Fases da minha vida ‒ 40
(A universidade ou a segunda fase)
Ao regressar de Moçambique trazia já a convicção de que a guerra estava perdida, embora não soubesse quando e como. Bastaram-me dois anos, o que vi e tomei conhecimento, para ficar com aquela certeza. Todavia, não podia anunciar aos quatro ventos aquilo em que acreditava, até porque, por cá, tal como acontece em todas as retaguardas, havia muita gente mais velha que, livre dos incómodos da guerra, lhe fazia a apologia. Não eram só os salazaristas; eram também os que, do antecedente republicano, acreditavam não haver futuro para Portugal sem colónias.
Perdido nestas conjecturas, por volta do mês de Março, assaltou-me o desejo de fazer a matrícula na universidade.
Qual era a minha motivação para tal passo?
Pois bem, acho que devo ser honesto, começando por sê-lo comigo e, por arrasto, com os meus leitores.
Foram três os objectivos presentes no meu espírito: a curiosidade intelectual, o estatuto social e a vaga hipótese de dar outro rumo à minha vida. Vejamos, por ordem.
Numa análise fria do que tinha sido para mim a vida de estudante, naquela altura, percebi o quanto, afinal, era bom aprender. Essa sensação havia-a tido em África, quando encontrei o prazer da leitura de tudo. Estudar, sem a obrigação de cumprir calendário para ganhar pão, começou a delinear-se como algo agradável.
Do ponto de vista social o Portugal dos anos sessenta do século XX era muitíssimo diferente da actualidade. Os mais novos nem imaginam! A sociedade estratificava-se de uma outra maneira. Hoje, em noventa e tal por cento das vezes, quando alguém se me dirige, usando o meu nome, sou o sr. Luís; naqueles tempos, sr. Luís era o empregado do balcão, o merceeiro, o alfaiate, porque, o comum era tratar-se pelo sobrenome: sr. Fraga, sr. Sousa, sr. Ferreira, etc. Ainda havia uma elite titular que juntava ao nome o grau académico, dos quais, dois eram os mais vulgares: dr. e eng. Não vou esconder que uma das motivações para voltar a estudar esteve associada à vontade de ser dr. Foi fundamental? Não. Foi meramente circunstancial. Era o fruto de uma época.
Em terceiro lugar, e por esta ordem de importância, estava presente, no campo das hipóteses, a minha desistência da carreira militar para me dedicar a uma outra, a da docência. Contudo, em 1969, esta última razão ainda só muito vagamente me assaltava. Cresceu nos anos imediatamente seguintes, como terei oportunidade de contar.
A primeira sondagem que fiz para continuidade de estudos foi junto da Faculdade de Letras da, então ainda única, Universidade de Lisboa. Foi-me dito que só com formação especifica em humanidades ‒ Letras ‒ poderia ingressar (mais tarde, pouco mais tarde, vim a saber que haviam passado a aceitar a entrada por reconhecimento do curso da Academia Militar como habilitação universitária). Tentei a Faculdade de Direito e aí foram ainda mais peremptórios na negação.
Na DSIC, soube, por intermédio de um camarada, que no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), integrado na Universidade Técnica de Lisboa, na licenciatura em Ciências Sociais e Política reconheciam o curso da Academia Militar como habilitação superior e nos poderíamos inscrever de imediato sem mais exigências.
Fui até ao palácio Burnay, na Junqueira, e a chefe da secretaria, a D. Irene, senhora de estatura pequenina, mexida, autoritária, despachada ‒ parecia a dona daquilo tudo ‒ deu-me as informações necessárias quanto ao que deveria entregar para efectuar a matrícula.
Em Outubro, no final do mês, conclui o ingresso na universidade. Ia voltar a estudar, agora já não como acto obrigatório, mas como um prazer de natureza intelectual. Nesse mês terminava a primeira fase da minha vida. Começava a segunda, a mais importante e mais rica. Depois de estar cumprida a minha vocação de infância, a de ser militar, passava a construir a outra, ainda não totalmente definida, mas já existente: a de professor.