Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

29.08.20

Ignorar a História ou a ignorância popular


Luís Alves de Fraga

 

É sabido que, tanto nas universidades como no ensino básico e secundário, durante o Estado Novo, o mesmo é dizer, na ditadura salazarista, os programas de estudo de História de Portugal pouco ou quase nada iam além da Revolução Liberal de 1820, falando-se vagamente das lutas entre D. Pedro e D. Miguel, do regicídio, da implantação da 1.ª República e do mal que esta gerara no país. O Estado Novo e a Revolução Nacional ‒ era assim que se designava o processo ditatorial iniciado em 28 de Maio de 1926 ‒ impulsionados por Oliveira Salazar, enchiam o consciente dos estudantes desde o primeiro ano do ensino até ao último, fosse ele qual fosse.

 

Quando se estudavam os territórios ultramarinos eles tinham designações diferentes de acordo com a época de estudo; foram colónias do Império Colonial, foram Províncias Ultramarinas e chegaram a ser Estados (Angola e Moçambique). Mas foram sempre, para nós, os que nascemos nos anos da Ditadura, uma Herança dos Nossos Maiores, uma Herança da Gesta Heróica dos Descobrimentos. Foram sempre uma responsabilidade moral que nos esmagava com o peso da obrigação de assegurar a continuidade da Herança e com o encargo de civilizar os pobres negros atrasados desses territórios.

Foi aqui e nisto que começou a mentira de Salazar, mas, também, a mentira dos republicanos ‒ menos responsáveis, contudo, responsáveis ‒, a mentira de todos os que sabiam a verdade e a esconderam!

Vamos por partes, desmontar essa mentira e percebê-la, porque se ela não for desfeita agora, também os povos dos Estados independentes, que no passado foram colónias portuguesas em África, criarão uma mentira que nos afecta, enquanto Estado colonial.

 

A Herança da Gesta Heróica dos Descobrimentos era ridícula, em dimensão territorial comparada com as fronteiras das colónias Guiné, Angola e Moçambique, que deram azo à guerra colonial entre 1961 e 1974.

Portugal, nos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e grande parte do século XIX, detinha somente pontos ao longo das costas marítimas daquilo que se chama Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Pontos onde se fixaram portugueses comerciantes e militares para defender o comércio que se fazia com as populações adjacentes. A penetração para o interior do continente africano ‒ sempre com intuitos comerciais e, convém esclarecer, não esclavagistas ‒ só ganhou algum interesse e só começou a fazer-se com método, depois de 1860 e é necessário esclarecer a razão de ser deste movimento.

 

Em Lisboa temia-se a concorrência que a França e a Inglaterra começavam a fazer, penetrando para além da costa onde já se haviam fixado ‒ expulsando os comerciantes portugueses no século XVII ‒ com o objectivo de comerciar produtos fabricados pelas suas indústrias em florescimento.

Foi esta concorrência, associada à ambição do rei Leopoldo da Bélgica e ao intuito de navegação livre no rio Zaire, que determinou a Conferência de Berlim, começada em 1884 e concluída em 1885.

Foi neste fórum internacional que se definiu o Novo Direito Internacional, substituindo o antigo, que admitia uma regra muito singela: a potência detentora da costa detém o interior correspondente; a alteração estava em concordância, agora, com as novas capacidades produtivas dos Estados em concorrência: para deter o interior havia que o ocupar efectivamente, ou seja, dominar as estruturas políticas, sociais, económicas e religiosas existentes nesse espaço geográfico desconhecido.

Esta decisão europeia gerou vários processos de ocupação: pela acção missionária, pela acção comercial, pela acção diplomática, pela acção política e sempre pela acção da força militar.

Ingleses, franceses, belgas, espanhóis, alemães e italianos foram impondo a sua presença no continente africano, sendo que os portugueses, mais antigos em África, porque não tiveram capacidade de concorrer no desenvolvimento industrial, mantiveram-se apegados à actividade tradicional: o comércio. Assim, a ocupação efectiva pouco ou nada tinha para oferecer para além da imposição da subordinação da política tradicional africana ao poder político português e, a par disso, a obrigação da prática de uma agricultura que fosse rentável aos cofres públicos nacionais.

Uma tal ocupação tinha de gerar oposição por parte dos líderes políticos africanos. Daí à luta armada foi um passo. Passo que se deu depois de 1885 e durou, consoante o território, até às primeiras dezenas de anos do século XX, altura em que foram aceites internacionalmente as fronteiras hoje definidoras dos Estados independentes.

Deste modo, toda a gente é capaz de perceber que o colonialismo português durou muito menos de cem anos. Façamos contas.

De 1860 a 1974 vão cento e catorze anos. Este foi o tempo entre o início da primeira incursão no interior do território do que viria a chamar-se Angola, contudo, só depois de 1885 começaram os conflitos e as imposições militares. Então, voltando às contas, de 1885 a 1975 só passaram noventa anos!

Aqui está a Herança da Gesta Heróica dos Descobrimentos!

Foi por causa desta herança que uma geração de jovens portugueses se bateu em África!

Realmente, não era herança nenhuma, porque se a fosse ter-nos-íamos limitado a combater pela continuidade da presença portuguesa nos pontos da costa marítima onde os navegadores e comerciantes dos séculos XV e XVI se fixaram.

Então, a nossa África seria qualquer coisa como, no máximo, Goa e no mínimo Diu ou S. João Baptista da Ajuda (que Salazar mandou queimar e abandonar!). Essa é que era a nossa África herdada.

Mas a guerra que nós sustentámos contra a guerrilha, de 1961 a 1974 (ou que a guerrilha fez contra nós) foi a continuação das campanhas de ocupação determinadas pelas regras saídas da Conferência de Berlim, em 1885.

 

Se se não tivesse escamoteado a verdade no ensino da História de Portugal, muito mais cedo os Portugueses teriam percebido o engano em que estavam a chafurdar e ‒ quem sabe? ‒ teriam arranjado processo de ter mandado Salazar, o Estado Novo e toda a pandilha que sustentava a situação passear. Teríamos saído sem derrame de sangue da África que não era Herança dos Descobrimentos e teríamos virado toda a nossa política para a colaboração com os novos países e para encontrar forma de alterar a economia metropolitana de maneira a torná-la competitiva ainda na década de sessenta do século passado.

 

O estudo da História ‒ não digo da propaganda histórica, que os poderes políticos querem impor aos seus povos ‒ com toda a verdade e clareza que pode trazer sobre o passado, ajuda a democracia e a honestidade política. A distorção da História corresponde sempre a uma manipulação do povo e esconde um objectivo político que é, nessa altura, inconfessável.

25.08.20

Páginas do Meu Diário - 5


Luís Alves de Fraga

15 de Fevereiro de 2019

Depois de me levantar, já espirrei três vezes e fui acometido por dois ataques de tosse. O enfisema assusta-me pela fragilidade que tenho ao nível respiratório e o receio de contrair uma pneumonia. É a forma mais segura de fazer morrer gente da minha idade. Curioso, o escrever sobre isto, lembrou-me uma outra vinda do tempo em que não tinha, rigorosamente, qualquer consciência de mim.

Ao nascer, segundo tradição contada entre familiares, terei tido dificuldade a dar resposta à tradicional palmada, que leva ao choro, ao grito, provando que se encheu os pulmões de ar e se respirou. Não queria nem chorar, nem respirar e, segundo o hábito da época, lá fui metido em água quente e água fria para provocar o enchimento dos pulmões com ar. Mas a água quente estava, ao que parece, bastante quente, de modo que aplicaram-me um escaldão, que me pôs a fazer sons até ao dia de hoje!

Problema foi, que dias depois, aquando do meu baptizado, na igreja dos Anjos, o padre Esteves, oficiante, disse para o meu pai, enfermeiro da Marinha de Guerra, que era preciso ir ao médico com o menino, pois estava com um problema de pele. Célebre ficou a resposta do meu progenitor: «Ora, senhor padre, trate-lhe da alma, que do corpo trato eu!».

Creio que o meu pai cumpriu melhor o seu vaticínio do que o pobre sacerdote, que, acompanhou-me na catequese, na primeira comunhão, no crisma e, por fim, no meu primeiro casamento… Mas não me cativou, deveras, para continuar devoto da Igreja. Isso a seu tempo tratarei aqui.

Porque vem a propósito, sendo oportuno agora, vamos lá recordar os meus pais, tal como me lembro deles nos primeiros anos de vida. É que me lembro e bem!

As memórias da minha mãe vêm lá muito de trás salpicadas de pequenos episódios que irei repetindo ao longo deste relato, por isso não me detenho muito nelas; passarei às do meu pai, por vários motivos: julgo que me marcaram muito e tornaram-se determinantes para o meu crescimento.

2.º sargento enfermeiro da nossa Armada, quando eu nasci, o meu pai, açoriano a da ilha das Flores, foi aluno do seminário de Angra do Heroísmo até quase concluir o curso e estar preparado para se tornar sacerdote. Não acabou, porque não tinha vocação. Também, porque nascido em 1907, foi apanhado pelos efeitos da Lei da Separação das Igrejas do Estado, de 1911, e, ao sair do seminário, para além de uma muito boa cultura clássica, não tinha mais, oficialmente, do que aquilo que hoje se chama o quarto ano de escolaridade. Contudo, escrevia com primor, poetava, e lia quase compulsivamente. Sempre comprou, diariamente, o vespertino Diário de Lisboa, que devorava da primeira à última página; creio que, quinzenalmente, adquiria mais dois outros jornais: a Vida Mundial e o Sempre Fixe (uma folha humorística que, dentro dos condicionalismos da censura, estava pronto a dar grandes alfinetadas no Governo). À noite, na cama, abria um livro ‒ romances ‒ e adormecia a ler. Foi isto que me marcou. Foi esta a primeira impressão do meu pai: ler e escrever era como respirar!

Depois, depois recuando na memória até ao limite mais distante, vem o tormento de comer! Conto, para não deixar dúvidas.

A minha mãe ‒ creio que, como todas as mães da época ‒ era ansiosa quanto ao peso deste garoto. E eu, não sendo magro, era pouco nutrido para o gosto e desejo dela. Acresce que era uma criança irrequieta ‒ o que hoje se chama hiperactivo ‒ e, comer era um tormento. A minha mãe azucrinava constantemente o meu pai porque eu não comia. Ele não era propriamente dito um poço de paciência e, claro está, obrigava-me a comer os bifes, o arroz, as batatas e tudo o mais que já não recordo. Do que me lembro ‒ até porque ainda hoje tenho uma vaga tendência para o fazer ‒ é que, à semelhança de certos símios, acumulava a comida numa das bochechas, na boca, e não havia nada capaz de me levar a engolir aquela massa misturada de sabores diferentes. Nem as valentes palmadas dadas pelo meu pai, em desespero de causa. Só estava dispensado de comer, se vomitasse… E eu não conseguia provocar o vómito de forma nenhuma!

Admito, está aqui a razão de nunca me ter tornado num bom garfo. Comer o suficiente para viver sempre foi o meu objectivo. Não vivo para comer.

Recordo, muito vagamente, a ansiedade da minha mãe quando o meu pai perdia a cabeça e me dava uma ou duas valentes palmadas. É que, no meio de tudo isto, eu era o menino da mamã. Ela vivia entre a alegria de me ter ali, junto a si, e o medo de que qualquer doença me levasse para a eternidade. E tinha razão para tal, pois a mortalidade infantil, nesse tempo, em Portugal, era altíssima.

Como se verá, tive uns pais fantásticos e uma irmã ‒ mais velha sete anos ‒ extremosa.

24.08.20

Páginas do Meu Diário - 4


Luís Alves de Fraga

14 de Fevereiro de 2019

Não sou fã dos Britânicos e, em particular, dos Ingleses. Não se trata de contágio do estudo da História portuguesa e das malfeitorias das quais são responsáveis. Não. Não gosto deles por causa da sua arrogância na vida e na política, da sua imperturbável tranquilidade, do seu arreigado sentido de independência e isso levou-me a, ao sentar-me aqui, frente ao computador para escrever coisas sobre mim, sobre o meu tempo, a minha vida, reflectir no complicado processo de abandono da União Europeia em que o Governo de Sua Majestade Britânica se meteu.

Leio, com alguma facilidade, ensaios escritos na língua de Shakespeare, mas não romances e menos ainda poesia. Nunca estudei a língua a fundo, porque me recusei a cumprir a programação do meu tempo de ensino; achava que os idiomas estrangeiros deviam ser aprendidos tal como as crianças os aprendem: ouvindo, falando e dando tropeções na ortografia, na gramática, na formação das frases e não como se exigia há sessenta ou cinquenta anos: sabendo, com correcção, a gramática e escrevendo para não dar erros. Hoje, ou melhor, há já vinte ou trinta anos, o ensino das línguas estrangeiras mudou.

Quem não mudou fui eu, por isso, lá vou regressar ao meu tema predilecto, porque, nesta noite, eram quatro da madrugada, acordei com a ideia fixa de escrever sobre os anos à volta de 1941 e de Salazar e da ditadura.

 

Quando nasci estavam a completar-se treze anos de constante presença de Salazar no Governo nacional e quinze sobre o começo da ditadura. Com a idade que hoje tenho apercebo-me de como, quando se é jovem ‒ talvez até se chegar aos cinquenta anos ‒ três lustros é muito tempo. Agora, depois de ter vivido quase oito décadas, tenho a clara noção da exiguidade de doze ou treze anos perante a História. Salazar, em 1941, tinha de governação pouco mais do que dois mandatos de um actual Presidente da República. Era perfeitamente descartável, se houvesse vontade política para tanto! Mas, a verdade, é que não havia…

Não havia essa vontade, segundo o que penso, por vários motivos.

Vejamo-los:

A propaganda negativa que se fazia à volta dos desmandos da 1.ª República era determinante, em especial entre certas camadas da população, para se aceitar a ditadura e o ditador. Todos esqueciam que tais desmandos, em especial durante a Grande Guerra e logo a seguir, até 1926, foram devidos a razões externas a Portugal, pois o descalabro económico em que ficou a Europa arrastou o nosso país, altamente dependente das importações estrangeiras, para um caos financeiro por não ter uma economia competitiva. Acresce que a 1.ª República havia gerado uma fissura grave no tecido social, resultante do anticlericalismo determinado, e que a ditadura estava a refazer a ligação tradicional da Igreja Católica ao Estado.

A apregoada sanidade dos orçamentos do Estado, que, sabe-se lá como, deixaram de ser deficitários para terem saldos positivos. Hoje, melhor do que, talvez, qualquer explicação económica, sabemos como se consegue esse milagre: baixos salários – que na época eram de miséria ‒ desemprego generalizado, falta de investimento em sectores fundamentais como o da saúde ‒ quem era pobre morria sem tratamento ‒, sobrecarga do horário de trabalho, impondo, por vezes, condições quase escravizantes.

Ao mesmo tempo perdeu-se, desde 1926, a liberdade de expressar o pensamento, pois foi instituída a censura prévia tanto a jornais como livros, filmes, peças teatrais ou a qualquer outro espectáculo. Era considerado ajuntamento público a simples reunião de mais de três pessoas na rua.

O medo instalou-se entre todos os cidadãos, porque havia o receio da repressão policial, que era brutal. A pouco e pouco os homens e mulheres, que haviam apoiado a 1.ª República, passaram a desmobilizar-se, deixando de lutar pelos seus ideais. Recordo-me de ter ouvido contar que o meu avô materno ‒ 1.º sargento de cavalaria, republicano, carbonário, antigo combatente em Moçambique e na Flandres ‒, porque, sentindo-se velho, depois da última tentativa revolucionária (julgo que no ano de 1931), foi enterrar, nos baldios da Junqueira, em Lisboa, onde muitos anos mais tarde se construíram os edifícios da FIL, duas ou três granadas de mão, uma pistola e respectivas munições e mais um estoque/bengala e uma soqueira. Era o medo da repressão que se impunha a gente já cansada da luta partidária e da constante conspiração contra os flancos mais reaccionários, dos quais mais se destacavam os senhores da nova situação, chamada, por Salazar, Estado Novo, recordando a designação de um outro conservador, que se adiantou na solução ditatorial, em 1917/1918, chamado Sidónio Pais, que baptizou a sua ditadura com o pomposo nome de República Nova. O curioso é que estes homens ‒ Sidónio e Salazar ‒ tudo o que não queriam era qualquer coisa nova para Portugal, pois pretendiam recuar sempre para soluções velhas e conservadoras.

 

Quando nasci, a Europa estava mergulhada já numa terrível guerra comandada pelas forças nazis, xenófobas e racistas de Hitler. Fugiam para Portugal os refugiados que tinham a sorte, o dinheiro e a possibilidade de conseguir um visto de entrada no país. Aos medos impostos pelo regime juntava-se o medo de entrar na guerra e ver arrastada, no turbilhão, a tranquilidade ‒ fictícia, como deixei evidenciado ‒ conseguida por Salazar e aqueles que o acompanhavam.

Se, por cá, se desejava a paz ao mesmo tempo crescia o medo de perder o pouco que se tinha. Este era o sentimento enraizado nas famílias urbanas ‒ das nossas grandes cidades de Lisboa, Porto e Coimbra ‒ e das famílias miseráveis dos campos onde os padres se encarregavam de tecer louvores ao ditador. Movia-os o medo, face ao que havia acontecido em Espanha nos primeiros anos da década de 30. Movia-os o medo da revolução soviética, vermelha, comunista ou anarquista. Era o medo quem dava sustento à ditadura, a Oliveira Salazar e a todos os situacionistas.

23.08.20

Páginas do Meu Diário - 3


Luís Alves de Fraga

13 de Fevereiro de 2019

Acabei de tomar um duche bem quente. Nem sempre lavo a cabeça, mas, desta vez esfreguei o que me resta de cabelo com um bom champô, para me evitar o aparecimento de caspa. Será pretensão minha, esta coisa da caspa? É que é já mais a parte sem pêlo do que a outra! Isto para quem teve uma farta e rebelde cabeleira é, no mínimo, triste. E lembro-me muito bem, quando era garoto e a minha mãe me lavava a cabeça, por não haver ainda ‒ pelo menos em Portugal ‒ secadores portáteis, enfiava-me uma boina à espanhola para acachapar a hirsuta grenha. E era nessa altura, não estando frio ou a chover, que eu ficava à janela a ajudar a secar a gadelha.

 

Da minha casa, na rua Angelina Vidal, via ‒ passe algum exagero ‒ meia Lisboa. Ainda não existiam prédios em frente. Conseguia vislumbrar, lá longe, a Basílica da Estrela e, mais perto, o Instituto de Medicina Legal, parte dos edifícios do que hoje é a Academia Militar e o campo de prática de hipismo. Lá mais para a direita, avistava uma parte do Parque Eduardo VII.

Mesmo em frente da minha porta, do outro lado da rua, havia uma oficina de metalo-mecânica onde se soldava a electricidade. Era lindo ver aquelas estrelas que saltavam. Ao lado, para baixo, era a entrada de serviço de uma propriedade que se estendia inclinada da Angelina Vidal até à rua Damasceno Monteiro. Pertencia a um coronel do Exército ‒ o senhor engenheiro ‒ cujo filho era aluno do Colégio Militar e a filha, moça mais velha do que eu, talvez, uns sete ou dez anos, saía de casa com botas de montar e boné negro na cabeça, elegante, chamando a atenção ‒ que ela não dava ‒ dos rapazes da zona. Tinham uma vivenda que, para o lado da rua, era de um só piso e não sei se para o lado da quinta ‒ onde cresciam altos pinheiros ‒ não teria mais. Havia, por ali, a aristocracia do dinheiro, pelo menos. Por trás do muro ouvia-se o constante ladrar de um ou mais cães.

Para cima da oficina, no sentido de quem sobe a rua, existia uma simpática vivenda também térrea, arrendada a um major do Exército, que tinha uma filha bastante mais velha do que eu. Era enfermeira e mandava fazer os vestidos à modista de alta costura, que vivia no primeiro andar do meu prédio.

Lá quase à curva, antes de se chegar ao começo da rua da Graça, havia também uma família com um grande casarão virado sobre Lisboa. Cá de fora não se percebia a grandeza da residência. Um dos genros do dono também era militar e veio a morrer, já general, num acidente de aviação em Angola, logo no começo da guerra.

Tudo isto era no lado fronteiro ao prédio onde eu nasci. Na correnteza do lado dos números pares, as famílias ‒ as que eu fui conhecendo ao longo da minha juventude ‒ eram do tipo pequena burguesia, vivendo de ordenados fixos, com os maridos empregados e as senhoras em casa a tomar conta dos filhos, exactamente como acontecia com a minha mãe.

O caso que mais intrigava era o de uma senhora, bem pintada, bem vestida e muito recatada ‒ pese embora o exagero da maquilhagem pouco vulgar naquela época e naquela rua e bairro ‒ divorciada, mãe de um filho, também mais velho do que eu, que não brincava no passeio, e não fazia amizade com nenhum menino da vizinhança. Lá em casa eram três pessoas: a senhora, o filho e a avó do menino ‒ criatura quase invisível.

Ser divorciada naquela época, naquele sítio, era motivo para se baixar a voz, em ar de reprovação, e sussurrar: «Lá vai a divorciada». Habituei-me a pensar que o divórcio devia conter em si mesmo algo de errado, pecaminoso ‒ ainda quando não sabia o que era pecado ‒ e socialmente condenável. Tenho quase a certeza de que não era só eu quem assim pensava e julgava. É que estávamos a viver numa Lisboa bastante fora do seu tempo, do tempo da Europa de então. Era uma Lisboa carregada de provincianismos, preconceitos, julgamentos sociais feitos de boca a ouvido. Uma Lisboa tão capaz de pecar como qualquer outra urbe portuguesa e do mundo, mas onde saber-se do pecado constituía motivo de crítica, falatório e recriminação.

Esta sociedade falsamente púdica, carregada de um clericalismo infiltrado até por baixo das camas de casal, chegando ao tutano dos ossos mais rijos, alimentava-se de um moralismo provinciano incentivado pelo regime político onde a informação era sonegada e o facto normal nos países europeus ‒ exclusão feita à católica Espanha subjugada por Franco, depois da vitória na guerra civil ‒ eram escondidos, para evitar contágios perniciosos e desmoralizantes, por atentarem contra os bons costumes. Lisboa vivia uma aparente moralidade que só o conflito bélico veio abalar.

A minha rua foi o meu primeiro macrocosmo onde aprendi muitas coisas, para as reprovar mais tarde, guardando outras, tidas como boas, para a vida inteira.

Esta foi a cidade que eu amei.JPG

 

14.08.20

Páginas do Meu Diário - 2


Luís Alves de Fraga

12 de Fevereiro de 2019 (tarde)

Em 1940 a França tinha-se rendido perante o ataque alemão.

Quando agora medito na minha meninice ‒ até aos quatro ou cinco anos de vida ‒ acho que a posso dividir em momentos diferentes e contraditórios.

Ninguém imagina hoje, em Portugal, o que foi nascer numa Europa em estado de guerra e como marcou e influenciou as crianças.

A França, quando atacada pela Alemanha, rendeu-se em 22 de Junho de 1940, assinando um armistício, em Compiègne, ficando dividida em duas partes: a livre e a ocupada. Uma mera fantasia, pois os Alemães dominavam-na toda. Chocou o mundo o facto de ter assumido a chefia do governo, da França Livre, o velho marechal Pétain, o grande defensor e herói de Verdun, na Grande Guerra. Terá assim nascido, na prática, a mais significativa divisão entre os cidadãos europeus: os que compreendiam a aceitação da derrota como coisa inevitável e os que a repudiavam. Antes, já tinha havido uma outra cisão profunda: o pacto germano-soviético para invasão da Polónia.

Percebemos que, por cima dos novos paradigmas políticos nascidos durante a guerra de 1914 a 1918 ou após ela, outros tinham de ser definidos ou redefinidos enquanto se desenrolava uma nova guerra brutal. Vou tentar explicar.

O século XIX foi o tempo da afirmação do liberalismo, consequência da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. À democracia estava associado o progresso, a liberdade política e económica. Do mesmo modo que se podia levar a exploração do trabalho a limites quase inumanos podia-se tentar enriquecer, podia-se expressar, sem pudor nem constrangimentos, o pensamento, por muito absurdo que fosse. Esta corrida na liberdade acabou por desencadear a primeira guerra mais terrífica que a Europa e, depois, o mundo vira. Assim, quase se podia afirmar que o século XX começou, realmente, no Verão de 1914. Começou com a guerra. Mas, antes, durante os cem anos anteriores, ao mesmo tempo que florescia o liberalismo, cresceram outras doutrinas e ideologias políticas que se opunham à loucura da liberdade democrática. Doutrinas que careciam de ser experimentadas, depois do fracasso da Comuna de Paris. Havia que resolver o mais tremendo problema social e político da época: o confronto entre o capital e o trabalho. Foi nesse conflito constante, determinado pelo liberalismo, que se definiram as linhas de novas soluções. Viram-se realizadas, primeiro, na Rússia, com a Revolução de Outubro de 1917 e na Itália, com a vitória fascista.

Agora há que perceber o que aproximou estas doutrinas em relação ao grande problema social e político da época.

 

O socialismo soviético solucionava o problema através da socialização dos meios de produção, dando-lhe o nome de colectivização, ou seja, ao acabar com a propriedade individual dos meios de produção eles passavam a pertencer à sociedade e, assim, o lucro ‒ cerne do conflito entre o capital e trabalho ‒ desaparecia, pois era pertença de todos. Mas isto, que parece simples, traz em si limitações básicas, que alteram os princípios do liberalismo. Convirá dedicar algumas linhas mais para deixar claro essas limitações.

Para se regular a produção de modo a não haver desperdícios, há que garantir, quase milimetricamente, que não varia o número de consumidores; tal só se consegue se se impedir a livre circulação das populações. Assim, para alcançar tal desiderato tem de se criar um sistema de controlo, com fundamento policial, capaz de reprimir abusos ou alterações de situação.

Para se continuar com um sistema de produção colectiva, tem de se limitar os mais primários desejos individuais, tais como a escolha da profissão ou de local de habitação ou de escola a frequentar ou de expressar o que se sente em relação ao colectivismo imposto. Ora, tal ordem só é possível com base na existência de limites à liberdade, controlando-os através de uma polícia. Assim, percebe-se que a simples socialização dos bens de produção corresponde à extinção da liberdade individual para dar lugar a uma liberdade colectiva, ou seja, a uma liberdade de consenso, que não leva em conta o que cada cidadão pensa, deseja ou sente, mas o que deve sentir, desejar e pensar em função do todo social. Estamos, deste modo, diante de uma autocracia ou, para ser mais explícito, de uma ditadura social. É importante reter que tudo isto se construía assim para acabar com a exploração do trabalho pelo capital.

 

Vejamos agora, os fundamentos do fascismo.

Se a instabilidade social provinha do conflito capital-trabalho e se se queria manter a propriedade dos bens de produção na posse do capital, havia que criar um elemento regulador do conflito. Esse elemento passou a ser o Estado, entidade soberana de natureza abstracta à volta da qual se dá forma ao poder político capaz de assegurar a ordem, a paz, a segurança e o bem-estar de uma sociedade humana radicada num território com fronteiras bem definidas.

Deste modo, o Estado, sendo o elemento regulador gerava processos de intervir nos domínios do trabalho e nos do capital ‒ através de sindicatos e de grémios ‒ evitando a passagem à fase de conflito aberto o conflito que sempre foi latente. Por outras palavras o Estado domesticava o trabalho e cerceava a ganância do capital (claro, este, acabava sempre mais beneficiado do que aquele). Para estabelecer este equilíbrio o Estado, em seu próprio nome, impunha respeito a si mesmo, através de medidas coactivas e coercivas exercidas sobre o trabalho, o mesmo é dizer sobre os trabalhadores e, supostamente, sobre o capital e os capitalistas. Tais medidas supunham ser necessárias para o bem-estar do Estado, isto é, da sociedade, que ele representava e organizava. Para as tornar efectivas tinha de se socorrer de meios policiais e de limitação das liberdades individuais, em particular todas as que o próprio Estado definia como atentatórias da sua soberania e do bem-estar social. Uma vez mais, a liberdade do cidadão era limitada, em nome da liberdade colectiva representada pelo Estado, gerando-se uma ditadura. Uma ditadura benévola, porque, acima da liberdade individual punha a liberdade colectiva delimitada pelo Estado.

 

Neste quadro, no final da guerra, estava lançado o mote para se impor a solução mais susceptível de ser aceite pela sociedade em desordem.

Em Portugal estava-se, tal como a Alemanha, em óptimas condições de aceitar uma ditadura e essa não seria de matriz socialista, mas com características fascistas. Isso aconteceu com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, o qual desembocou, através da acção ponderada e politicamente cautelosa de Salazar, no Estado Novo, em 1933, oito anos antes de eu nascer e seis anos antes de começar a guerra, que viria a ser mundial.

 

Estou exausto! Passei o dia agarrado ao computador a escrever, dissertando sobre coisas que ensinava nas minhas aulas.

Terão interesse aqui?

Confesso, não sei, mas, que mais não seja, ficam como repositório de memórias lectivas, de lições lançadas para alunos que, muitas das vezes, tinham a atenção dispersa e andavam longe, muito longe do que eu lhes queria contar.

E será que, até para eles, tinha interesse o que lhes dizia? O mundo galga loucamente em outras direcções e, uma guerra de há muitos anos, por impressionante que seja, foi uma guerra.

12.08.20

Fases da minha vida ‒ 54

(A emissora do Aero Clube da Beira)


Luís Alves de Fraga

 

Ao escrever as recordações que tenho da minha vida pública e profissional faço-o com a declarada intenção de deixar para o futuro ‒ a quem interesse, evidentemente ‒ referências de um tempo e de situações que, quase de certeza, vão cair no esquecimento da maioria daqueles que, agora, são presente e dos que virão depois deles. Haverá um momento em que o meu relato e o de tantos outros representará algo irrepetível e, até, incompreensível. O tema de hoje pertence já a esse passado quase sem equivalente no nosso presente.

 

Em 1973, em Portugal, embora com limitações de horário, já a televisão ocupava um lugar cimeiro no modo de matar serões e tardes de sábados e de domingos. Ir ao cinema e ao teatro começava a ser coisa a entrar em decadência. Via-se televisão, que passava séries, filmes, peças de teatro, documentários e programas educativos para adultos e crianças. A gente ria-se com o cavalo que fala, com a feiticeira e até sabíamos de cor alguns anúncios (Palmas para quê? É um artista português!).

Voltar para a cidade da Beira, em Moçambique, era, deste ponto de vista, recuar ao começo dos anos cinquenta, quando o cinema e o teatro ainda eram os reis da diversão das classes médias urbanas e a rádio fazia companhia a toda a gente nas casas onde havia excedentes financeiros para gastar neste produto cultural supérfluo.

Para se compreender o alcance e a veracidade do que vos conto, recordo que, exactamente no dia do meu embarque para Moçambique ‒ 1 de Abril (dia das mentiras) de 1973 ‒ a Emissora do Aero Clube da Beira, à tarde, colocou no ar um programa bombástico, avisando que, pela primeira vez, ia aterrar na pista do aeroporto um Boeing 747, da TAP, que estava com dificuldades; quem quisesse ver esse monstro voador devia ir rapidamente, de carro, para a aerogare, pois estavam a esgotar-se os lugares no varandim.

Foi uma loucura… os brancos de toda a cidade invadiram o parque de estacionamento automóvel e o edifício, escutando a emissora, à espera do momento em que o 747 se visse nos céus! Claro, ao fim de uma meia hora de espera, o locutor recordou que era o dia das mentiras… Ninguém levou a mal e toda a gente se riu, pois foi uma maneira diferente de passar a tarde desse domingo.

Creio que, com o relato deste episódio, se percebe, hoje, a força da rádio numa sociedade só dependente dos jornais, dos cinemas, dos boatos, do diz que se diz, das coscuvilhices sem outras formas de informação nem distracção.

 

Nunca tinha entrado num estúdio de rádio, num velho estúdio com auditório, com aquário, com técnicos encarregados de manter o sinal no ar, com locutores a trabalhar em directo, com discos de vinil e telefones para contactar com os ouvintes. Tudo era uma novidade para mim! E, posso garantir, tenho muitas saudades dessa rádio que se fazia, sem computadores, mas com mesa de mistura. É uma espécie de bicho que entra em nós e se instala sem pedir licença.

A primeira crónica que li para gravação, porque não estava em estúdio, falei para o microfone que se anichava dentro de uma caixa de cartão. Exactamente! Uma caixa de cartão para abafar o som e não fazer efeitos secundários.

Ao princípio gravava previamente as charlas, mas, ao cabo de poucas semanas, aprendi a ler em directo, usando a linguagem gestual para pedir pausas ‒ cortinas ‒ para respirar, tossicar ou mudar de página.

Depois, como o programa começava em horário nobre ‒ às vinte e uma horas ‒ o responsável, um jovem de vinte e poucos anos, dono de uma agência de publicidade, começou a emitir ao vivo, a partir de montras de lojas que patrocinavam, o que me levou a falar em directo e com espectadores. Foi uma experiência única, que muito me ajudou a vencer os poucos receios que tinha em expor-me perante audiências.

As semanas e os meses seguiam-se e cada vez mais aumentavam as minhas amizades no meio radiofónico da Beira. Por lá conheci o filho do poeta e tradutor de melhor versão portuguesa do If, de Rudyard Kipling, Félix Bermudes, um tipo pedante, que todos os dias lia, aos microfones, uma crónica de faits divers. Nada devia ao pai e pouco à irmã ‒ Cesina Bermudes, médica, activista dos direitos da mulher e defensora da liberdade democrática.

 

Na semana seguinte à famigerada terça-feira, 11 de Setembro de 1973 ‒ data do golpe de Estado levado a cabo pelo general Pinochet, no Chile, derrubando o Presidente da República, Salvador Allende ‒, como de habitual, li a minha crónica de política internacional.

Versava o que se havia passado naquele país da América do Sul. Chamava a atenção para a intervenção da CIA e do Governo dos EUA no golpe, evidenciando o papel de Washington na ocorrência. Numa palavra, despudoradamente, deixei clara a natureza do acontecimento e a certeza da grande repressão que se lhe seguiria tal como, de facto, sucedeu.

Um dia depois, através da direcção da emissora, fui avisado que as minhas crónicas tinham de passar a ser visadas, previamente, pela censura.

 

Assim fiquei até ao dia 25 de Abril de 1974. Tornara-me demasiado notado na pacífica cidade da Beira e, provavelmente, demasiado conhecido por quem colaborava, sem se saber, com a FRELIMO.

11.08.20

Fases da minha vida ‒ 53

(O massacre e a carta)


Luís Alves de Fraga

 

Ao cabo de muito pensar e relacionar acontecimentos passados, estou em crer que a Guerra Colonial ‒ o período entre 1961 e 1974 ‒ não foi mais do que o último estertor das guerras de pacificação colonial resultantes da Conferência de Berlim, quando se impôs o princípio da ocupação efectiva para garantir o direito à presença na costa africana ‒ que foi sempre, desde o século XV, o desejo de Portugal ‒ dos colonos/comerciantes portugueses.

De facto, os desentendimentos generalizados com os povos africanos, só começaram depois de a França, a Inglaterra, a Alemanha e a Bélgica se interessarem pela ocupação de África. Antes, a convivência era pacífica, porque o relacionamento não passava por uma ligação de domínio, mas por uma convivência comercial na qual se procurava encontrar equilíbrios para ambas as partes.

Está claro que, na actualidade, ao ler-se o que acabo de escrever, haverá, de imediato, quem venha levantar a questão do tráfico de escravos feito pelos negreiros portugueses. A questão é complexa e não tem cabimento aqui, para além de bastar recordar dois aspectos: não foram os comerciantes portugueses quem deu início ao comércio esclavagista na África Negra ‒ está provado que foram os árabes/islâmicos, muito antes de as naus e caravelas chegarem à costa ocidental do continente africano, quem introduziu esse comércio hediondo ‒ e os mais desejados produtos mercantis foram o ouro, o marfim, a malagueta, que os potentados africanos, nas zonas de instalação dos portugueses, trocavam por artigos de que careciam.

 

Foi a Revolução Industrial, na Europa, a determinante da intromissão dos poderes europeus na vida e na política dos africanos, nas respectivas áreas de influência. Interferiu com a propriedade da terra, com a produção agrícola local e com as formas tradicionais de pagamento do trabalho. Ao fazer isto, os europeus desarticularam poderes políticos e tradições ancestrais. Nisto é que está a origem dos massacres e das revoltas indígenas, em África. Isto é que determinou, para todos os Estados coloniais, as suas guerras de pacificação. Aqui se encontram as raízes das primeiras campanhas de pacificação do século XIX que, para Portugal, acabaram em 1974, tendo passado pelos massacres que, vulgarmente, consideramos espoletas da Guerra Colonial.

 

No dia 16 de Dezembro de 1972, houve, em Moçambique, na região de Tete, na povoação de Wiriyamu e noutras suas vizinhas, um massacre de populações indefesas, levado a cabo pela 6.ª companhia de comandos moçambicanos. Foi denunciado, na imprensa britânica, e condenado pela ONU. O Governo português negou peremptoriamente o facto. Quando cheguei à cidade da Beira, em Abril de 1973, o assunto ainda estava bem vivo.

 

Ao cabo de um ou dois meses de instalado na Beira, ou talvez mais, tive oportunidade de conversar com um capitão médico da Força Aérea que havia estado em Tete, no hospital civil, quando uma freira foi avisar o director daquele estabelecimento de que vinham a caminho da cidade muitos negros feridos com tiros de arma de fogo. Soube-se, logo de seguida, que muitos outros haviam falecido no caminho.

De imediato foi apurada a razão da ocorrência. Tinha sido a tal unidade do Exército que, por pressão da PIDE/DGS, havia entrado a matar toda a população das povoações. Quem fugiu ou ficou ferido foi recolher-se a Tete, na esperança de ser tratado com alguma humanidade.

Foi isto que o médico me contou, mas com muitos mais pormenores que o tempo já apagou da minha memória. De importante, ficou uma coisa: houve massacre, houve centenas de mortes, mataram-se mulheres e crianças sem qualquer tipo de critério!

 

Porque, em Portugal, falara muito com o meu pai sobre este assunto ‒ Marcelo Caetano, numa Conversa em Família, afirmara que não existia nenhuma aldeia com o nome de Wiliyamu, que, realmente não havia, porque os povos daquela zona de Moçambique trocam os r por l… Infeliz forma de querer tapar a verdade! ‒ tinha, uma vez a viver na cidade da Beira, a possibilidade de lhe relatar a verdade que me havia sido contada.

Se bem o pensei, melhor o fiz.

Manuscrevi uma muito longa carta, em papel de avião (mais fino e mais leve do que o comum), relatando, tintim por tintim, tudo o que me havia sido narrado, com os tais pormenores já esquecidos.

Tão grande ficou a carta que não cabia num só envelope e, por isso, sem qualquer indicação prévia, dividi-a por dois sobrescritos, que selei e meti na caixa do correio do aeroporto da Beira. Nenhum deles chegou, jamais, ao seu destino!

 

Estranhei, pois, se, ao menos, se tivesse extraviado um só envelope, era compreensível, mas logo os dois…

 

Tentei averiguar se o meu pai notava nos sobrescritos sinais de terem sido violados. Para isso, usei de um modo seguro de o alertar.

Porque o meu pai ainda estava ao serviço, na Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas (ATFA), meti num envelope civil, dirigido a ele, uma carta curta, onde lhe dava conta das minhas suspeitas, e voltei a metê-la em um sobrescrito oficial, do BCP-31, enviado para o 1.º sargento enfermeiro Manuel Luís de Fraga Júnior; este envelope meti-o num outro endereçado à ATFA. Fiz seguir pelo correio militar. Fiquei à espera que me desse resposta pela mesma via. E deu. Confirmava as minhas suspeitas: os sobrescritos do correio civil eram violados grosseiramente. Estava sob suspeição da PIDE/DGS da delegação da Beira, cujos arquivos ficaram por lá!

 

Muitos anos depois, já em plena democracia, quis consultar o meu processo naquela polícia sinistra, arquivado na Torre do Tombo, e, para espanto meu, por cá, eu estava limpo. Só figura uma inocente declaração ‒ obrigatória para todos os servidores do Estado, durante o fascismo ‒ de que «não faço nem farei parte de nenhuma associação que atente contra a segurança do Estado».

Nunca careci de me associar para fazer uso do meu direito inalienável de discordar de quem me governa.

07.08.20

Fases da minha vida ‒ 52

(No BCP-31)


Luís Alves de Fraga

 

Com o embarque para Moçambique, deixei de lado os estudos, na universidade, quando me faltavam cinco ou seis cadeiras para concluir a licenciatura. Foi uma interrupção já esperada, mas serviu para consolidar conhecimentos, ampliando-os, através de leituras que fiz, em especial, durante primeiro ano da comissão ‒ de Abril de 1973 a Abril de 1974 ‒, pois, daí para a frente, passei a viver acontecimentos irrepetíveis.

 

Poucos dias após a minha chegada à Beira, fruto do muito que havia meditado sobre a situação da guerra, escrevi uma carta ao director do Expresso, com vista à publicação naquele periódico, no todo ou em parte, na qual, dentro dos limites possíveis estabelecidos pela comissão de censura, defendia que, mais tarde ou mais cedo, se teria de dar a independência às colónias, tal como tinha sido feito pelos réis de Portugal quando acharam oportuna a retirada das praças do Norte de África. Era a lógica de um princípio natural, vindo do fundo dos tempos: os povos têm direito à sua independência, tal como os filhos têm direito a formar as suas próprias famílias e as suas casas.

Ficava claro que não concordava com a política do Governo levada a limites que pareciam não ter fim; deixava em aberto a melhor oportunidade para se negociar.

Não foi, nem pretendia ser, uma carta de aplauso a Marcelo Caetano e à política herdada de Salazar; era uma crítica mal-escondida a toda a condução de um negócio muito sério, que envolveu homens inteligentes à procura da defesa do indefensável. E nisto estou a recordar nomes como o próprio Marcelo Caetano, Silva Cunha (um conceituado professor de Direito Internacional, que, por teimosia, acabou desacreditado) e Franco Nogueira (um embaixador de elevada craveira intelectual, conhecido pela sua habilidade negocial).

Essa carta para Pinto Balsemão foi interceptada pela PIDE/DGS, fotocopiada e remetida, bem como o cartão de visita que a acompanhava, para Lisboa, figurando no processo daquele jornalista, existente no Arquivo da Torre do Tombo.

 

Uma unidade de pára-quedistas integrava, naquele tempo, na Força Aérea, uma tropa de elite. Deve ter-se em conta que, em 1973, este ramo das Forças Armadas tinha, vinte e um anos de existência e os pára-quedistas, primeiras tropas especiais portuguesas, ainda antes dos rangers, datavam de 1956. Estas tropas desenvolviam uma mística muito própria que, para quem não era pára-quedista, constituía um desafio de integração. Contudo, convivi sempre muito bem com tais questões, pois, desde muito jovem, aprendi a desenvolver, manter e criar místicas diferentes ‒ nos Pupilos e na Academia Militar. Ao ser nomeado para o BCP-31, percebi que a única forma de ser aceite pelos meus camaradas páras passava por integrar e praticar certos valores dionisíacos ‒ na perspectiva antropológica de Ruth Benedict ‒, dando mais valor ao exterior físico do que à razão pura.

Foi possível adoptar racionalmente esta postura comportamental graças ao facto de já ter concluído os estudos de antropologia cultural e haver compreendido que os elementos estabelecedores de diferenças entre seres humanos são de natureza sociológica, ditados pelo meio e pelas práticas.

 

Era comandante do BCP-31, no momento da minha apresentação, o tenente-coronel Bragança Moutinho, verdadeiro exemplar de um guerreiro nascido da caneta de Jean Lartéguy! Foi muito pouco o tempo que ficou no comando, pois estava em fim de comissão. Seguia-se-lhe, na hierarquia, o major Catroga Inês, figura diametralmente oposta, em termos físicos, ao comandante; mais para o baixo do que para o alto, musculoso, trigueiro, possante ‒ começava no célebre aperto-de-mão, capaz de partir os ossos do cumprimentado, e acabava nas palmadas nas costas, fazendo-nos, praticamente, dar meia volta ou torcer o tronco ‒ que, como militar, quase encarnava os regulamentos que pautavam a vida castrense. Depois, para além do oficial de operações, havia os capitães comandantes das duas companhias operacionais, meus contemporâneos da Academia Militar, que me conheciam bastante bem.

 

Com uma certa conivência do comandante do batalhão, a passagem do cargo de chefe de contabilidade, do capitão J ‒ aquele que se havia adiantado na marcha para Moçambique ‒ para mim, foi a mais demorada que alguém possa imaginar… talvez mais de dois meses! E não porque fosse difícil ou houvesse problemas administrativos que a justificassem, mas, tão-somente uma situação de camaradagem a que acedi com tranquilidade, independentemente do que se pudesse pensar da minha competência técnica.

Na verdade, a esposa do capitão J estava grávida em fim de tempo e, entre fazer o parto na cidade da Beira e ir fazê-lo na cidade de Tete, era preferível escolher a primeira, todavia, se o marido seguisse para a unidade que lhe competia, ela deixaria de ter direito ao aluguer de casa do Estado, ficando ao desamparo com mais uma filhita. Se eu retardasse a passagem do cargo daria tempo a que chegasse a hora da cegonha e, depois, era uma questão de mais semana ou menos semana. Foi o que fiz.

 

Entretanto, porque já tinha estado na Beira e havia deixado amizades por lá, fui convidado para colaborar num programa de rádio com grande audição, transmitido pela emissora do Aero Clube. Optei por uma crónica sobre política internacional a ir para o ar, todas as semanas, pelas vinte e uma horas de quarta-feira. O projecto foi aceite e fiquei a saber que a emissora estava dispensada de remeter materiais à comissão de censura pela segurança que lhe dava a figura central do Clube: Jorge Jardim.

Senti-me mais livre para tratar do que quisesse, embora consciente de que, se pusesse o pé em sítio errado estaria sujeito a sanções severas, pois não tinha autorização militar para exercer aquela actividade. Escolhi um pseudónimo para assinar as crónicas, mas dei a minha própria voz à leitura dos textos.

Para me desempenhar do encargo que aceitei, tinha dois trabalhos fixos: procurar informação internacional fidedigna para terem fundamento os meus comentários e, depois, escrever um texto, normalmente, ao domingo de manhã, que, a ler com cadência pausada, durasse cerca de cinco minutos e não muito mais.

Verdade seja, a actividade militar e a função de chefia da contabilidade do batalhão davam-me tempo de sobra para poder deitar a mão a diversos trabalhos de que gostava, como adiante se verá. Acresce que o facto de ter passado a estudar e a dar aulas, nos anos anteriores, me permitiu aprender a gerir o tempo de modo a chegar para tudo. A vida é feita de hábitos, disciplina e rotinas.

02.08.20

Fases da minha vida ‒ 51

(Novamente para Moçambique)


Luís Alves de Fraga

 

O conhecimento oficial das nomeações para comissão de serviço nas colónias através da Ordem à Aeronáutica e ficava-se a saber duas coisas: a data limite de embarque e o território para onde se marchava.

A colocação nas unidades era feita localmente, de acordo com as necessidades e a gestão do pessoal em fim de comissão. Contudo, havia uma excepção: o das unidades de tropas pára-quedistas, pois, para essas, saía na mesma Ordem à Aeronáutica o nome do oficial e o batalhão de destino. Julgo que este procedimento se devia à relativa autonomia daquelas tropas dentro da Força Aérea.

Ora, no começo do ano de 1973, fui nominalmente mobilizado para o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31, sediado na cidade da Beira. Era para lá que devia ir.

Havia, no entanto, uma outra substituição a fazer em Moçambique ‒ sabia-se quem, da minha especialidade, estava em fim de comissão ‒ e essa era para uma unidade pouco agradável: o Aeródromo-Base n.º 7, em Tete.

 

Conhecedor da situação, o camarada a quem, logicamente, caberia a marcha para Tete, porque colocado num conselho administrativo muito menos trabalhoso do que o do comando da 1.ª Região Aérea, tratou de se despachar o mais rápido possível para, chegado a Moçambique, conseguir a colocação na Beira (BCP-31), cujo oficial tinha mais tempo de comissão, empurrando-me para Tete, em flagrante desacordo com o que estava determinado. E foi o que aconteceu, enquanto eu me esforçava por encerrar o ano económico de 1972, no conselho administrativo do comando da 1.ª Região Aérea.

Era um golpe baixo, porque, se tivesse sido ao contrário, eu iria para Tete sem ter dúvida nisso. Assim, ainda em Lisboa, tentei garantir os direitos que, por mera sorte, me cabiam.

Numa das frequentes vindas do general comandante da 3.ª Região Aérea (Moçambique) a Lisboa pedi-lhe audiência, na Direcção do Serviço de Instrução, e expus-lhe o acontecido e as limitações que tinha para acelerar a minha ida para a cidade da Beira. O general Diogo Neto ‒ era ele o comandante ‒ compreendeu e garantiu-me que o lugar seria para mim; necessário era despachar-me.

Liberto de todos os entraves, no conselho administrativo do comando da 1.ª Região Aérea, embarquei, como já disse, no fim da tarde de 1 de Abril de 1973, num dos dois Boeings 707 da Força Aérea.

 

Por impossibilidade física, a minha mãe não foi ao aeroporto, mas, entre outras pessoas de família, estava o meu pai. A despedida ‒ para mim, as despedidas são sempre dolorosas ‒ foi lavada em lágrimas, que não contive, contra a suprema força do meu progenitor, incapaz de deixar ver os olhos húmidos, sequer. Mas, tal como aquando da minha primeira comissão, no dia seguinte, caiu à cama doente e por lá ficou oito ou dez dias. Ele guardava as emoções eu sempre as expulsei no momento certo e devido.

A viagem, feita de noite e seguindo uma rota sempre sobre o mar (não tínhamos relações diplomáticas com a maioria dos Estados africanos, que não autorizavam aeronaves portuguesas a cruzar os seus céus), estava previsto ser interrompida em Luanda, pelas cinco ou seis da manhã. Fomos avisados da aterragem cerca de vinte minutos antes de ocorrer, mas, coisa estranha, os vinte minutos tornaram-se em quase quarenta e cinco.

Interroguei um dos assistentes de cabine, que me informou estar o aeroporto de Luanda fechado por causa das grandes chuvadas que caíam e, por isso, íamos fazer rota para Nova Lisboa onde aterraríamos dentro de muito pouco tempo. E o tempo passou e nada de tomarmos a altitude de aproximação à pista. Nova interrogação e, desta vez, um sobressalto: também a pista de Nova Lisboa estava encerrada ao tráfego por causa da chuva; íamos para Henrique de Carvalho, no Leste de Angola.

 

Estávamos a navegar à vista. O comandante de bordo ‒ por acaso, a primeira vez que ocupava aquela posição ‒ havia meses, deixara a Base de Henrique de Carvalho (AB-4) e conhecia bem as rotas angolanas. Na pista nunca aterrara uma aeronave daquela envergadura e o comprimento estava nos limites mínimos exigidos para o Boeing 707. A aterragem foi épica: a travagem levou-nos todos para a frente, presos pelas cinturas.

Descer do avião foi demorado, porque tínhamos de usar um alto escadote que foi montado na caixa aberta de uma camioneta. Lá fomos distribuídos pelas messes e salas respectivas em concordância com a categoria. À pressa e improvisadamente foi-nos servido um pequeno-almoço. Ficámos a fazer horas para nos servirem o almoço. As muitas crianças choravam, dormiam pelo chão, assim como os estafados progenitores. Depois do almoço, à vez, fizemos, num autocarro da unidade, uma visita guiada à cidade. Confesso, dormi durante todo o passeio; estava estoirado. Entretanto, na pista, o Boeing era abastecido por um minúsculo autotanque munido de uma bomba manual accionada por vários soldados, que se revezavam. Só iniciámos a aventura de uma descolagem em pista curta lá pelas cinco e tal da tarde. Fomos rumo a Luanda onde aterrámos, jantámos e embarcámos, talvez, por volta da meia-noite, rumo à Beira.

 

Foi única esta viagem! Chegámos ao nosso destino com quase um dia de atraso.

Estava, de novo, em Moçambique e na cidade da Beira. Tinha a clara convicção de estar a viver aquilo que já havia baptizado como comissão liquidatária.

02.08.20

Páginas do Meu Diário - 1


Luís Alves de Fraga

 

11 de Fevereiro de 2019

Há exactamente um século o Diário de Notícias, de Lisboa, noticiava que, em S. Pedro do Sul, as tropas republicanas estabeleciam contacto com as monárquicas com vista a derrotar a, então, denominada Monarquia do Norte.

Não é preciso ser historiador para ficar a pensar no que se passou em Portugal nestes últimos cem anos. Às vezes, sinto-me esmagado pelo peso dos acontecimentos! Aconteceu tanta coisa e a memória da gente limpa, lava, pule, alisa tudo com uma imensa facilidade. É como se cada geração que nasce tivesse de aprender tudo de novo. E, na verdade, tudo poderia ser tão diferente se fossemos nascendo com a memória do passado. Quantos erros se evitariam! Quantas quase repetições se escusavam!

Mas não vale a pena falar de repetições em História, porque, malgrado o que dizem certos politólogos, a História não se repete; parece que se repete, mas nada é realmente igual ao passado. Pode ter laivos de semelhança, mas nunca se trata de uma igualdade.

Tudo isto me leva a ponderar que, dentro de pouco mais de um mês ocorre o meu aniversário natalício. Dá para pensar e reviver o passado.

Vi a luz do dia na rua Angelina Vidal, no número 36, no segundo andar do lado direito, na, então, freguesia da Graça, em Lisboa. Era, de acordo com o calendário católico, o dia dedicado a S. José. E, creio, passavam cinco minutos das sete da manhã quando fui considerado criatura viva. O mundo estava em guerra. O ano foi o de 1941.

Segundo rezam as memórias dos que lá estavam, no quarto dos meus pais, nasci de rabo ‒ parto que, para além de ser muito mais difícil, deu oportunidade à muito antiga expressão portuguesa nascer de cu virado para a Lua ‒ e foi graças à habilidade da parteira estrábica ‒ a D. Luísa ‒, que a minha mãe não sofreu muito mais dores.

Nasci no mesmo dia em que foi executado Jacques de Molay, Grão-Mestre da Ordem dos Templários, em França, no século XIV, e na mesma data, mas do ano de 1933, em que foi plebiscitada a Constituição Política do Estado Corporativo português. Na véspera, as tropas britânicas haviam reconquistado a Somália inglesa, ocupada pelos Italianos.

 

12 de Fevereiro de 2019 (manhã)

Acordei cedo. Depois de tomar o pequeno-almoço, venho para o meu canto, no escritório, e, no computador, leio as novidades. É um hábito. Podia fumar um cigarro, contudo, abandonei esse vício no mês de Outubro de 1990. Se lá chegar, ainda poderei festejar a trintena de abstenção. Não limpei os pulmões. Nos últimos tempos fumava muito, talvez dois maços de cigarros por dia. E cá está, passados vários anos de ausência tabágica, um enfizema pulmonar a lembrar-me os erros da juventude e idade adulta!

E porquê fumar? Coisa de um namoro, uma paixão louca, que me devastou em vários aspectos, no fim dos meus dezassete anos e, para me fazer mais homem, vá de pendurar-me no cigarro! Ela, a namorada, foi-se, mas ele, o cigarro, ficou por muito tempo.

Voltando às novidades do Jornal de Notícias, fiquei impressionado com uma chamada de atenção, na primeira página, para um apontamento que vem lá dentro, mais para diante, que diz que o Estado reclama, em tribunal, lucros de prostituição em bar de alterne.

Estamos num tempo incontável! O Estado quer lucros sobre o trabalho das putas! O Estado, sem apelo nem agravo, virou chulo ou, dito de forma mais fina, proxeneta! Em boa verdade, julgo que o Estado foi sempre, nas suas mais diferentes formas e nos tempos mais distantes, um chulo dos cidadãos. Chulo, porque, em troca de algumas coisas que promete e nem sempre cumpre, nos suga o dinheiro ganho com esforço.

E é por causa do Estado que os cidadãos se vêem envolvidos em coisas estranhas, terríveis, muitas das vezes. E cá me salta a memória para tempos recuados, muito, mas mesmo muito, lá para trás, para quando nasci. E cá vou entrar por um longo solilóquio sobre o Estado noutros tempos.

Pág. 1/2