Chegado a Lisboa no começo da segunda quinzena de Maio de 1975, apanhei em cheio com o confronto que estava a delinear-se entre a extrema-esquerda e a Igreja, nomeadamente o patriarcado.
Tudo isto para mim era uma novidade, habituado, como estava, à existência de conflitos brandos ‒ os que o foram ‒ entre negros e brancos, em Moçambique.
Não me apercebi logo do esforço notório que o Partido Socialista (PS) estava a fazer para pôr termo a tais desentendimentos, assim como, de uma maneira menos evidente, o Partido Comunista (PCP) evitava incentivar tal tipo de luta. Foi já dois ou três anos depois que percebi o alcance da prudente jogada destes dois grupamentos políticos, pois uma das causas que mais corrompeu a 1.ª República e lhe ditou o fim foi a necessidade imperiosa que, na altura, havia de desligar a Igreja do Estado. Ora, se em 1911 o clero católico era um adversário da modernidade, que a República perseguia sem quartel para dotar a nação com uma mentalidade próxima da das outras nações da Europa, em 1975 os católicos não representavam qualquer tipo de reacção à liberdade e à democratização. O pior adversário era outro e já havia sido frenado com a nacionalização da banca.
Nada disto eu sabia com a certeza com que agora o afirmo, mas pressenti o erro ‒ todos os erros ‒ que resultava da exaltação dos grupelhos de extrema-esquerda, dando de Portugal e das mudanças em curso uma imagem de caos. Foi o caos que eu senti naqueles meses de Maio e Junho e isso foi determinante para a forma como me posicionei perante os acontecimentos.
Havia dado explicações de política na cidade da Beira, a pedido de sargentos e um ou dois oficiais da Força Aérea, ficando-me por ensinar os rudimentos da democracia e das linhas gerias programáticas dos partidos socialistas/sociais-democratas, comunistas e democratas cristãos, mas, no entanto, não me passou pela cabeça falar dos movimentos extremistas de esquerda e de direita ‒ ingenuidade e ignorância minhas, por falta de experiência. Ora, o processo político em Portugal estava, nesses meses de Maio e Junho, a desenrolar-se à volta dos grupos que se reivindicavam da pureza marxista, contrária à práxis do PCP.
Contudo, para se compreender o que se passava (e passou pela minha mente) há que olhar para esses tempos com os olhos dessa época e não com toda a carga do que sabemos agora.
Antes do mais, é preciso ter em atenção que a maioria dos portugueses nada percebia de política, de democracia e de liberdade. O que nos enchia a cabeça ‒ e, aqui, para efeitos de explicação, incluo-me nessa maioria ‒ era a propaganda anticomunista herdade do derrubado fascismo e o medo de voltar a uma ditadura. Logo a seguir ao dia 25 de Abril, ou, talvez melhor dito, a seguir ao dia 1 de Maio de 1974 iniciou-se um processo de clivagem na sociedade ‒ urbana, em primeiro lugar, e rural um pouco mais tarde ‒ não propriamente dito com base em ideologias políticas, mas escorado na imensa propaganda ouvida e na percepção que cada um teve de qual o lado que mais lhe convinha ou que melhor servia ‒ ou podia vir a servir ‒ os seus interesses. O apelo das extremas-esquerdas foi muito forte, pois tudo se explicava com uma linearidade meridiana através da livre expressão da vontade popular; esta seria a máquina que puxaria a revolução. Quem jamais havia pensado em política absorvia com facilidade a lógica do novo movimento. Isso foi o que encontrei ao chegar a Lisboa.
Todavia, devo acrescentar que, pelos meus contactos e conhecimentos, dei também com uma significativa adesão ao Partido Comunista, com filiação ou mera simpatia, de gente que nunca tivera qualquer manifestação política.
Na altura, senti que havia oportunismos a todos os níveis da parte de quem não queria ficar para trás na revolução que, em Maio, ia já adiantada.
Em Lisboa e na região de Estremoz (porque, para lá me deslocava aos sábados e domingos) as fracturas sociais eram muito mais evidentes em Junho do que no mês de Dezembro de 1974, quando havia passado a licença com a família. O clima era de forte tensão entre os que temiam um futuro incerto já habituados ao ramerrame do Estado Novo, no qual as classes médias se julgavam seguras, embora o custo de vida estivesse a aumentar com uma velocidade impressionante.
No meio militar onde eu estava inserido naquele momento ‒ a comissão liquidatária de todos os conselhos administrativos da Força Aérea em Moçambique ‒ curiosamente imperavam três tipos de posições: aqueles que logo fizeram uma adesão à extrema-esquerda, os moderados e os expectantes. Não havia, felizmente, reaccionários entre a oficialidade vinda daquela colónia.
No entanto, para que o quadro por mim encontrado em Portugal fique claro, nos meses de Maio e Junho, tenho de fazer aqui uma referência aos governos de Vasco Gonçalves e à figura do general Costa Gomes. Comecemos pelo primeiro.
O coronel Vasco Gonçalves, engenheiro militar, foi um dos oficiais mais graduados que aderiu ao MFA, ainda antes do golpe militar de 25 de Abril de 1974 (é vulgar esquecer o coronel Marcelino Marques, de administração militar, que assumiu, na madrugada de 25, o comando da Escola Prática de Administração Militar e que, de há muito, era contrário à situação ditatorial, podendo admitir-se que teria algumas e clandestinas ligações ao PCP) sobre quem recaiu a escolha dos capitães para presidir ao 2.º Governo Provisório, na sequência do pedido de demissão do Dr. Palma Carlos, um velho democrata identificado com os ideais liberais das alas oposicionistas ao salazarismo.
Vasco Gonçalves era uma figura controversa e sobre ele teceram-se ‒ como é habitual no nosso país ‒ as mais díspares considerações, quase sempre pouco abonatórias do seu carácter e das suas posições políticas. Conheci-o, sem qualquer intimidade, alguns anos depois de estabilizada a democracia; sem o afirmar, percebia-se que navegava nas águas do PCP ou, pelo menos, deixava que os comunistas se apropriassem da sua imagem para o colarem ao partido. Em concreto, e para garantir a verdade histórica, posso dizer que, politicamente, enquanto governou ‒ e assisti aos seus governos de Maio a Setembro de 1975 ‒ foi, tanto quanto permite uma análise que eu quis fosse imparcial, não deu mostras de aceitar orientação política do PCP ou de qualquer outro agrupamento partidário; o seu comportamento, pareceu-me, na altura e hoje, resultou da sua formação marxista com evidentes conotações revolucionárias nesse domínio ideológico. Do que me recordo ‒ e tenho boa memória desses factos ‒ Vasco Gonçalves tentou assumir o papel do condutor político de uma revolução popular sem respeito por modelos pré-determinados. O modelo era o dele e a revolução seria a sua. Julgo poder, hoje, tantos anos passados sobre os acontecimentos, admitir três conclusões: entre Vasco Gonçalves e Varela Gomes não existiam tantas diferenças como se podem imaginar: ambos tinham modelos pessoais para a revolução; a grande proximidade do PCP à pessoa de Vasco Gonçalves resultava da necessidade do partido controlar o militar e não de este se deixar controlar por aquele; a actuação política de Vasco Gonçalves, enquanto foi Primeiro-ministro, balançava-se entre um comunismo leninista e um comunismo popular, sem se fixar a nenhum deles, mas, exactamente por isso, passível de incentivar a extrema-esquerda popular e populista. Por causa destas indefinições quanto a modelos políticos prévios, falou-se em gonçalvismo e teve de se anular a força desencadeada por ele, através de, afastando-o da governação, dar oportunidade à preparação do golpe militar que derrubasse a extrema-esquerda sem anular a importância democrática do PCP, tão necessária à consolidação da democracia como o sal é importante para temperar os alimentos. De certa maneira os comunistas preferiram sacrificar Vasco Gonçalves para não serem sacrificados, cooptando-o, depois, para o seu seio, quando já era inofensivo, ao mesmo tempo que lhe davam a oportunidade de entrar na História pela porta principal do partido com mais tradição de luta antifascista no Portugal de Salazar.
Para concluir como concluo tem de se olhar o passado e os factos sem preconceitos e sem predisposições ideológicas. É evidente que uma tal percepção não era a minha nesses meses conturbados de uma revolução onde andávamos às cegas a palpar caminhos como o fazem os cegos. Vasco Gonçalves, nos meses de Maio até Setembro, não era a minha aposta política; não era, porque fugia aos meus modelos político-sociais aprendidos na universidade e condicionados pela, ainda em mim subsistente (embora a negasse), propaganda salazarista.
E o general Costa Gomes?
Não o conhecia e só vim a falar-lhe muitos anos depois da revolução. Mas ouvia o que se dizia dele em todos os quadrantes da sociedade portuguesa. E foi por causa desse diz-que-diz que me foi possível, bem mais cedo do que em relação ao general Vasco Gonçalves, traçar um perfil do Presidente da República de então.
Oficial de cavalaria, conclui eu que ele tinha um raciocínio lógico, ponderado e pouco especulativo, em consequência de, muito jovem, ter acrescentado ao curso da Escola do Exército, a licenciatura em Matemáticas. Essa ciência caracteriza-se pelo gosto da dedução lógica para chegar a resultados concretizáveis. Naquele tempo, uma licenciatura depois de se ter assegurado o ganha-pão de todos os dias, era um luxo diletante só praticável por quem gostava da ciência que ia estudar. E a análise da vida do general leva-me a supor que tenho razão no perfil que lhe tracei, pois os matemáticos gostam de jogar com certezas, aceitando, contudo, a análise de hipóteses que cheguem ao resultado preciso.
De Rolha, como o alcunhavam na época ‒ não se deixava comprometer com qualquer canto de sereia ‒, o general Francisco da Costa Gomes, não tinha nada ou, quanto muito, a mera aparência para aqueles que não medem com precisão as decisões a tomar. Muito novo foi chamado a desempenhar funções políticas no âmbito castrense e foi no desempenho delas que acompanhou a revolta dos altos comandos militares, em Abril de 1961. Salazar afastou-o, contudo, não o impediu de chegar ao generalato e nesse posto deu provas de saber conduzir a guerra e a política em Angola. Cautelosamente, no dia 25 de Abril, recuou, embora fosse mais antigo no posto de general, para dar destaque a António de Spínola. Foi, quase pela certa, um passo bem premeditado, pois sabe-se que as revoluções, em regra, engolem os primeiros a saltar para a liça. E Costa Gomes devia saber que Spínola, por vaidade ou necessidade de prestígio, ir-se-ia chegar à ribalta sem ter, contudo, a flexibilidade política para suportar os altos e baixos que se iriam seguir à vitória do golpe militar. Foi isso que aconteceu.
Costa Gomes sucedeu na Presidência da República a Spínola e teve a sensibilidade, a cautela e a astúcia de jogar com os interesses em presença, fossem militares ou civis, de forma a ir, navegando à bolina, conduzindo Portugal para uma democracia estável e estabilizada. Julgo que não haveria, entre os militares mais velhos e mais antigos, nenhum capaz de liderar o processo político até ao ponto de se votar e aprovar a Constituição e marcar eleições para a Presidência da República, mostrando ao mundo como se passa de uma ditadura estabilizada a uma democracia estável.
Não quero dizer que a consolidação da democracia e da liberdade foram fruto de uma ou duas ou, até, três figuras políticas ou militares. Quero, isso sim, deixar explícito o clima que se vivia em Portugal alguns meses antes de começar o denominado Verão Quente. Estava-se em constante desequilíbrio de forças e um aspecto que me espantou ao ouvir e ler a propaganda de todos os partidos, da direita à esquerda, foi o invocar o socialismo como bandeira de atracção das massas populares. Até o CDS, em dado momento, pela boca de Freitas do Amaral, se reclamou de socialista!
Para quem como eu chegou à revolução com ela já em andamento acelerado, foi complicado escolher o rumo político a adoptar para não engrossar sectores que, numa reviravolta possível e, de certa maneira, previsível, engolissem a revolução, as liberdades e a democracia, porque todos se reclamavam, também, de democratas.
Embora eu fosse capaz ‒ consequência da formação universitária já adquirida ‒ de perceber que havia tipos diferentes de democracias, uma grande maioria da população confundia-as e foi dessa confusão e dos excessos populares dos grupos políticos de extrema-esquerda que nasceu a aversão ao PCP. Aversão que era muito mais visível e sensível no Norte do que no Sul do país. E havia quem explorasse esse sentimento.
Recordo, por exemplo, o papel anticomunista do brigadeiro Pires Veloso ‒ o vice-rei do Norte ‒ e do líder da Confederação da Agricultura Portuguesa (CAP). No momento em que se carecia de quem clarificasse o panorama revolucionário, separando as águas, muitos ‒ da extrema-esquerda à extrema-direita ‒ empenhavam-se em acirrar ódios e divergências.
Embora tenha sido um tempo único, confesso, não gostaria de o viver novamente, sabendo o que sei hoje, porque houve famílias que se dividiram por causa de simpatias ideológicas distintas tal como militares que perseguiram e mandaram prender camaradas e amigos.