei coragem para enfrentar aquilo que, na ordem pública da minha vida, achei que devia contar com uma única finalidade: tentar que haja alteração de comportamentos para, no futuro, poder ser diferente.

 

Podia escrever as minhas memórias e deixá-las para publicação futura. Podia, mas, mais uma vez, ia fugir à denúncia daquilo que, em termos institucionais entendo que deve ser denunciado em tempo. Se fossem póstumas as minhas memórias elas seriam passíveis de ganhar contornos de vingança; mas, em minha vida, elas são o meu último grito de alma.

E, agora, as memórias têm a utilidade de poderem servir a quem quiser analisar o que possa ser analisado em termos históricos ou sociológicos ou, até, psicológicos, pois estou disponível para esclarecer, em privado, algum aspecto que valha a pena ser esmiuçado. Como é evidente, nem fui figura pública, nem sou, nem a minha vida teve importância por aí além. Todavia, ao ser professor, poderei ter influenciado ‒ bem ou mal ‒ alguns ‒ muitos ou poucos ‒ dos meus alunos e, por isso, eu tenho responsabilidade histórica. Não será grande, mas, por pequena que seja, é minha e não me eximo a responder por ela. E essa influência só será completamente compreendida se se perceber toda a minha vida anterior, o mesmo é dizer, de onde venho e que caminho percorri até ao momento de poder ter exercido algum influxo naqueles a quem procurei transmitir conhecimentos e maneiras de estar perante a vida. E não foram poucos os anos em que exerci essa possível influência… Foram os que vão de Outubro de 1981 a, pelo menos, Julho de 2017, quase trinta e sete anos!

 

A escrita das memórias pode dividir-se, no mínimo, em dois tipos: uma, a que relata a vida, os contextos em que ocorreram os factos e a forma como o autor se posicionou; outra, aquela em que o autor se assume como jornalista, cronista ou simples contador e relata o seu tempo sem dar testemunho sobre si nem da interacção que teve com os acontecimentos.

Na última, o autor apaga-se, tanto quanto possível, e dele só se percebe um pouco mais através da forma como relata; na primeira, o narrador usa o singular eu e é através dele que tudo passa e é contado. Assim, a quem se apaga, parece, pode aplicar-se o conceito de exocêntrico e ao outro o de egocêntrico. Todavia, para mim, em qualquer dos casos não se deve pôr carga adjectiva na escolha feita pelo autor, pois, antes do mais, julgo, ambas não são mais do que estilos narrativos.

Nas minhas memórias optei por me vincular a elas, usando a primeira pessoa do singular, até porque, as memórias são minhas e é o meu testemunho que pretendo deixar. Não se trata de um traço de vaidade, mas de responsabilidade perante o que afirmo e perante quem agora me lê ou vier a ler.

04.10.20

Fases da minha vida ‒ 69

(A viagem de regresso)


Luís Alves de Fraga

 

No dia 18 de Maio de 1975 eu, o meu camarada Mário Cotovio e muitos mais militares embarcámos no Boeing 707 da Força Aérea e regressámos a Portugal, sem que antes fizéssemos escala em Luanda, para iniciar a viagem até Lisboa durante a noite com chegada às primeiras horas da madrugada. Nessa data, faltava um mês e uma semana para ser proclamada a independência. No aquartelamento do batalhão ficou somente a companhia que deveria seguir para Lourenço Marques para as honras militares e proceder à escolta dos últimos portugueses com cargos políticos e administrativos.

 

O avião vinha carregado com as nossas bagagens e com tudo o mais que foi preciso trazer à última hora.

Em Luanda estava outro Boeing da TAP, que transportava mais tropa de regresso. Íamos viajar na esteira dele, pois chegaríamos a Lisboa com intervalo de poucos minutos.

Na capital de Angola, daquilo que nos foi dado ver, vivia-se um clima de guerra civil. Por lá, as coisas estavam muito piores do que em Moçambique.

Estabelecendo comparações, poder-se-á dizer que a descolonização deste território foi completamente pacífica quando se olha para o que aconteceu em Angola.

 

Confesso, na viagem, em especial quando as luzes foram quase todas desligadas para os passageiros dormirem, assaltaram-me diversos pensamentos contraditórios.

Por um lado, sentia-me feliz por regressar a Portugal. Tinha saudades da minha família toda, mas, por outro, invadia-me a certeza de não mais voltar a Moçambique, onde nascera a minha filha mais velha e onde vivera tantas e tão variadas emoções; tinha como adquirida a convicção de que as belas cidades deixadas naquele território iriam degradar-se sem cuidado nem cautela, por falta de quadros técnicos suficientes e capazes de perceber como se conservavam edifícios, esgotos, estradas e ruas. Aliás, a degradação resultaria do simples facto de os proprietários dos imóveis os deixarem lá, ao abandono.

Era confrangedora a incapacidade dos elementos da FRELIMO quanto à administração e gestão públicas. Eles estariam mais tranquilos se os poderes coloniais tivessem, ao longo dos anos, criado uma elite negra suficiente para assumir cargos de média e superior categoria dentro do aparelho governativo. Mas nada disso aconteceu. Os negros nunca ascenderam profissionalmente, porque esses cargos médios e superiores estiveram sempre reservados para brancos europeus ou já nascidos em Moçambique. Com algum egoísmo, recordo que, a certa altura, pensei: «Foi a FRELIMO quem ganhou e tinha obrigação de se ter, ao longo dos anos, preparado para a tomada do poder… Se o não fez, não somos nós os responsáveis!» Assim afastei a carga de culpa que estava a transportar.

 

Ao deixar para trás Moçambique e os seus problemas, veio-me à cabeça a situação em Portugal. Senti que ia ser um choque para o qual não estava preparado. As notícias davam-me indicadores que desconhecia, pois uma coisa é viver os acontecimentos dia após dia e outra é cair no meio do turbilhão sem possuir a experiência do que se estava a passar. Nunca fui um extremista em política e creio que em coisa nenhuma. Ao procurar equilíbrios não faço concessões, contudo, busco compreender razões de um lado e de outro para justificar a minha posição.

Foi com estes pensamentos que adormeci no Boeing 707 que me trazia para Lisboa, para a Revolução dos Cravos, que, entretanto, já havia passado pelo 11 de Março e a nacionalização da banca e estava no auge da governação do coronel Vasco Gonçalves.

 

Acordei de um sono mal dormido quando iniciávamos a aproximação ao aeroporto de Lisboa. O sol começava a despontar.

02.10.20

Fases da minha vida – 68

(A debandada e o retorno)


Luís Alves de Fraga

 

Como já referi, havia uma imensa diferença entre a cidade da Beira dos últimos meses do ano de 1974 para os primeiros meses de 1975. Entre a população europeia, a vida nocturna das sextas-feiras e dos sábados, a alegria descontraída de outrora havia caído significativamente. As praias, ao domingo de manhã, já começavam a estar desertas.

Aliás, devo referir, voltando atrás no tempo, a repercussão que tiveram na Beira os acontecimentos de Lourenço Marques, nos dias 7 e seguintes de Setembro de 1974.

 

Em Lusaka, uma delegação portuguesa, incluindo ministros e oficiais do MFA, contrariando o que estava inscrito no programa do Movimento, estava preparada para assinar, com Samora Machel em representação da FRELIMO, o documento que garantia a entrega de Moçambique àquela força política, tomando-a como única representante dos interesses da, ainda, colónia.

É necessário, para perceber o acto, aparentemente descabelado e incongruente dos representantes nacionais, contextualizar a situação.

Em Portugal, a desordem e a desobediência no meio castrense eram quase totais. A população não aceitava, de forma alguma, que seguisse para África um só soldado e, muito menos, se fosse para combater. Na Força Aérea ‒ sou testemunha do facto ‒ a resistência para marchar um oficial com destino a substituir outro, que já havia chegado ao termo da comissão, era imensa. A revolução galgara as barreiras dos revolucionários.

Em Moçambique, como já referi, o contingente militar negro, natural da colónia, fugia, desertava e queria fazer esquecer que havia estado ao serviço da máquina de guerra contra a FRELIMO, porque a gente anónima do povo anónimo percebeu, muito antes de todos nós, a inevitabilidade de ceder perante os guerrilheiros, percebeu de que lado estava a legitimidade.

Neste contexto, era impossível impor à FRELIMO quaisquer condições para protelar a negociação. Não se negoceia sem ter força e, realmente, quem tinha força era a FRELIMO e os negociadores poderiam, no máximo, minimizar os estragos causados pelo facto de não terem atrás de si nem Forças Armadas nem povo para os apoiar. O acordo de Lusaka foi o entendimento possível, naquele momento… Se mais tarde, maiores teriam sido as exigências da FRELIMO e menores as capacidades dos diplomatas e emissários nacionais.

Mas os europeus de Moçambique e algumas elites negras simpatizantes do regime colonial não foram capazes de fazer a análise fria da situação e perceber a desproporção de forças negociais entre a guerrilha e o Governo de Portugal. Não foram capazes de perceber isso tal como, no passado, nunca quiseram perceber a importância da guerra que corria lá no Norte e Centro do território. Os europeus de Lourenço Marques gozavam os prazeres de uma cidade africana bem concebida para lhes dar o que eles esperavam; para eles a guerra era um assunto para ser resolvido pelos militares.

 

Nesse mesmo dia 7 de Setembro, enquanto decorriam as conversações em Lusaka, na capital da colónia, provavelmente com o apoio ou simpatia do Presidente da República, general Spínola ‒ ele tentava, também alheio à realidade circundante, travar o inevitável no contexto da época ‒, estalou um movimento tido como espontâneo, cujo epicentro visível se situou junto das instalações da estação do Rádio Clube de Moçambique, a dois passos da messe de oficiais da Força Aérea. Contudo, se o epicentro estava ali, o mais grave dos acontecimentos passou-se a alguns quilómetros, lá para os lados do Alto Maé, com o ataque que os europeus armados fizeram contra negros desarmados e desesperados. Devem contar-se por milhares o número de mortos. Um verdadeiro massacre ditado pela raiva e desespero.

A situação esteve descontrolada durante três dias. Foi mandada seguir para Lourenço Marques, via aérea uma companhia de comandos mas, porque se duvidou da lealdade ao comando nacional, na cidade da Beira, foi substituída por uma companhia de pára-quedistas do BCP-31. Com dificuldade a aeronave militar aterrou na pista do aeroporto, pois os civis haviam-na pejado de bidons e veículos. Foi o comandante do Aeródromo-Base n.º 8, com o apoio de todos os oficiais, quem desimpediu a pista, afastou os civis e permitiu que o avião aterrasse. Dali seguiu a companhia do BCP-31 para a estação de rádio e, com relativa facilidade fez dispersar a população enraivecida.

Na cidade da Beira, também teve repercussões o movimento de Lourenço Marque, contudo, bem menores.

O rescaldo de Setembro já não o acompanhei por ter marchado para Nova Freixo e gozado as férias de Dezembro em Portugal. Em Fevereiro, como disse, tudo estava em vias de mudança.

 

Dois antigos alunos dos Pupilos do Exército, mais velhos do que eu, instalados num dos melhores hotéis da Beira contactaram-me para combinar um jantar juntos. Foi, no dia seguinte. Queriam saber o que eu pensava da situação. Já se haviam desfeito das boas vivendas onde habitavam, estavam a iniciar umas férias graciosas ‒ licença de longa duração (até seis meses) paga pelos empregadores aos europeus que trabalhavam nas colónias, para viajarem saindo de África ‒ que, pensavam, seriam definitivas.

Fui o honesto com eles, nem poderia deixar de sê-lo, depois de ler os primeiros discursos de Samora Machel, que estava a avançar de Norte para Sul.

Ao contrário de Joaquim Chissano, Machel era incendiário no uso da palavra. Percebia-se, sem grande esforço, que a vida e o modo de viver em Moçambique, para além de sofrer uma alteração natural, ia ser o oposto do que se podia imaginar. A revolução socialista, previa-se, seria radical.

Dei-lhes conta das minhas preocupações. Um queria ir trabalhar para a África do Sul e o outro já iniciara conversações para aceitar emprego no Brasil.

Ao primeiro sugeri-lhe o caminho do segundo. Quis saber dos meus fundamentos. Fui franco. Caindo Moçambique e Angola, a Rodésia e a África do Sul iriam atrás. Era só uma questão de tempo.

Despedimo-nos com um abraço. Fugiram para bem longe. Nunca mais nos voltámos a ver.

 

De um salto que dei a Lourenço Marques fiquei a saber que funcionários administrativos da Força Aérea, negros ou de origem indiana ou asiática, sem quaisquer ligações a Portugal, tinham requerido a vinda para Lisboa.

Na Beira estava a acontecer o mesmo. Fugir era a palavra de ordem.

As moedas de prata, vulgares nos pagamentos comuns, começaram a desaparecer. Soube que os mais capazes, nomeadamente comerciantes, estavam a juntá-las para as meter em caixas bem protegidas trazendo-as para Portugal. Não serviam para pagar nada, mas, derretidas, a prata sempre valeria alguma coisa.

Deambulando pela cidade, a pé ou no meu Fiat 600, apercebi-me de que o falso clima de nacionalidade, gerado pela política do Estado Novo, estava na origem da desolação que se via no olhar de brancos e de negros. Havia negros do povo humilde que nos olhavam como traidores ou, no mínimo, como mentirosos.

A minha lavadeira, mulher de mais de quarenta anos, chorava em silêncio, deixando cair grossas lágrimas pelo rosto com rugas, sempre que vinha entregar-me a roupa lavada e impecavelmente passada a ferro. Recebia o valor combinado e sempre mais outro tanto que lhe dava com um grande sentimento de culpa. Que seria dela sem os seus clientes europeus? As filhas, já crescidas, sabiam como sobreviver naquele mar que ameaçava tempestade, mas, e ela? A Andrina estava condenada nem sei a quê! Por muito de esquerda que quisesse eu ser, por muito que reprovasse a guerra, por muito que compreendesse a independência de Moçambique, ficava-me no peito a dor do abandono de todas as Andrinas e de todos os Fernandos, Josés, ou outros estranhos nomes de gente que acreditara na mentira e já não tinha idade, nem forças, para mudar, mesmo que só para fingir.

Assistir ao retorno nacional foi mau, mas pior foi assistir ao abandono nacional! Tive de me fechar na alegria de ver nascer um novo Estado dado ao mundo por um Portugal que semeou mundos no mundo.