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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

27.09.20

Fases da minha vida – 67

(No regresso ao BCP–31)


Luís Alves de Fraga

 

Ao ter completado a desactivação administrativa do AB-6, em Nova Freixo, no final de Novembro de 1974, pedi licença para gozar férias ‒ um mês e uma semana ‒ em Portugal, daí que, a minha presença na Beira foi fugaz e somente para embarcar num Boeing 707 da Força Aérea rumo a Lisboa. Queria passar o Natal e o Ano Novo com a família que, entretanto, se havia instalado no Alto Alentejo onde, antes de ir para Moçambique, eu comprara uma muito pequena casa. A minha mulher estava a dar aulas em Estremoz.

 

Esse mês de Dezembro, em Portugal, deu para me aperceber da total confusão política que se vivia. Sofri um choque inesperado; julgava o ambiente muito mais calmo, mais com rumo e fiquei com a sensação de que cada qual fazia o que bem entendia: ocupavam-se casas devolutas com a aquiescência dos militares, iniciava-se o esboço da reforma agrária com ocupação de herdades de agricultores absentistas, os militares faziam sessões de esclarecimento verdadeiramente incendiárias, dominadas por jovens milicianos adeptos de soluções radicais de esquerda, preparava-se o acordo de Alvor ao mesmo tempo que o major Melo Antunes delineava a orientação política e económica para o país. A palavra fascista era a que andava mais na boca de toda a gente quando se queria ofender alguém. Mas, se fascista não chegava, atirava-se-lhe com reaccionário.

No Alentejo, onde me fixei com a família, para passar a quadra festiva, os proprietários agrícolas ‒ médios ‒ andavam assustados com as reivindicações dos assalariados, antes tão submissos e, naquela altura, cheios de arrogância.

As problemáticas em Portugal eram completamente distintas das que estava já habituado em Moçambique.

Quando embarquei, de regresso à cidade da Beira, para acabar a comissão de serviço, pressenti que em Portugal alguma coisa tinha de acontecer para repor uma certa ordem na situação e, ao mesmo tempo, respirei de alívio por poder voltar… Não imaginava o que se iria verificar em Moçambique!

 

No BCP-31 já não restavam oficiais dos que haviam pedido o saneamento do comandante. Desde o novo comandante aos alferes, todos tinham vindo do BCP-32, cujo aquartelamento, em Nacala, havia sido entregue à FRELIMO. Comandava a unidade o tenente-coronel Cerdeira Alves de Oliveira (conhecido entre os seus homens pela alcunha de Punhos de Renda); o segundo comandante era o major Resendes, um açoriano, mais antigo um ano do que eu na Academia Militar. Era ele quem presidia ao conselho administrativo.

 

Do MFA e da sua estrutura já ninguém falava. Era coisa do passado. Mesmo a cidade estava a ficar deserta. O policiamento era feito em veículos militares com forças mistas do exército português e militares da FRELIMO. O comércio fechava portas para não mais as abrir. Os donos das lojas, desejosos de realizar dinheiro, vendiam os produtos a preços baixíssimos e foi deste modo que, por conselho do meu amigo e camarada Mário Cotovio, chefe da contabilidade da Base Aérea n.º 10, comprei uma excelente máquina fotográfica com todos os acessórios imagináveis e uma máquina de cozinha Kenwood.

Na emissora do Aero Clube da Beira resistiam alguns dos locutores europeus e alguns técnicos. O programa ao qual me encontrava ligado mantinha-se no ar com alguma esperança, mas sem certezas quanto ao futuro.

Os restaurantes estavam abertos e, à noite, nos mais caros e mais sofisticados, onde jantava com o Cotovio ‒ a messe de oficiais deixara de servir refeições ‒ verifiquei que a clientela havia mudado em absoluto: já não eram os europeus endinheirados, mas casais africanos com excelente aspecto ‒ elas usavam lindas capulanas tradicionais ‒, que jamais vira na cidade. Ainda hoje é para mim um mistério como, de repente, surgiu essa abastada classe média africana; não me pareceu que tivesse vindo do exílio ou fosse constituída por quadros da FRELIMO.

 

As missões de guerra do BCP-31 tinham acabado. Estava-se a desmantelar o que havia de recolher a Portugal e em prevenção para qualquer eventualidade. A vida na unidade fazia-se a outro ritmo.

Comecei a preparar tudo para a desactivação. Foi um trabalho interessante e único, feito de maneira bem diferente do que havia executado em Nova Freixo. Aqui tudo foi ponderado com muita mais calma. Além disso, estávamos no começo de um novo ano civil que seria interrompido, do ponto de vista logístico, no final do mês de Maio. Havia que preparar a marcha da única companhia operacional para Lourenço Marques onde faria a honras militares ao arrear da bandeira de Portugal. Iam ficar na capital mais de dez dias sem qualquer tipo de apoio. Ainda sugeri ao comandante a possibilidade de os acompanhar com mais dois sargentos para suprirmos aspectos logísticos de última hora. Recusou, pois só atrapalharíamos.

 

Combinei com o capitão Cotovio o dia em que ambos deveríamos regressar a Portugal, fazendo, deste modo, a paragem administrativa tanto no batalhão como na base. Mandei à frente o sargento Belarmino para recepcionar as caixas com documentos e livros de contabilidade e balanços de material e fardamento, que deveriam seguir para a Base Aérea n.º 1 e de lá para a unidade que nos fosse destinada para proceder aos trabalhos finais de liquidação.

De Fevereiro a Abril de 1975 foi um tempo de azáfama. Ainda requisitei um helicóptero para o tesoureiro ir liquidar a conta de pão, que ficara por pagar em Inhaminga, mas a aeronave foi recebida pela FRELIMO com tiros de arma automática e o piloto resolveu regressar. Foi o único calote que o batalhão deixou em Moçambique.

Recordo, com saudade, esses derradeiros meses de trabalho numa unidade que, sendo a mesma onde havia chegado há um ano, era muito diferente… São as pessoas que fazem os ambientes, não há dúvida.

26.09.20

As licenciaturas militares e a universidade


Luís Alves de Fraga

 

Em 1959 a Escola do Exército foi reformada e passou a ser Academia Militar, estando expresso no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 42.151 de 12 de Fevereiro, alguns aspectos que são determinantes para se perceber o tema que hoje pretendo explanar. Diz-se, a dado passo:

 

«As exigências de ordem moral, indispensáveis à formação de um elevado espírito militar no futuro oficial, são a garantia de uma plena obediência às decisões dos chefes, de um espírito de sacrifício que leve ao esquecimento de si próprio […], e de firmeza e coragem essenciais à carreira das armas, mormente em face das imposições, cada vez maiores, da guerra moderna.

Os requisitos de ordem física surgem […] como um meio de o oficial se impor aos subordinados perante as dificuldades e esforços de combate.

[…].

A necessidade de uma sólida educação intelectual básica filia-se na complexidade e ecletismo, sempre crescentes, das funções que, ao longo da sua carreira os futuros oficiais virão a exercer […], bem como a circunstância […] de ter[m] [de] enfrentar como instrutor[es], como educador[es] e como chefe[s] melindrosos problemas humanos, o que lhe[s] impõe uma bem cuidada cultura geral e humanística […]. [que] dependerá da preparação-base recebida, que, como tal, deve ser de nível elevado, pois só assim se adquirirão hábitos de reflexão, de gosto pelo saber e da agudeza de espírito que lhe é inerente.

[…]

Desta forma, e ainda mais que no passado, o estabelecimento de ensino onde se ministra a preparação-base do oficial deve gozar de todas as prerrogativas de uma autêntica Academia Militar, enfileirando no aspecto cultural com os mais distintos estabelecimentos de ensino superior do país.»

 

Seleccionei estes pedaços do preâmbulo somente para destacar os mais importantes, pois em todo ele está plasmada a ideia fundamental e a doutrina de educação e formação dos futuros oficiais do Exército e da Força Aérea, tornando-o uma peça digna de aturada meditação.

Da transcrição ressalta clara a ideia de que a Academia Militar, na sua vertente cultural, devia ser e estar ao nível do ensino ministrado nos cursos superiores do país, porque nela se leccionavam conhecimentos de elevado nível, que em nada ficavam a dever os das universidades.

 

Dois anos após a revolução de 25 de Abril, a 1 de Setembro, foi publicado o Decreto n.º 678/76, reformulando o diploma fundador da Academia Militar, e, numa estranha e absurda manifestação de carência de estatuto científico, estabelece, no artigo 32.º, textualmente, o seguinte: «Os cursos ministrados na Academia Militar para formação dos oficiais dos quadros permanentes do Exército e da Força Aérea são, para todos os efeitos legais, considerados cursos superiores e conferem o grau académico de licenciado em Ciências Militares.»

 

Desde essa época distante, considero despropositada a necessidade de atribuir aos oficiais acima indicados o grau de licenciado. Tão despropositado como cientificamente incorrecta a designação, pois, em princípio, dever-se-ia ser capaz de identificar com extrema precisão quais são as ciências militares e qual é o método científico que elas usam para se alcandorarem ao patamar de ciências (em 2015 ‒ Decreto-Lei n.º 249/2015 de 28 de outubro ‒ com a criação do Instituto Universitário Militar, diz-se: «As ciências militares integram, designadamente, as seguintes áreas: a) Estudo das crises e dos conflitos armados; b) Operações militares; c) Técnicas e tecnologias militares; d) Comportamento humano e saúde em contexto militar; e) Estudos de segurança interna e dos fenómenos criminais» o que, no meu entender não define as ciências militares e reduz a quase nada aquilo que elas deveriam ser). Ao longo de quinze anos de docência castrense não recuei um milímetro na tentativa de obter uma resposta às questões levantadas, mas foi sempre em vão.

Mas, pior, é que, para baralhar um pouco mais acrescentou-se, em 1997 (Portaria 20/97 de 7 de Janeiro) que as licenciaturas em Ciências Militares tinham tantas especialidades como antes as antigas armas e serviços do Exército, embora a armas e serviços continuem a ser armas e serviços (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Serviço de Administração Militar).

 

Na minha opinião, o disparate continua a alastrar como uma mancha de óleo, pois, não chegando a necessidade de atribuir aos oficiais oriundos das academias militares os graus de licenciados, quando foi imposto ao ensino superior nacional o Processo de Bolonha, os estabelecimentos de ensino superior militar tiveram de se sujeitar e integrar-se nele.

E já vamos ver e tentar perceber os resultados, para mim, ridículos de tal situação.

 

Primeiro do que tudo, ao criar-se a licenciatura em Ciências Militares o que efectivamente se fez, sem a clara noção do erro, foi acrescentar aos cursos universitários civis os cursos militares. O mesmo é dizer, meteram-se na universidade as academias. Estas eram autónomas e afirmavam-se, como vimos antes, por serem ensino superior, sem carência de atribuição de grau académico, até porque um oficial militar sem oura formação e instrução é sempre e só um soldado.

A seguir, com a sujeição ao Processo de Bolonha, surgiu uma nova entidade desligada dos ministérios, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) (instituída pelo Estado através do Decreto-Lei nº 369/2007, de 5 de novembro), que «é uma fundação de direito privado, constituída por tempo indeterminado, dotada de personalidade jurídica e reconhecida como de utilidade pública. É independente no exercício das suas competências, sem prejuízo dos princípios orientadores fixados legalmente pelo Estado.»

Esta agência tem como missão «[…] garantir a qualidade do ensino superior em Portugal, através da avaliação e acreditação das instituições de ensino superior e dos seus ciclos de estudos, bem como no desempenho das funções inerentes à inserção de Portugal no sistema europeu de garantia da qualidade do ensino superior.»

 

Percebem-se e explicam-se agora as minhas dúvidas e reticências sobre o imprudente desejo de atribuir aos oficiais oriundos da Academia Militar ‒ os dos outros estabelecimentos semelhantes estão nas mesmas condições ‒ graus académicos que lhes não fazem qualquer tipo de falta, para além de uma balofa e bacoca vaidade de se dizerem licenciados e mestres! É que aquela agência (A3ES) pode atrasar, bloquear, neutralizar ou eliminar um curso em qualquer das academias militares! E é bom não esquecer que as academias fazem oficiais das Força Armadas que têm como missão garantir a soberania e a independência de Portugal (veja-se, por exemplo, o que figura na Internet sobre a licenciatura e mestrado em infantaria, no sítio da Academia Militar:

A3ES - Infantaria 2019.png

Parece-me que é tempo de os altos comandos militares acordarem e perceberem que a afirmação feita, em 1959, no preâmbulo do diploma que criou a Academia Militar é que deve prevalecer acima de todas as caganças e vaidades de graus académicos!

Eu, que sou licenciado, mestre e doutor por duas universidades, tenho muito mais vaidade em ser coronel do que nos graus académicos que consegui com esforço e resiliência, num tempo em que, nas fileiras militares, quem queria estudar era olhado de esguelha.

24.09.20

As academias militares


Luís Alves de Fraga

 

Hoje em dia só os militares e aqueles que o foram no tempo do serviço militar obrigatório (SMO) saberão para que servem as academias militares – Força Aérea, Escola Naval e Academia Militar (do Exército) – pois a carreira castrense tem, cada vez mais, caído em desgraça.

É por causa desse desconhecimento que resolvi escrever o apontamento de hoje.

 

Ao contrário do que pensam alguns militares, as academias não se destinam a diplomar os chamados oficiais subalternos (alferes/subtenente, tenente/2.º tenente); as academias são estabelecimentos que formam para toda a carreira castrense e ministram conhecimentos de base para toda uma vida que começa na graduação mais baixa até à mais alta.

É conveniente ter em atenção que estabeleço a diferença entre formar e ensinar: forma-se quando se actua no domínio do comportamento emocional e social e ensina-se quando se pretende que haja aquisição de conhecimentos. Essa é a razão pela qual os cursos têm uma duração longa, de, pelo menos, cinco a seis anos. É que a mudança comportamental é sempre difícil de fazer, pois passa por um processo de ressocialização.

Não é por acaso que os cursos são ministrados nas academias militares em regime de internato, pelo menos nos primeiros três anos. A condição de aluno interno visa possibilitar a melhor aceitação e integração da formação, ou seja, do moldar da maneira de se comportar, de pensar e agir. Embora seja difícil hierarquizar os aspectos fundamentais da formação, diria que, entre os primeiros, está a capacidade de liderança em todas as circunstâncias e em todos os momentos. Um oficial do quadro permanente das Forças Armadas tem de ser um líder e um decisor para motivar e encontrar soluções quando mais ninguém está em condições físicas e psíquicas de o fazer.

Note-se que um aluno de uma qualquer faculdade somente carece de adquirir conhecimentos, isto é, de saber as matérias consideradas suficientes para a obtenção do grau académico; a alteração comportamental deste aluno resultará, quanto muito, da aplicação dos elementos cognitivos adquiridos. Assim, se se olhar para as academias militares através deste ângulo, percebe-se que, para ser oficial de carreira, não basta papaguear conhecimentos, é fundamental que haja mudanças do foro comportamental – no exterior e no interior do indivíduo.

 

Até há vinte e cinco ou trinta anos, o processo de ressocialização fazia-se sem consciência da sua existência – mas fazia-se – porque não tinha sido analisado à luz da sociologia e da psicologia; era uma prática empírica, ditada pela tradição. Hoje, sabe-se que, a par dos aspectos cognitivos, têm especial peso os aspectos socio-psicológicos para provocarem a alteração comportamental do jovem civil que entra para as academias e delas sai um oficial formado para suportar uma carreira diferente e especial.

Este tipo de formação é completamente diverso daquele que se ministra a um jovem que, com habilitações literárias próprias, se oferece para servir como oficial durante um determinado período de tempo. E não podia deixar de ser. Vejamos a explicação.

 

O jovem oficial, chamemos-lhe miliciano – porque não é de carreira – , somente carece de saber executar um conjunto de acções que estão, no plano hierárquico, limitadas, no máximo, aos postos de alferes e tenente; deve ser capaz de liderar um número restrito de subordinados, geralmente, com baixo nível cognitivo; quase sempre não se exigem, deste oficial, grandes capacidades de decisão e de interpretação, porque, no desempenho das suas funções, vai ser um elo de transmissão vocacionado para a execução. Assim, a formação – entenda-se socialização – que lhe é dada não prevê alterações comportamentais duradouras; bastam as necessárias ao desempenho temporário de certas missões militares.

 

No passado, foi frequente concorrerem – em especial à Academia Militar (a do Exército) – jovens sargentos e oficiais milicianos – gente que era já militar entrada nas fileiras por outras vias de recrutamento – havendo para com eles tratamento diferenciado. Assim, os sargentos ‒ mesmo que do quadro permanente ‒, ficavam sujeitos ao internato, às mesmas regras impostas aos cadetes e a fardar como eles; aos oficiais milicianos, embora obrigados a todo o ritual castrense imposto aos cadetes, era-lhes dispensado o regime de internato.

Na minha opinião ‒ atendendo a que fui fazendo análises e estudos sobre o comportamento militar, os quais me permitiram leccionar duas cadeiras basilares para a compreensão do processo formativo (Deontologia Militar e Sociologia Militar) ‒ carecem de ser explicadas as anteriores diferenças, identificando-lhes os erros.

 

Deste modo, parecendo desnecessário o regime de internato para os sargentos, ele é fundamental, porque todas as vezes que, antes, eles estiveram em tal regime (recruta) o objectivo estava delimitado na e pela função. Ora, nas academias militares, o objectivo é diferente, pois visa muito mais alto do que ser mero soldado sem graduação ou de baixa graduação; visa uma nova forma de estar na vida castrense.

Pelo motivo anterior, é um erro não ser (ou não ter sido) imposto aos oficiais-alunos (os provenientes de milicianos) o regime de internato, pois, eles também, só tiveram, antes, formação militar limitada às funções que se esperava viessem a desempenhar como oficiais subalternos (alferes e tenentes).

Para melhor compreensão, julgo poder socorrer-me de um exemplo.

‒ Será que um enfermeiro, com alguns anos de prática, poderá e deverá ser dispensado da frequência de certas cadeiras ou do estágio hospitalar se se propuser fazer o curso de medicina?

Parece-me elementar a resposta negativa! Por ser, e por haver analogia, é lógico que qualquer militar deve ficar sujeito ao tratamento que se dá aos cadetes, pois não há que separar aprendizagem académica de aprendizagem comportamental.

 

Não fui exaustivo, mas, creio, terei explicado o essencial para se perceber a diferença entre um oficial miliciano e um oficial passado pelas academias militares.

Há, infelizmente quem, sendo militar, não queira ou não saiba explicar e compreender estas coisas.

22.09.20

Amigos e concorrentes


Luís Alves de Fraga

 

Aqueles que ao longo da minha vida fui considerando meus Amigos – excluo os amigos do Facebook, entre os quais estão alguns dos meus verdadeiros e profundos Amigos – são companheiros de jornada com quem partilho alguns aspectos do meu quotidiano, das minhas preocupações, dos meus anseios, das minhas mágoas, das minhas alegrias, enfim, é gente que entra naquele espaço íntimo bem diferente do que mostro no dia-a-dia. Para mim, um Amigo destes não precisa de estar constantemente em contacto comigo. Ao cabo de anos, se somos Amigos, não é o silêncio nem o tempo que põe entrave na amizade.

Conscientemente, jamais concorro, seja em que aspecto for, com um Amigo. Alegro-me com as suas vitórias, as suas conquistas, as suas alegrias, mas fico triste com os seus azares, com as suas mágoas, com as suas perdas. Não invejo ninguém e muito menos um Amigo.

 

Às vezes engano-me, porque identifico como Amigo um mero conhecido e, deste modo, julgo haver reciprocidade de sentimentos e o que há, afinal, é inveja, concorrência, despeito, frustração.

Em algumas coisas – poucas – da minha vida fui pioneiro: fui o primeiro mestre em Estratégia na Força Aérea e o quarto no país; da minha especialidade militar, fui o primeiro e, até agora, único director de ensino na Academia da Força Aérea; fui o autor do projecto, e seu executante, para a formação de todos os oficiais da Força Aérea na respectiva Academia; julgo ter sido, na Força Aérea e na minha especialidade, o primeiro doutorado em História.

Nunca admiti que estas coisas gerassem inveja ou despeito fosse em quem fosse e, muito menos, em alguém que, em tempos, aceitei como Amigo.

Pelos vistos, após certas análises, foi isso que aconteceu com um ou dois desses que, aceitei, estariam felizes por mim. Até porque, para além da minha satisfação e realização pessoais, sempre encarei o que fui fazendo como forma de enaltecer os diferentes grupos sociais onde estava inserido: família, Amigos, especialidade militar, Força Aérea e universidade. As minhas conquistas sempre as quis partilhar com quem, julgava eu, se sentia satisfeito com isso. Puro engano, pelo menos em relação a algumas pessoas e instituições. Ingenuidade minha? Quase de certeza que sim, mas sempre acreditei que não somos ilhas isoladas, porque fazemos parte de um imenso continente. Disto não vou abdicar.

20.09.20

Fases da minha vida – 66

(A ilha de Moçambique)


Luís Alves de Fraga

 

Numa das minhas deslocações de Nova Freixo a Nampula – uma que incluiu um fim-de-semana – um velho condiscípulo dos Pupilos do Exército e também major da minha especialidade, mais um outro camarada da Força Aérea, desafiaram-me a acompanhá-los numa curta estadia na ilha de Moçambique que eles não conheciam, nem eu.

Lá fomos, muito cedo, estrada fora, num velho carocha, que andava bem e aguentava o caminho. Chegámos à ilha – que já está ligada ao continente por uma ponte – pelo começo da manhã e fiquei absolutamente encantado. E vou explicar a razão.

 

A ilha tem mais comprimento do que largura. Num dos extremos, talvez o mais largo, fica a velha fortaleza feita de pedra ida de Portugal, com diversos baluartes, tendo capacidade para albergar uma boa guarnição militar. Contígua à fortaleza desenvolve-se a velha cidade de Moçambique com uma ou duas ruas largas e as restantes estreitas. Foi o único local, em Moçambique, que me lembrou a construção quinhentista, com as casas de traça semelhante às de algumas velhas vilas de Portugal.

Ainda se viam os tradicionais riquexós, mas agora parados sem quem os puxasse, dada a proximidade da independência e a imensa carga colonial que tal meio de transporte representava.

Abundavam, também, lojas de paquistaneses – designados, na época e no local, por monhés – onde ainda se vendiam retalhos de tecidos indianos para fazer saris de excelente qualidade e com as mais variadas cores. Compravam-se, também, peças de prata da ourivesaria típica indiana: pulseiras, anéis e colares.

Andando no sentido oposto ao da fortaleza, ainda bem dentro da área da cidade via-se o imponente palácio dos capitães-generais, que visitei, calçando umas sapatas por cima dos sapatos para não desgastar o soalho feito de madeiras preciosas, vindas, creio, do Oriente. Estava recheado com mobiliário indo-europeu de altíssimo valor – que por lá ficou – e vários quadros com os antigos capitães-generais e outras personagens importantes que por ali estanciaram.

Fiquei fortemente impressionado com a visita, especialmente, porque ali, naquele local, senti muito presente Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque e a Índia das especiarias. Ali, sim, estava o Portugal de quinhentos, seiscentos, setecentos, oitocentos e alguma coisa do de novecentos. Ali via-se a Expansão Marítima; ali estava aquilo que, só por maldade, se podia chamar colonialismo português; no resto de Moçambique estava o colonialismo que nos impuseram fazer a partir do final do século XIX.

 

Frente ao palácio dos capitães-generais ficavam a praia e o longo cais de madeira onde, noutros tempos, atracavam os navios a vapor, que demandavam a ilha. Nessa avenida marginal à praia estava o busto de Camões, que ali estanciou enquanto aguardava dinheiro que lhe pagasse a viagem para Portugal.

Continuando a caminhar no sentido oposto ao da fortaleza, surgia a cidade indígena, com as suas casas feitas de matope e cobertura de colmo. Era por lá que se encontravam as figuras femininas típicas da ilha: as mulheres com o rosto coberto de uma massa branca, mais parecendo cal. Só tinha visto em fotografia.

Fomos, depois, a um mercado indígena, onde comprei mais de sete ou oito pulseiras de latão com formatos originais. Não trouxe duas iguais!

 

Estafados de um dia sempre a andar de um lado para o outro, só interrompido pelo almoço de marisco, fomos pernoitar numa povoação fronteira, no continente, nas instalações de um quartel do Exército, já quase desactivado. Que noite!

Ficámos os três numa camarata, que devia ter sido de sargentos, com cerca de dez camas de ferro, mas só as que nos eram precisas tinham lençóis. A que me calhou, embora feita, o lençol de cima tinha um imenso buraco a meio, coisa que não seria importante se na camarata não pululassem centenas de mosquitos que me atacaram em voo picado, ainda que coberto, dos pés à cabeça, pelo esburacado lençol. Foi, com inteligência, pelo buraco que os anófeles me sugaram o sangue e inocularam o paludismo, que meses mais tarde se manifestou.

 

No dia seguinte, domingo, ainda utilizámos a manhã para dar uma volta pela ilha e, depois, rodámos direito a Nampula onde chegámos já quase noite. No quarto da messe, sem mosquitos e sem incómodos, percebi como era pobre estar em Moçambique e nunca ter visitado a ilha que deu o nome à colónia, porque, afinal, perceber-se-ia, que aquele território só teve interesse, durante séculos, para, por um lado, apoiar a rota da Índia e, por outro, penetrar, através do rio Zambeze, até Tete e, dali, até ao reino do Monomotapa onde havia ricas minas de ouro.

 

Nova Freixo esperava-me, na segunda-feira, para continuar a faina da desactivação do conselho administrativo, deixando para os Moçambicanos aquilo que lhes pertencia por direito de nascimento e naturalidade.

18.09.20

Fases da minha vida – 65

(Em Nova Freixo)


Luís Alves de Fraga

 

Na sequência do auto de averiguações feito aos oficiais do BCP-31 e da conversa tida com o major Sacramento Gomes, já relatada antes, recebi guia de marcha para o Aeródromo Base n.º 6, situado em Nova Freixo, talvez por meados do mês de Outubro de 1974.

Primeiro, fui apresentar-me em Nampula onde pernoitei para, no dia seguinte, ser transportado, em DO, para a minha nova unidade. Ia somente proceder à desactivação do conselho administrativo. Supostamente retiraria com os últimos militares da restante guarnição da unidade, contudo, admitia encontrar na unidade um oficial com graduação superior à minha – capitão – que acompanhasse o processo até ao fim, isto é, até à retirada e entrega das instalações aos responsáveis da FRELIMO.

Ora, o que aconteceu foi que, na tarde da minha chegada à unidade, o tenente-coronel piloto-aviador Marinho Falcão, que a comandava, retirou-se para Nampula e fiquei sendo, de três capitães, o capitão mais antigo – um era da minha especialidade e chefiava a contabilidade, outro era médico –, o responsável pela unidade, apoiado em mais cinco ou seis tenentes de diversas especialidades e alguns sargentos, sendo um deles piloto do DO estacionado na placa.

 

Encontrei uma unidade com infra-estruturas modernas e novas: duas excelentes piscinas, alojamentos de boa qualidade, uma bonita capela, uma pista magnífica, uma boa torre de controlo aéreo, edifícios bem construídos e, até, um original monumento ao esforço do Homem para Voar (o chamado Tirem-me daqui).

O clube de oficiais tinha uma curiosa carga de ineditismo, imitando, em tamanho grande e com bons materiais, uma palhota indígena. A ampla cozinha para confecção do rancho, estava dotada de electrodomésticos deteriorados e incapazes de funcionar, porque, numa atitude mesquinha e impensável, contrariando as ordens recebidas de Lisboa, haviam retirado os novos e modernos utensílios há pouco montados, voltando a colocar lá os anteriores. Comecei a aperceber-me, no concreto, de quanto era reaccionária a Força Aérea como instituição.

 

Do ponto de vista administrativo não foi difícil determinar como fazer a liquidação, pois optámos por verificar que os anos anteriores a 1974 já estavam encerrados e liquidados, restando o que se encontrava em curso. Guardámos todos os livros de contabilidade desde a criação da unidade e, depois de mandar abrir uma grande vala num terreno baldio, para lá foi atirada a documentação – facturas, recibos e requisições – ficando de fora os copiadores de correspondência. Depois de deitado fora tudo o que deveria ir fora, regou-se com combustível de avião e pegou-se fogo aos papéis. Tapou-se a vala e passámos à fase seguinte.

Ocupámos nesta operação umas duas ou três semanas. Havia, depois, que armazenar de forma a poder ser transportado para Portugal, por via aérea ou marítima, todos os documentos que sobraram na selecção feita. De seguida, foi a minha vez de, servindo-me do sargento piloto e das aeronaves disponíveis (foi quando voei num Cherokee oferecido à Força Aérea pelo Governo da África do Sul), transportar para Nampula as numerosas caixas do conselho administrativo.

Fiz bastantes horas de voo e, por brincadeira e desfastio, também experimentei pilotar. Conclui que não era a minha mais satisfatória forma de me deslocar. Piloto é piloto e administrador é administrador.

 

O ambiente entre os oficiais era extraordinário, pois assentava na mais completa camaradagem. Os tenentes tinham diversas especialidades e diferentes idades, mas os sargentos eram bem mais jovens.

Dada a falta de cozinhas e de cozinheiros, os oficiais por um lado e os sargentos por outro, tratavam de confeccionar, as refeições, essencialmente de carne. Para a termos fresca era necessário ir à caça.

Nunca fui caçador e usei mais vezes as armas de guerra do que as caçadeiras vulgares (a primeira vez que apontei uma, para fazer tiro aos pratos, já alferes, declarei que estava incompleta por lhe faltar parte do aparelho de pontaria!), mas, em Nova Freixo fui convidado para ir, de noite e com farolim, à caça. Não tinha arma e, no jeep, era um mero espectador. Os moços novos, sargentos, atiravam mal que fartava! Um deles, a dada altura, por delicadeza, perguntou-me se queria disparar. Só pedi que me explicassem como percebiam que havia uma peça de caça – coelho ou outro animal comestível – e disseram-me para não me preocupar, pois na altura certa dir-me-iam.

Chegado o momento, segredaram-me:

— Ali está um coelho.

Atentei e vi duas brasas a brilhar na escuridão. Meti a arma à cara, fiz como tinha aprendido anos antes, e disparei. Os olhos deram um salto e o animal caiu morto.

Fui brindado com frases simpáticas. Obrigaram-me a continuar com a espingarda e, verdade seja, pus no jeep uns sete ou oito coelhos. Em dado momento sussurraram-me que tinha na frente da viatura, uma gazela. Mas não lhe via os olhos nem por nada. Só distinguia uma espécie de ferradura grande de cor branca. Para mim, aquilo não era bicho nenhum. Aproximaram-se mais e mais, até que a ferradura deu um salto e desapareceu. A gazela estava virada de rabo para o jeep. Nunca tinha visto uma gazela de tão perto e nem sabia que tinha uma pelagem com aquele tipo de sinal. Perderam-se umas excelentes refeições. Comemos coelho por vários dias. Nunca mais tornei a caçar.

 

Ir à cidade de Nova Freixo era uma verdadeira desilusão para quem, como eu, estava habituado à cidade da Beira.

A maioria das ruas não eram alcatroadas, não tinham passeios, mas possuíam candeeiros altos que, de noite, dava a ideia de um aglomerado urbano de dimensões consideráveis. As casas eram uma aqui e outra lá longe. Havia uma poeira no ar que se entranhava por baixo das pálpebras e nos deixava os olhos vermelhos. Salvo erro, só existia um café digno desse nome, numa esquina com uma esplanada miserável.

Em dois meses de permanência no aeródromo, só fui à cidade duas vezes. A estada na unidade era muitíssimo mais agradável, mais civilizada.

Já não me recordo como nem porquê, ofereceram-me um grande cristal de quartzo cor-de-rosa, que trouxe para Lisboa e ficou algures por aí, numa das minhas várias mudanças.

 

Estava quase a chegar a data em que devíamos retirar de Nova Freixo. Fui avisado da visita de um comandante da FRELIMO – aquele que iria receber e comandar a unidade – com o seu estado-maior, para tomar contacto com as instalações.

Preparámo-nos para os receber amigavelmente.

No dia aprazado chegaram os guerrilheiros, desarmados, e iniciámos a volta pelas instalações. O comandante era um homem entre os trinta e muitos anos, próximo dos quarenta, mas os elementos do seu estado-maior – três ou quatro – eram bem mais novos, todos na casa dos vinte anos.

Um desses acercou-se de mim e foi-me fazendo perguntas sobre os requisitos necessários para ser piloto aviador. Pretendi saber mais sobre ele e disse-me que tinha ido para a FRELIMO, havia alguns anos, na esperança de poder seguir o seu sonho, mas que o partido concluíra que ele era mais conveniente como professor do que como guerrilheiro e fora assim que, depois de fazer estudos apropriados – os do liceu com programas semelhantes aos de Portugal – ficara nas bases a ensinar crianças a ler, escrever e falar com correcção a língua portuguesa.

Em dado momento viu um invólucro metálico de grandes dimensões e perguntou-me o que era. Expliquei tratar-se do suporte onde era metido o líquido vulgar-me designado por napalm. Ficou muito excitado e chamou a atenção do chefe da delegação. Este parou, olhou-o com ar frio e cortante e disse, puxando a calça para cima de modo a deixar à vista uma longa cicatriz de queimadura profunda:

— Conheço bem os efeitos do napalm.

Houve silêncio na pequena comitiva e eu senti o incómodo semelhante ao da criança que é apanhada em falta pelo adulto.

 

Poucas semanas mais tarde, já no final do mês de Novembro, foi recebida a ordem para abandonar, em certo dia que já não lembro, as instalações. Veio um Dakota buscar o pessoal, que ainda se mantinha em serviço, e toda a carga.

Na descolagem, comeu quase a pista até conseguir erguer-se para iniciar o voo. Confesso, naqueles segundos, pensei que iríamos acabar em destroços no fim do betão. Houve como que um respirar fundo quando ganhámos altitude. Pela janela vi, uma última vez, o aeródromo, a cidade quase fantasma e tive a sensação de que, afinal, nada valera uma guerra com tantas vidas perdidas, pois teria sido muito mais fácil avançar para a negociação das independências lá muito atrás, nos anos sessenta, mas, ao mesmo tempo, fiquei com uma certeza: estava a ver nascer um novo Estado soberano, e isso era inesquecível, porque aquele voo de Nova Freixo para Nampula, pelo menos, para mim, correspondia a uma pequena nota de rodapé na História de Portugal e na de Moçambique.

17.09.20

Fases da minha vida ‒ 64

(O meu pessoal no BCP-31)


Luís Alves de Fraga

Presidiram ao conselho administrativo do BCP-31, durante o tempo que por lá estive, três oficiais: dois pára-quedistas, sendo um do Serviço Geral, e o outro, o segundo comandante, na fase final, e um capitão bastante antigo do Serviço Geral da Força Aérea, na fase inicial. Tecnicamente limitavam-se a assinar o que lhes metia na frente, pois nada percebiam de administração. Os tesoureiros foram vários tenentes e um capitão pára-quedistas do Serviço Geral, que, depois de devidamente instruídos, desempenhavam o cargo com cuidado.

 

O restante pessoal, para além de um cabo pára-quedista negro, era todo do Serviço Geral da Força Aérea. Tinha dois cabos amanuenses e três sargentos, que, por irem terminando o tempo da comissão, foram substituídos por outros.

Em abono da verdade, depois de ter sido chefe de contabilidade do Comando da 1.ª Região Aérea, o BCP-31 não passava de uma brincadeira, em termos de trabalho. O que exigia maior atenção era a gestão de fardamento e calçado, que fazia parte das atribuições do tesoureiro, supervisionada por mim.

Foi um quebra-cabeças a ida para o Parque Nacional da Gonrongosa com todos os militares vestidos à paisana, porque em um mês de operação no mato qualquer par de botas ficava incapaz, assim como as calças de ganga ou as camisas. Ora, os regulamentos previam a requisição de fardamento e calçado de campanha e jamais peças de vestuário civil! Em nome da guerra tivemos de tornear dificuldades e impedimentos, sempre sob o meu controle apertado para evitar situações tentadoras e susceptíveis de levar à falta de clareza e transparência.

 

Na contabilidade, que se fazia à mão com auxílio de uma simples máquina de calcular, tive dois sargentos muito capazes, sendo que o segundo se revelou excepcional, de um empenhamento e dedicação fora de qualquer dúvida. Foi o elemento sobre quem me apoiei para levar a cabo toda a liquidação administrativa. Devo deixar aqui o nome dele, porque, daquela experiência para a frente, tanto quanto sei, apegou-se ao serviço administrativo e marcou sempre pela correcção. Hoje, o Belarmino, ao que sei, está reformado.

Para o serviço de correspondência e outro tipo de expediente tive como auxiliar o furriel miliciano Nobre Guedes, neto do engenheiro, que foi o primeiro Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa e embaixador na Alemanha nazi, junto de Hitler.

Era um jovem muito educado, trabalhador e cumpridor, nada exuberante em matéria de simpatias políticas. Uma única vez mostrou ressalvas quanto à pessoa de Francisco Pinto Balsemão, mas muito cautelosas. Não me acompanhou nas tarefas de liquidação do conselho administrativo, porque, sendo miliciano, ao acabar a comissão, optei por não colocar qualquer tipo de entraves ao seu imediato regresso a Portugal.

 

Não sei precisar a data exacta em que, para substituir um outro camarada, se apresentou no conselho um 2.º sargento amanuense cujo nome já esqueci, se calhar por força do que vou contar.

O homem só tinha experiência de trabalho em secções de pessoal, mas, os amanuenses, por definição, dada a ausências de uma formação específica, tinham de estar preparados para todo o tipo de trabalho burocrático, desde o relacionado com recursos humanos até ao auxiliar de administração financeira, passando pelos de apoio logístico. Assim sendo, entendi que o poderia dispensar quando ele tivesse mostrado aquisição de alguns conhecimentos de matriz contabilística. Beneficiava-o e, ter de instruir um outro dava tanto trabalho como instruí-lo. Esta minha decisão assentava num fundamento mais profundo, que passo a explicar.

Ao longo da minha experiência profissional, verifiquei que os incompetentes numa determinada função são, por regra, beneficiados pelas chefias – em especial militares ou da função pública –, porque não os responsabilizam, escolhendo para fazer trabalhos complicados outros que se mostram diligentes e empenhados. Isto é prejudicar os bons em detrimento dos maus. Quem não presta ou aprende a prestar ou não pode sair beneficiado.

 

A verdade é que o tal 2.º sargento não aprendeu nada e sempre se recusou a fazer qualquer esforço nesse sentido. Nunca o autorizei a mudar para a secção de pessoal, como tanto ambicionava. Fui mais longe, só regressou a Portugal no mesmo avião em que eu vim e, querendo ir para a base de Tancos, foi comigo para as velhas instalações de Alfragide para me acompanhar na liquidação do conselho administrativo.

 

Um caso declarado de stress de guerra ocorreu com o cabo pára-quedista negro, que, muito a custo, escrevia à máquina uns ofícios. Era um tipo calado, disciplinado, sorumbático e sempre ajudava alguma coisa.

Em certa altura, já quando a guerrilha actuava próximo da Beira, houve necessidade operacional de levar o tal cabo para reforçar os efectivos de uma companhia de combate. Por lá andou um mês e, uma bela manhã, apresentou-se no conselho administrativo. Foi ocupar a pequena secretária de dactilógrafo que ficara livre à sua espera.

Na pista da base aérea, várias aeronaves faziam experiências de motores, obrigando-os a trabalhar em alta rotação. Claro, o barulho chegava ao conselho administrativo com grande intensidade, dificultando as conversas. Em dado momento, o cabo levantou a cabeça e, com ar desvairado, olhos desorbitados, berrou: «Não façam barulho, calem-se!».

Olhei para ele e percebi, de imediato, que havia ali uma profunda perturbação psíquica; isso determinou a minha atitude:

- Vamos lá ter calma.

Foi como se não me tivesse ouvido. Daí a pouco tornou a fazer exactamente o mesmo. Os restantes militares presentes na sala olharam-me à espera da conveniente e apropriada reacção. Fiz-lhes o sinal convencional, com os lábios e o dedo indicador, de estarem calados. Peguei no telefone e liguei para o gabinete médico mandando vir imediatamente uma equipa com enfermeiro e injecção para o porem a dormir. E foi o que aconteceu. Saiu da sala do conselho administrativo já de maca e em sono profundo. O regresso ao mato tinha-o rebentado pelo lado de dentro da cabeça.

 

Porque estive colocado numa unidade de pára-quedistas, colaborando para o esforço operacional, durante a guerra, uso, com grande orgulho e certa vaidade, os cordões azul ferrete indicativos da Ordem da Militar da Torre e Espada colectiva, que foi atribuída aos batalhões e respectivas guarnições.

16.09.20

Fases da minha vida ‒ 63

(Os aproveitamentos na DDSIC)


Luís Alves de Fraga

 

Ainda, talvez, em Junho de 1974, todos os oficiais de Administração Aeronáutica (chamados, na época, de Intendência e Contabilidade, designação de que sempre discordei por ser redutora e induzir em erro sobre a nossa actividade) fomos chamados a Nampula, à delegação da Direcção do Serviço, para tomarmos parte numas jornadas de trabalho.

 

É necessário dizer que o director delegado era um tenente-coronel tido como feroz em termos disciplinares militares, já que, do ponto de vista técnico não era nada de especial. Era oriundo de miliciano e ficara-se pelas continências e sentidos!

Ora, logo de seguida ao 25 de Abril, em Portugal, procedeu-se, nos três ramos das Forças Armadas, ao saneamento dos respectivos quadros, ou seja, à vassourada, mandando para a reserva ou reforma, a maioria dos oficiais sobre quem impendiam graves suspeitas de total adesão ao regime político deposto ou reconhecida incompetência profissional.

Diga-se, para ser verdadeiro, que, na essência, o processo estava correcto, mas, na prática, foi um exercício de oportunismos e de vinganças pessoais ou colectivas. Referindo-me somente ao quadro de Administração Aeronáutica, oportunismo como o de deixar ficar no activo um oficial que se sabia ser filiado na associação de antigos graduados da Mocidade Portuguesa, travestindo-se, de imediato, num acintoso esquerdista de matriz marxista; vingança pessoal como casos de afastamento de oficiais mais antigos que tapavam as vagas para as promoções. Vi um pouco de tudo, ficando com um sabor amargo na boca, pois percebi o alcance de muitas tomadas de decisão seguidas de actos de grande cobardia pessoal, deixando que as culpas de saneamentos selvagens recaíssem sobre aqueles que, na comissão, de acordo com a combinação prévia, guardaram segredo sobre os seus votos.

 

Ora, em concordância com um certo clima de insegurança, o director delegado, em Nampula, sabendo das razões e descontentamentos que sobre si impendiam, transformou-se de lobo em cordeiro, aceitando qualquer proposta sobre qualquer assunto que se quisesse discutir. Essa a razão da convocação para a jornada de trabalho liderada por um capitão, também oriundo de miliciano, que desenvolveu uma estratégia para alcançar fins não confessados.

Foi um dos espectáculos mais tristes que tive oportunidade de assistir. A passividade de toda a gente era total. Aqui e ali, levantei questões que, prontamente eram rebatidas pela verve do meu camarada, aliás, muito bem preparado para enfrentar qualquer oposição. Ele, em si mesmo, foi sempre uma oposição a tudo e a todos, incluindo a ordem estabelecida em todo e qualquer lugar.

Hoje, tenho a certeza, o objectivo daquela pseudo-revolução levada a cabo num ambiente de desconfiança e quase medo – toda a gente desconfiava de toda a gente e, curioso, esteve presente um pobre major (não fazia mal a uma mosca, embora não fosse tecnicamente brilhante – quem o era?) que acabou recebendo a notícia de ter sido saneado em Lisboa – era condicionar o director delegado de modo a este autorizar o embarque do dito capitão para Portugal, sem haver substituto nomeado, deixando o conselho administrativo de que era chefe de contabilidade entregue a si mesmo. E conseguiu. E chegou a tempo de tomar parte activa nos acontecimentos mais importantes no plano militar.

 

Lastimei ver o tenente-coronel – antigo terror da maior parte dos oficiais – reduzido a um papel apagado e submisso. Verifiquei como é que uma mudança de regime dava para, os mais ousados ou ambiciosos, com golpes de rins, saltarem para a primeira fila da ribalta revolucionária.

Começou nesses meses a minha expectativa sobre o que seria, realmente, mais conveniente para a democracia e a liberdade, que se desejava… É que, pior do que qualquer instrumentalização internacional, viesse ela de Washington ou de Moscovo, ia ser o oportunismo de bastantes que desejavam não perder um lugar junto dos decisores. Só isto justifica as cambalhotas acrobáticas a que assisti, mais tarde, em meses… Houve quem tivesse estado num lado e, depois, sem transição mínima, passasse para o outro, diametralmente oposto.

 

Decorridos todos estes anos, ao recordar casos particulares, creio que se poderia escrever um bom tratado sobre o oportunismo e a condição humana. Mas ia ferir gente que já só deseja ver esquecidos esses desvios comportamentais e morrer com algum respeito e dignidade. O decoro leva-me a respeitar-lhes as identidades.

13.09.20

Fases da minha vida ‒ 62

(O auto de averiguações)


Luís Alves de Fraga

 

O tempo e a falta de qualquer apontamento escrito não me permitem precisar o momento em que chegaram ao BCP-31 os dois oficiais nomeados pelo general-comandante da 3.ª Região Aérea, para darem início ao processo de averiguações subsequente ao requerimento de saneamento do comandante. Julgo que terá sido ainda antes do mês de Agosto, talvez meados de Julho.

O oficial averiguante era o já conhecido, mas agora, coronel Proença ‒ o tal comandante do AB-1 que contestou o concurso público ‒ e o oficial escrivão era o tenente-coronel pára-quedista Alves Cerveira de Oliveira, vindo do BCP-32, com sede em Nacala.

Começaram por ouvir, admito, mais do que uma vez, o segundo comandante, major Catroga Inês, seguido de todos os oficiais da unidade.

Não sei o que disseram, pois nada contaram. Mas não posso deixar de colocar em destaque o facto de, por essa altura, serem já muito grandes as intrigas entre capitães, havendo como que uma manifesta vontade de me afastarem de delegado do MFA, na unidade.

Ao conjecturar que perdia a legitimidade no desempenho da função, porque já se faziam sentir as influências com matriz política nas posições dos oficiais, coloquei o cargo à disposição para que se fizessem novas eleições. Claro, o resultado caiu na pessoa de um capitão que era, quase pela certa, o intriguista mor da unidade; o único que tratava o anterior comandante por tu e que, contudo, mais acicatou os camaradas contra ele. Mas, com o desenrolar do processo de averiguações, verifiquei que a unidade estava a desmoronar-se, principalmente a partir dos oficiais, havendo já algum mal-estar entre os sargentos, que se posicionavam num ângulo quase oposto ao dos seus superiores hierárquicos.

 

Devem ter durado cerca de duas semanas as averiguações, tendo regressado o coronel Proença ao seu cargo de chefe do estado-maior da Região Aérea e o tenente-coronel Oliveira ao comando do BCP-32.

Dias depois, de concluído o auto de averiguações começaram a fazer sentir-se as consequências da insubordinação: marchou de imediato para Tancos o major Catroga Inês, com a comissão dada por finda, bem como todos os outros oficiais pára-quedistas do quadro permanente, independentemente do posto. Dos oficiais da Força Aérea ‒ os bicos de pato no dizer dos páras ‒ poucos ficaram na unidade. Eu fui um deles.

 

Em Agosto a minha mulher e os meus filhos regressaram a Portugal e, em Setembro ou começo de Outubro, fui contemplado com a visita do, na altura, major de Administração Sacramento Gomes.

Vinha a mando do director delegado da DDSIC, na altura já com sede em Nampula, para saber, por ordem do general-comandante da Região Aérea, qual era a colocação que eu pretendia, pois, de momento, não podia ficar no BCP-31. Tratava-se, como suspeitara, da limpeza absoluta da velha unidade.

Apanhado de surpresa, com a consciência de que me faltavam oito meses ou um pouco mais para terminar a comissão, dei a única resposta séria e honesta, que me assaltou no momento: ir ao Aeródromo Base n.º 6, Nova Freixo, fazer a desactivação administrativa da unidade (estava sem chefe de contabilidade havia alguns meses) e, depois, regressar à minha unidade, ou seja ao BCP-31, visto só perfazer vinte e quatro meses de serviço em Abril de 1974.

O major Sacramento Gomes respondeu-me, textualmente:

‒ É assim que vai ser. Trazia ordens do nosso general para aceitar qualquer proposta que me fizesse, incluindo a de regressar de imediato a Lisboa.

Fiquei a olhar para ele e, mentalmente, a ofender-lhe a mãe e toda a ascensão feminina da sua família. Fez o jogo mais sujo que se podia fazer, embora eu tenha tido oportunidade de ter a mais bela e única experiência da minha vida: ver nascer um novo Estado! Todavia, tive, nesse momento, um dos primeiros avisos do que se tornaria moeda corrente entre nós: o oportunismo, pois o major Sacramento Gomes tinha sido um dos poucos oficiais da Força Aérea empenhado, na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, no golpe militar, tomando de assalto as instalações da emissora do Rádio Clube Português.

 

Não tardou que embarcasse para a minha nova colocação, conhecer uma outra realidade, experiência também única: entregar uma base aérea à FRELIMO e sair de lá no último avião português a descolar da pista.

 

11.09.20

Fases da minha vida ‒ 61

(Saneando o comandante)


Luís Alves de Fraga

 

O clima social no BCP-31, no mês de Maio e no seguinte, era completamente tenso entre o comandante ‒ tenente-coronel Rua ‒ e o segundo comandante e capitães comandantes de companhia operacionais. Nos restantes oficiais, incluídos os pára-quedistas do Serviço Geral, havia tensões diversas, porque se dividiam entre a lealdade que deviam ao comandante e as oportunidades novas surgidas de um ambiente de insurreição.

Em várias ocasiões, formais e informais, com a presença do segundo comandante ou não, foi, perante mim, exposta a necessidade de se proceder ao saneamento do comandante.

Note-se que a minha experiência de comando ou chefia, comparada com a dos meus camaradas belicamente operacionais, era muito pequena, embora, na maioria dos casos, possuíssemos a mesma antiguidade e formação castrense inicial. Eu tinha, na altura, oito anos de oficial ‒ parecia muito mais ‒ e o segundo comandante, mais ou menos, treze ou quinze, mas com experiência de prisioneiro na Índia e combatente em Angola.

Mas, quando se tratava de equacionar o saneamento do comandante, não estava em jogo a experiência de combate nem a de liderança de guerreiros. Somente se podia e devia jogar com o bom senso e com a percepção das consequências.

 

Devo recordar que, neste ínterim, uma companhia operacional foi chamada à província da Zambézia, onde não havia quaisquer sinais de guerrilha, para recolocar a disciplina numa outra companhia do Exército, cujos graduados ‒ todos europeus e milicianos ‒, enquadrando soldados do recrutamento moçambicano, haviam recusado a manter-se na localidade, exigindo o regresso imediato a Portugal. Ou seja, as tropas de elite não serviam já só para intervir onde o comando-chefe entendesse para se opor à guerrilha, mas também para repor a ordem dentro das próprias fileiras das forças regulares, em especial se estas fossem formadas por militares negros que, e muito bem, queriam salvar a pele de represálias futuras exercidas pelos novos senhores da política.

Sem experiência de comando em combate, eu percepcionei a importância de manter a disciplina dentro do BCP-31. Era só uma questão de bom senso, que não faltava aos meus camaradas, mas que estava embotado pela determinação de afastar aquele comandante do seu posto.

 

Houve, em Nampula, em data que já não sei precisar, mas, presumo, talvez no mês de Julho, uma reunião de todos os delegados do MFA para tomada de posição conjunta sobre um qualquer tema, que se desvaneceu, na poeira do tempo, da minha memória. Lá fui, como era obrigação. Terei estado ausente da Beira dois dias, no máximo, três.

Ao regressar confrontaram-me com uma situação já consumada: os oficiais pára-quedistas do batalhão haviam feito um requerimento colectivo, dirigido ao Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), em Lisboa, solicitando a substituição imediata do comandante.

Era CEMFA, ainda nessa altura, o antigo comandante da 3.ª Região Aérea (Moçambique), o general Diogo Neto cujas concepções políticas deixavam, como já tive oportunidade de dizer, muito a desejar. Comandava a Região Aérea um dos poucos oficiais generais progressistas do ramo: o piloto-aviador Rangel de Lima. Não sei, nem nunca soube, que entendimentos houve entre os dois generais, mas o certo é que o tenente-coronel Rua, ao ter conhecimento da situação, recolheu a casa e nunca mais entrou na unidade, regressando a Portugal alguns dias depois. Acabou saindo das tropas pára-quedistas e, anos depois, foi comandante do batalhão da GNR em Évora.

 

A curto espaço de tempo os oficiais pára-quedistas e eu mesmo perceberíamos o alcance da atitude tomada. Não é impunemente que, numa unidade militar de elite, se alimenta uma insubordinação.

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