Fases da minha vida – 67
(No regresso ao BCP–31)
Ao ter completado a desactivação administrativa do AB-6, em Nova Freixo, no final de Novembro de 1974, pedi licença para gozar férias ‒ um mês e uma semana ‒ em Portugal, daí que, a minha presença na Beira foi fugaz e somente para embarcar num Boeing 707 da Força Aérea rumo a Lisboa. Queria passar o Natal e o Ano Novo com a família que, entretanto, se havia instalado no Alto Alentejo onde, antes de ir para Moçambique, eu comprara uma muito pequena casa. A minha mulher estava a dar aulas em Estremoz.
Esse mês de Dezembro, em Portugal, deu para me aperceber da total confusão política que se vivia. Sofri um choque inesperado; julgava o ambiente muito mais calmo, mais com rumo e fiquei com a sensação de que cada qual fazia o que bem entendia: ocupavam-se casas devolutas com a aquiescência dos militares, iniciava-se o esboço da reforma agrária com ocupação de herdades de agricultores absentistas, os militares faziam sessões de esclarecimento verdadeiramente incendiárias, dominadas por jovens milicianos adeptos de soluções radicais de esquerda, preparava-se o acordo de Alvor ao mesmo tempo que o major Melo Antunes delineava a orientação política e económica para o país. A palavra fascista era a que andava mais na boca de toda a gente quando se queria ofender alguém. Mas, se fascista não chegava, atirava-se-lhe com reaccionário.
No Alentejo, onde me fixei com a família, para passar a quadra festiva, os proprietários agrícolas ‒ médios ‒ andavam assustados com as reivindicações dos assalariados, antes tão submissos e, naquela altura, cheios de arrogância.
As problemáticas em Portugal eram completamente distintas das que estava já habituado em Moçambique.
Quando embarquei, de regresso à cidade da Beira, para acabar a comissão de serviço, pressenti que em Portugal alguma coisa tinha de acontecer para repor uma certa ordem na situação e, ao mesmo tempo, respirei de alívio por poder voltar… Não imaginava o que se iria verificar em Moçambique!
No BCP-31 já não restavam oficiais dos que haviam pedido o saneamento do comandante. Desde o novo comandante aos alferes, todos tinham vindo do BCP-32, cujo aquartelamento, em Nacala, havia sido entregue à FRELIMO. Comandava a unidade o tenente-coronel Cerdeira Alves de Oliveira (conhecido entre os seus homens pela alcunha de Punhos de Renda); o segundo comandante era o major Resendes, um açoriano, mais antigo um ano do que eu na Academia Militar. Era ele quem presidia ao conselho administrativo.
Do MFA e da sua estrutura já ninguém falava. Era coisa do passado. Mesmo a cidade estava a ficar deserta. O policiamento era feito em veículos militares com forças mistas do exército português e militares da FRELIMO. O comércio fechava portas para não mais as abrir. Os donos das lojas, desejosos de realizar dinheiro, vendiam os produtos a preços baixíssimos e foi deste modo que, por conselho do meu amigo e camarada Mário Cotovio, chefe da contabilidade da Base Aérea n.º 10, comprei uma excelente máquina fotográfica com todos os acessórios imagináveis e uma máquina de cozinha Kenwood.
Na emissora do Aero Clube da Beira resistiam alguns dos locutores europeus e alguns técnicos. O programa ao qual me encontrava ligado mantinha-se no ar com alguma esperança, mas sem certezas quanto ao futuro.
Os restaurantes estavam abertos e, à noite, nos mais caros e mais sofisticados, onde jantava com o Cotovio ‒ a messe de oficiais deixara de servir refeições ‒ verifiquei que a clientela havia mudado em absoluto: já não eram os europeus endinheirados, mas casais africanos com excelente aspecto ‒ elas usavam lindas capulanas tradicionais ‒, que jamais vira na cidade. Ainda hoje é para mim um mistério como, de repente, surgiu essa abastada classe média africana; não me pareceu que tivesse vindo do exílio ou fosse constituída por quadros da FRELIMO.
As missões de guerra do BCP-31 tinham acabado. Estava-se a desmantelar o que havia de recolher a Portugal e em prevenção para qualquer eventualidade. A vida na unidade fazia-se a outro ritmo.
Comecei a preparar tudo para a desactivação. Foi um trabalho interessante e único, feito de maneira bem diferente do que havia executado em Nova Freixo. Aqui tudo foi ponderado com muita mais calma. Além disso, estávamos no começo de um novo ano civil que seria interrompido, do ponto de vista logístico, no final do mês de Maio. Havia que preparar a marcha da única companhia operacional para Lourenço Marques onde faria a honras militares ao arrear da bandeira de Portugal. Iam ficar na capital mais de dez dias sem qualquer tipo de apoio. Ainda sugeri ao comandante a possibilidade de os acompanhar com mais dois sargentos para suprirmos aspectos logísticos de última hora. Recusou, pois só atrapalharíamos.
Combinei com o capitão Cotovio o dia em que ambos deveríamos regressar a Portugal, fazendo, deste modo, a paragem administrativa tanto no batalhão como na base. Mandei à frente o sargento Belarmino para recepcionar as caixas com documentos e livros de contabilidade e balanços de material e fardamento, que deveriam seguir para a Base Aérea n.º 1 e de lá para a unidade que nos fosse destinada para proceder aos trabalhos finais de liquidação.
De Fevereiro a Abril de 1975 foi um tempo de azáfama. Ainda requisitei um helicóptero para o tesoureiro ir liquidar a conta de pão, que ficara por pagar em Inhaminga, mas a aeronave foi recebida pela FRELIMO com tiros de arma automática e o piloto resolveu regressar. Foi o único calote que o batalhão deixou em Moçambique.
Recordo, com saudade, esses derradeiros meses de trabalho numa unidade que, sendo a mesma onde havia chegado há um ano, era muito diferente… São as pessoas que fazem os ambientes, não há dúvida.