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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

15.07.20

Fases da minha vida ‒ 40

(A universidade ou a segunda fase)


Luís Alves de Fraga

 

Ao regressar de Moçambique trazia já a convicção de que a guerra estava perdida, embora não soubesse quando e como. Bastaram-me dois anos, o que vi e tomei conhecimento, para ficar com aquela certeza. Todavia, não podia anunciar aos quatro ventos aquilo em que acreditava, até porque, por cá, tal como acontece em todas as retaguardas, havia muita gente mais velha que, livre dos incómodos da guerra, lhe fazia a apologia. Não eram só os salazaristas; eram também os que, do antecedente republicano, acreditavam não haver futuro para Portugal sem colónias.

Perdido nestas conjecturas, por volta do mês de Março, assaltou-me o desejo de fazer a matrícula na universidade.

 

Qual era a minha motivação para tal passo?

Pois bem, acho que devo ser honesto, começando por sê-lo comigo e, por arrasto, com os meus leitores.

Foram três os objectivos presentes no meu espírito: a curiosidade intelectual, o estatuto social e a vaga hipótese de dar outro rumo à minha vida. Vejamos, por ordem.

 

Numa análise fria do que tinha sido para mim a vida de estudante, naquela altura, percebi o quanto, afinal, era bom aprender. Essa sensação havia-a tido em África, quando encontrei o prazer da leitura de tudo. Estudar, sem a obrigação de cumprir calendário para ganhar pão, começou a delinear-se como algo agradável.

Do ponto de vista social o Portugal dos anos sessenta do século XX era muitíssimo diferente da actualidade. Os mais novos nem imaginam! A sociedade estratificava-se de uma outra maneira. Hoje, em noventa e tal por cento das vezes, quando alguém se me dirige, usando o meu nome, sou o sr. Luís; naqueles tempos, sr. Luís era o empregado do balcão, o merceeiro, o alfaiate, porque, o comum era tratar-se pelo sobrenome: sr. Fraga, sr. Sousa, sr. Ferreira, etc. Ainda havia uma elite titular que juntava ao nome o grau académico, dos quais, dois eram os mais vulgares: dr. e eng. Não vou esconder que uma das motivações para voltar a estudar esteve associada à vontade de ser dr. Foi fundamental? Não. Foi meramente circunstancial. Era o fruto de uma época.

Em terceiro lugar, e por esta ordem de importância, estava presente, no campo das hipóteses, a minha desistência da carreira militar para me dedicar a uma outra, a da docência. Contudo, em 1969, esta última razão ainda só muito vagamente me assaltava. Cresceu nos anos imediatamente seguintes, como terei oportunidade de contar.

 

A primeira sondagem que fiz para continuidade de estudos foi junto da Faculdade de Letras da, então ainda única, Universidade de Lisboa. Foi-me dito que só com formação especifica em humanidades ‒ Letras ‒ poderia ingressar (mais tarde, pouco mais tarde, vim a saber que haviam passado a aceitar a entrada por reconhecimento do curso da Academia Militar como habilitação universitária). Tentei a Faculdade de Direito e aí foram ainda mais peremptórios na negação.

Na DSIC, soube, por intermédio de um camarada, que no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), integrado na Universidade Técnica de Lisboa, na licenciatura em Ciências Sociais e Política reconheciam o curso da Academia Militar como habilitação superior e nos poderíamos inscrever de imediato sem mais exigências.

 

Fui até ao palácio Burnay, na Junqueira, e a chefe da secretaria, a D. Irene, senhora de estatura pequenina, mexida, autoritária, despachada ‒ parecia a dona daquilo tudo ‒ deu-me as informações necessárias quanto ao que deveria entregar para efectuar a matrícula.

 

Em Outubro, no final do mês, conclui o ingresso na universidade. Ia voltar a estudar, agora já não como acto obrigatório, mas como um prazer de natureza intelectual. Nesse mês terminava a primeira fase da minha vida. Começava a segunda, a mais importante e mais rica. Depois de estar cumprida a minha vocação de infância, a de ser militar, passava a construir a outra, ainda não totalmente definida, mas já existente: a de professor.

13.07.20

Fases da minha vida ‒ 39

(Lisboa: A nova colocação)


Luís Alves de Fraga

 

Poucos meses antes de partir para Moçambique, em 1966, aluguei uma casa, no bairro da Graça, em Lisboa, mesmo em frente do liceu Gil Vicente. Fiquei a pagar a renda durante a comissão, facto que me trouxe, de imediato, a vantagem de meter a chave à porta e estar pronto a retomar, sem sobressaltos, a vida normal. Foi o que aconteceu após ter desembarcado no aeroporto da Portela de Sacavém.

No dia seguinte apresentei-me na Direcção do Serviço de Intendência e Contabilidade, onde havia sido colocado, ficando a chefiar a secção de processamento e pagamento de subvenção de família para todos os praças da Força Aérea colocados nas colónias. Dependia organicamente do presidente do conselho administrativo da Direcção, com quem despachava a correspondência e os processos.

 

Da secção faziam parte oito jovens civis ‒ filhos de boas famílias ou filhos de gente bem relacionada ao nível das mais altas esferas da Força Aérea ‒ quatro cabos amanuenses e duas funcionárias já antigas, com a função de dactilógrafas.

Os jovens civis tinham a categoria de operários das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, muito embora jamais tivessem pegado num alicate, lima ou, sequer, um parafuso; esta função era uma máscara para os livrar de serem mobilizados para a guerra em África, pois os operários das indústrias fabris militares limitavam-se a fazer a recruta e a regressar aos seus estabelecimentos. Para mim, seria preciso saber lidar com tais operários, colocando-os, através de uma legítima chantagem, perante a noção de um dever de bem cumprir para saldarem uma dívida jamais liquidável. Aos cabos amanuenses bastava acenar-lhes com a, mais do que improvável, marcha para as colónias para deles arrancar o melhor do seu esforço.

Esta avaliação já as tinha feito ao cabo de duas semanas de trabalho como chefe, porque o serviço da secção a tal se prestava, pois exigia esforço, entusiasmo, rigor e, mais do que tudo, pontualidade. Isto, porque mensalmente, em dia exacto, tinham de estar prontas várias centenas de ofícios (cartas) acompanhados de vales de correio com um magro subsídio para um beneficiário do praça que, estando em África, era amparo de família. Em nome de um dever humanitário, não podia haver lugar a desleixos, nem atrasos, nem sobressaltos daqueles que esperavam a consolação de um punhado de escudos em troca da falta do filho ou do marido.

 

A colocação na Direcção do Serviço representou a possibilidade me entregar a uma ocupação complementar, pois, tanto o Estado-Maior como as Direcções de Serviços, tinham um horário diferente do das unidades. Com efeito, começava-se a trabalhar às treze horas e acabava-se às dezanove.

Poucos foram os militares, em especial oficiais e sargentos, capazes de perceber a razão de ser de tal horário, mas a coisa era muito simples. Vejamos.

A quantidade de graduados colocados no Estado-Maior (avenida da Liberdade) e nas Direcções de Serviço (espalhadas por vários edifícios em Lisboa, alguns bastante distantes dos outros) era muito grande, tal como grande era a quantidade de funcionários civis. A Força Aérea não tinha nenhuma infra-estrutura capaz de fornecer almoço, ao mesmo tempo, para todos; em Monsanto a messe existente era destinada a oficiais generais e, de preferência, muito poucos. Estabelecer um horário de trabalho que excluísse a obrigação de fornecer refeições por conta do Estado, foi a solução mais equilibrada. E funcionou-se assim até dois ou três anos depois de 25 de Abril de 1974. A confusão de transportes, que se estabeleceu, bem como o aumento de despesa, quando as bases aéreas impuseram horário igual para trabalho igual, foi enorme! Custos da democracia…

 

Por causa deste horário, que mais parecia um part-time do que um trabalho exclusivo, tive, como disse, vantagens pessoais e um pequeno problema, que a seu tempo relatarei.

12.07.20

Fases da minha vida ‒ 38

(A despedida da Beira)


Luís Alves de Fraga

 

Faltavam três semanas para terminar a comissão em Moçambique e já estava nomeado o meu substituto, um capitão da minha especialidade, oriundo de miliciano e, também, antigo aluno dos Pupilos do Exército. O receio de perder o lugar ou haver outra escolha levou-o a apressar a chegada à Beira. Eu não podia nem queria entregar a gerência e ficar como hóspede à espera do dia exacto do fim da comissão; por outro lado, regressar a Lourenço Marques sem condições de alojamento semelhantes às que tinha na Beira, era um disparate, que, acima de tudo, seria violento para a minha mulher e para a nossa filha com quase um ano de idade. Corria o mês de Dezembro e o calor estava no auge.

Esclareci de tudo isto o director-delegado e o meu substituto, que nada se incomodou, pois, não tendo ocupação, gozou de umas excelentes férias na Beira e começou a preparar os seus esquemas de gestão, que, dois anos mais tarde, vim a saber, não foram nem muito claros nem muito ortodoxos… por isso, e não só, veio a ser penalizado, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, com uma passagem à reserva, por saneamento compulsivo.

Só entreguei a gerência das messes quando tive conhecimento da data de embarque, em Lourenço Marques, rumo a Lisboa, em avião dos Transportes Aéreos Militares. Isso aconteceu já a meio do mês de Janeiro de 1969.

 

Dias antes de sair da Beira, ocorreu o casamento ‒ bastante contestado nos meios católicos da cidade ‒ da filha mais velha do engenheiro Jorge Jardim. O general Machado de Barros e a esposa haviam sido convidados para o evento e foi no Dakota que o levava de regresso a Lourenço Marque, que, também eu e família, deixámos a cidade. Já passava das quinze horas quando embarcámos.

Foi-se despedir de nós à aerogare militar o antigo aluno dos Pupilos e grande amigo, o Fernando Alves acompanhado da esposa, a senhora D. Aracy.

Na aeronave, para além do comandante da 3.ª Região Aérea e respectiva mulher, seguiam, como passageiros, um casal amigo do general, também idos ao casamento, eu, a minha mulher e a minha filha, a mulher do copiloto ‒ por acaso, do meu curso da Academia Militar ‒ e a filha bebé, o capelão dos pára-quedistas e o condutor do general.

Do lado de bombordo ia carga convenientemente estivada e do lado de estibordo iam os passageiros, sentados ao longo da fuselagem. Da frente para trás tomavam assento o general, a mulher, o casal amigo deles, a mulher do copiloto, a minha mulher, eu, o condutor do general e, por fim, o capelão.

 

Devo esclarecer que, nesse tempo, não havia ajudas-rádio à navegação aérea, em Moçambique, o Dakota não estava equipado com radar, fazendo-se a navegação por métodos artesanais de bússola e conhecimento visual da rota. Da equipagem constavam o piloto-comandante ‒ um experiente capitão oriundo de sargento ‒, o copiloto, o mecânico de bordo e o radiotelegrafista. Normalmente, a viagem demorava cerca de duas horas e meia.

Ao cabo, talvez, de dez minutos de voo, notei que estávamos a entrar numa zona de cúmulo-nimbos com turbulência já significativa. Olhei pelas janelas e vi que parecia estarmos rodeados de altas montanhas brancas anunciadoras de mau tempo. O comandante de bordo, julgo, terá manobrado com suavidade procurando um corredor por onde pudesse passar, contudo, percebi que caminhávamos mais e mais para o centro das nuvens. Os saltos tornaram-se infernais. A mulher do copiloto vomitava para um saco de plástico, depois de ter passado a filha para os braços da minha mulher. Agarrei eu na minha filha e pu-la colada a mim, como fazem as macacas. Os cintos de segurança prendiam-nos pela cintura, mas, mesmo assim, os esticões eram muito significativos. A D. Marina Machado de Barros, com o olhar perdido, segredava qualquer coisa ao marido, que abanava negativamente a cabeça. O casal amigo deles tinha-se mudado para a parte traseira do avião e, por isso, eu tinha uma visão directa com a esposa do general, que olhava para mim com ar aflito e eu, do alto da minha longa experiência de voo ‒ que era, então, ainda muito pouca ‒ acalmava-a através da linguagem labial e facial. O general continuava a abanar a cabeça em sinal negativo, tendo adoptado a posição de dobrado pela cintura, fincando os cotovelos nas coxas. Mesmo ao meu lado repousava a máquina de filmar e, logo a seguir, sentava-se o condutor do carro do general. Chorava copiosamente, em silêncio. Pelas janelas eu via relâmpagos, chuva intensa, granizo, descargas eléctricas sobre o avião.

 

Os safanões eram muitos, mas, a dado momento, um deles foi brutal. O avião, literalmente, caiu, caiu, caiu e pensei, olhando para a asa do outro lado: «quando parar de cair vão partir-se as asas!». A máquina de filmar ficou à altura os meus olhos, a escadita lá no fundo ‒ que deveria estar presa à fuselagem ‒, porque solta, ficou colada ao tecto. A minha filha, com um aninho de idade, estava agarrada a mim e eu não a soltava nem por nada. A minha mulher segurava a filha do copiloto e a mulher deste nada dizia. O Dakota deixou de cair e a asa oposta ao meu lugar abanou como uma bandeira ao vento. A pancada, lá em baixo, no fundo do poço de ar, foi brutal e fez-se acompanhar do som da escadinha a bater no chão do avião. Não se ouvia um ai.

Dali para a frente os saltos reduziram-se, talvez por comparação com o anterior. Foram mais de vinte minutos a sentir que a morte pairava dentro daquela aeronave. Depois, tudo passou como por encanto. Olhei para fora. Já não havia nuvens e voávamos sobre o mar.

 

Aterrámos no aeroporto de Lourenço Marques ao cabo de mais de três horas de voo. Só voltei a ver a D. Marina na messe de oficiais, pouco antes do jantar. Disse-me: «Que susto, senhor tenente! Eu bem dizia ao meu marido para dar ordem aos pilotos para voltarem para trás, mas negou-se a tal, porque, afirmou, eles sabem o que estão a fazer». O capelão, depois do jantar, disse-me: «Pelo sim pelo não, lá atrás, dei a absolvição a todos os que estavam connosco».

O certo é, no outro dia vim a saber, o Dakota aterrou com uma série de avarias e carecendo de fazer uma revisão à estrutura, por causa das tensões sofridas.

 

Dormimos uma noite num péssimo quarto da messe. Na manhã seguinte fui instalar-me, com a família, no hotel Tivoli, num amplo quarto com ar condicionado. Comíamos na messe, onde esperámos quatro dias para embarcar no DC-6 que, sem qualquer tipo de serviço a bordo, nos trouxe, ao longo de três percursos ‒ Lourenço Marques-Luanda, Luanda-Bissalanca e Bissalanca-Lisboa ‒ até à minha cidade natal. Foram vinte e quatro horas efectivas de voo. Chegámos ao fim da tarde e estava muito frio, em especial, se comparado com o calor deixado para trás.

Havia cumprido vinte e cinco meses de comissão militar em Moçambique.

11.07.20

Fases da minha vida – 37

(As minhas leituras)


Luís Alves de Fraga

 

Quero só falar das minhas leituras durante a primeira comissão em Moçambique, entre Dezembro de 1966 e Fevereiro de 1969. E faço-o, porque foi um tempo especial, antecedido de um outro, de doze meses ‒ o tempo de alferes, na Base da Ota ‒, já liberto das obrigações de estudar.

 

Na verdade, considero que todas as minhas leituras no período em que fui estudante, ou seja, durante dezassete anos civis, foram descansos da obrigação de me preparar para a vida profissional; as que fiz já como oficial da Força Aérea foram actos voluntários para distracção do espírito e aumento de horizontes, pois a leitura abre janelas sobre experiências. Foi por isso que, no ano de 1966, comprei um pequeno tratado, em francês, de física nuclear ‒ desejava perceber, então, uma outra perspectiva da Física ‒ ou, em formato de livro de bolso, de Aquilino Ribeiro, Dom Quixote de La Mancha (três volumes), O Malhadinhas, Mónica, Maria Benigna e Casa Grande de Romarigães e, também, para além de outros, que já não recordo, a edição francesa da História Universal, de Carl Grimberg.

A ânsia de me debruçar sobre novos rumos culturais levou-me, logo que tive uma ligeira largueza orçamental ‒ o dinheiro era contado aos centavos ‒ a comprar livros, tal como se vê pelo exemplo anterior, um pouco sem ângulo de tiro bem definido; disparava em todas as direcções.

 

Em Moçambique, aconteceu o mesmo, primeiro em Lourenço Marques e, depois, na Beira.

Foi, então, que, muito lentamente, se me impôs o prazer do saber histórico, através de comprar e ler uma série de livros sobre a 2.ª Guerra Mundial, vista, umas vezes, como campanha militar e outras como enredo político internacional. A par disto, debrucei-me, também, sobre a Guerra Civil de Espanha, numa tentativa de perceber o país vizinho e a sua problemática, em especial o fundamento para aquilo que julgava ser unânime: a veneração por Francisco Franco.

Foi nesta segunda vertente que se me despertou o gosto pela explicação do fenómeno político nas sociedades. Não bastou compreender a vitória nacionalista; tornou-se-me imperioso ir ao âmago ‒ dentro das limitações impostas, então, pelo nosso próprio regime ditatorial ‒ das razões republicanas. Daí, a querer perceber o anticlericalismo vermelho e a explosão anarquista na sociedade espanhola, foi um salto. Um salto que ficou suspenso, pois não encontrei, nos ensaios lidos, a justificação para as perguntas que se me levantavam.

 

O mundo ficcional começou a desvendar-se, olhado, então, com uma nova perspectiva: deixou de ser a estória a comandar a leitura, mas a reflexão sobre o que me era narrado pelo autor. Passou a interessar-me o significado da importância social daquele enredo na vida do ficcionista e na dos leitores.

A literatura assumiu, sem eu me dar conta, um propósito político para mim, colocando-me entre o desejo de abarcar as justificações dos acontecimentos e a compreensão das sociedades. Não tive consciência ‒ até porque não lia segundo critérios orientados por quem me podia sugerir caminhos ‒ de que se estavam a moldar dentro de mim dois aspectos que me iriam nortear para trilhos futuros: a Ciência Política e a História. Contudo, do que, conscientemente, me apercebi foi da presença de uma natural apetência para as temáticas humanísticas e sociais, aliás, bem de acordo com a chamada de atenção feita, dez anos antes, pelo meu saudoso mestre de Cálculo Financeiro, Contabilidade e Economia Política, Dr. Luizélio Saraiva, quando me garantiu que me sentiria muito bem ao estudar a última das cadeiras referidas. E, de facto, assim foi!

 

Sem dúvida, o meu crescimento profissional, enquanto oficial da Força Aérea, fez-se nos vinte e cinco meses passados em Moçambique, no contacto com o clima de guerra e com formas muito díspares de a viver; todavia, esses meses, foram também um tempo para leituras dispersas, desordenadas, sem fio condutor entre si, que me levaram, inconscientemente, a procurar dentro de mim os meus verdadeiros interesses intelectivos.

Mais à frente, veremos como deu fruto a anarquia literária do primeiro período da minha vida profissional, distante das obrigações estudantis, que havia tido até três anos antes.

09.07.20

Fases da minha vida ‒ 36

(A visita do general)


Luís Alves de Fraga

 

Talvez fosse Março ou Abril de 1968, quando, numa manhã de um qualquer dia útil de uma qualquer semana, recebi uma mensagem vinda da Base Aérea n.º 10, avisando que o general Machado de Barros, comandante da 3.ª Região Aérea, o mais graduado de todos os oficiais do ramo em Moçambique, vinha instalar-se, por um dia, com a esposa, na messe onde almoçaria acompanhado do seu chefe do estado-maior, ajudante-de-campo e outros mais oficiais e mulheres. Deviam ser dez e meia quando a mensagem chegou à minha secretária e o almoço teria de estar na mesa por volta das treze. Era a primeira vez que o general ficava instalado na messe, pelo menos, desde que eu era gerente.

 

Chamei o sargento adjunto da gerência e dei-lhe ordens sobre o modo como proceder: dizer ao chefe de sala para preparar a mesa, mandar verificar o estado de limpeza do quarto privativo do comandante da Região Aérea e nada mais.

Uma hora e pouco depois, como era meu hábito, fui passar revista à cozinha, bar, sala de estar e de jantar e, espanto meu, estavam umas cinco ou seis empregadas da limpeza de volta da sala de estar e de jantar a brunir janelas, encerar chão, a fazer nem sei que mais!

Inquiri quem dera ordem para tudo aquilo. Resposta: «O senhor sargento C». Chamei-o e lá veio ouvir a rabecada usual: «Que as mulheres deveriam imediatamente voltar aos seus trabalhos habituais». Sem perceber o alcance da minha zanga, tentou retorquir: «Mas, meu tenente, vem aí o nosso general!» «Faça o que eu mando e deixe o nosso general por minha conta!»

Destroçaram as empregadas da limpeza, saiu o sargento C de orelha murcha e segui para a sala de jantar a falar com o chefe de sala, que havia arranjado, nem sei como, um pequeno centro de mesa com um arranjo de flores para a mesa comprida do general.

‒ Oiça cá, o senhor põe, na minha mesa ou na de qualquer outro oficial, flores todos os dias?

Claro, não punha! Mas como era o senhor general… Condescendi com o centro de mesa, mas já contrafeito.

 

Fui ao quarto avisar a minha mulher que nesse dia íamos almoçar mais tarde, mas pouco antes das treze horas. Queria estar sentado na minha mesa, propositadamente colocada num dos cantos da sala para a poder ver toda num relance, quando o general chegasse com a comitiva.

Foi o que aconteceu. Ele entrou e o chefe de sala encaminhou todos para a mesa; uma mesa posta junto das janelas de frente para a entrada.

Demorei deliberadamente o meu almoço para aguardar que fosse servida a sobremesa ao general. Nessa altura, coloquei-me em frente do general e apresentei-me, dando-lhe as boas-vindas. Polidamente, agradeceu e, enquanto comia o doce, começou a fazer-me perguntas sobre a messe. Como vi que a conversa ia demorar, dei ordem ao chefe de sala, que servia pressuroso o general e comitiva, para me trazer uma cadeira. Embora afastado da mesa, pedi autorização para me sentar, e sentei-me, porque esta coisa de tragam-me o gerente à mesa não era para mim! Ali, eu era o anfitrião e, como tal, eu tinha de me tratar.

 

Fui respondendo até que o general me perguntou se o café era servido na mesa ou no bar. Esclareci que se bebia o café no bar e para lá nos dirigimos todos. Continuei a satisfazer-lhe a curiosidade, pois queria inteirar-se de tudo em pormenor.

Quando parecia terem-se esgotado as perguntas do general Machado de Barros, considerado um dos mais severos e rigorosos generais da Força Aérea daquele tempo ‒ tinha por trás de si um currículo invejável como organizador de meios de combate ‒ tomei a decisão de, à laia de conclusão, dizer:

‒ Meu general, fui avisado da chegada de VExa. com pouco tempo de antecedência, talvez duas horas e meia, mas, se tivesse sido avisado há vários dias, nada se alteraria na messe, porque, se tudo está bem para nós, que aqui passamos vinte e quatro meses, estará muitíssimo bem para o meu general, que aqui só vai estar vinte e quatro horas!

Quem conheceu de perto o general Machado de Barros sabe que tinha um tique muito peculiar quando era apanhado de surpresa ou era obrigado a pensar ponderadamente: semicerrava os olhos. Foi assim que me olhou depois da frase, que transcrevi textualmente. Uns segundos depois, respondeu-me:

‒ Mas sem dúvida, senhor tenente, sem dúvida!

 

Em Novembro, faltavam cinco ou seis semanas para eu acabar a comissão de serviço e regressar a Portugal, foi alojar-se na messe da Beira a Senhora Dona Marina Machado de Barros, esposa do general, que, entretanto, nas posteriores passagens do casal pela Beira, travara boa e simpática amizade com a minha mulher. Antes do jantar, na sala de estar ‒ dava-nos o prazer de tomar as refeições na nossa mesa ‒, disse-me que estava ali para cumprir uma incumbência do seu marido. Olhei-a com curiosidade. Com um sorriso nos lábios, perguntou-me:

‒ Senhor tenente, o meu marido manda-me perguntar-lhe se quer prolongar a sua comissão por mais um ano.

O meu espanto deve ter sido tal que acrescentou:

‒ Ele gostaria que fosse gerir a messe de Lourenço Marques.

Parei menos de um segundo e deixei escapar a pergunta: «Trata-se de uma ordem do senhor general ou de uma sondagem?»

Prontamente retorquiu: «De uma sondagem, naturalmente!»

‒ Senhora Dona Marina, queira agradecer ao senhor general, mas, quando cumprir os vinte e quatro meses de comissão, quero regressar à Metrópole (como, então, se dizia)!

E nunca mais se tocou no assunto entre nós. No dia seguinte, regressou a Lourenço Marques com a simpatia de uma grande dama.

 

Confirmei, para toda a minha vida militar, que um general é um homem igual a todos os outros: gosta de frontalidade, franqueza e honestidade, se for, realmente, um Homem!

07.07.20

Fases da minha vida ‒ 35

(Tantos para tão poucos)


Luís Alves de Fraga

 

Durante quase toda a minha vida adulta tive de me confrontar com um aspecto delicado: ser militar da Força Aérea e não ser tropa combatente.

Delicado porque, de uma forma indirecta, até no seio da própria Força Aérea, essa situação é alvo de referência quando os pilotos-aviadores enaltecem a sua condição, postergando ‒ por vezes de forma bastante inconveniente ‒ lá para trás o restante pessoal como se fossemos coisa inútil. Isto foi muito difícil de suportar, em especial, durante o tempo da guerra em África.

Como muito mais à frente se verá, quando me foi dada a possibilidade, fiz o que estava ao meu alcance para corrigir ou reduzir esta situação.

Então, vale a pena perder um pouco de tempo a explicar o quanto errados estão todos os críticos da passividade dos não combatentes da Força Aérea. Para tal, fixemo-nos no tempo de guerra.

 

É importante referir que, nesses anos (1961 a 1974) havia uma grande quantidade de pilotos que não eram oficiais; havia-os furriéis milicianos, sargentos do quadro permanente e oficiais milicianos, porque, ao contrário da actualidade, o monopólio da pilotagem aeronáutica não recaía nos oficiais do quadro permanente. Esses eram em número insuficiente para todas as acções de combate. Foi um dado pouco exaltado na guerra colonial, tal como passa, sob uma nuvem negra, a razão de todo o apoio logístico necessário para manter os aviões no ar para cumprimento das suas diversas missões.

Há quem olhe para todo o pessoal da Força Aérea, que não foi piloto ou tripulante de aeronave, na guerra, como inútil, desnecessário e parasita.

É preciso que se esclareça, de uma vez por todas, a razão de ser deste apoio e da impossibilidade de os aviões e seus pilotos cumprirem a missão se ele não existisse.

Vamos a isso.

 

O avião, em especial ‒ porque em menor escala o helicóptero ‒, carece de uma infra-estrutura no solo para descolar e para aterrar. Mas ela, por si só, chega para pouco; precisa de uma torre de controle e de controladores aéreos para gerirem o trânsito no espaço de aproximação, de quem faça o abastecimento e reabastecimento de combustível, de quem proceda às reparações imediatas na chamada linha da frente, de quem mantenha, limpe e organize os espaços de estacionamento das aeronaves, de quem estabeleça as comunicações entre o solo e os aviões, de quem proceda à segurança militar próxima das instalações, de quem imagine as dietas alimentares e de quem cozinhe os géneros, de quem municie as aeronaves e de quem transporte esse material dos depósitos até aos aviões, de quem providencie pela saúde do pessoal em todos os aspectos, de quem compre e mande comprar o que faz falta, de quem gira os meios financeiros, de quem proceda à reparação dos veículos tanto de pista como de transporte e de defesa próxima, de quem planeie as operações e as mande executar, de quem comande todo o conjunto para o tornar harmonioso. Enfim, posso dizer, sem receio de errar que, para cada piloto que está por trás dos comandos de uma aeronave estão, no mínimo, dez indivíduos ‒ militares e ou civis ‒ que lhe garantem as condições para a missão ter êxito.

 

Deste modo, é fácil perceber que se, em Moçambique, estivessem cento e vinte pilotos a voar, os efectivos em terra teriam de andar pelos mil e duzentos indivíduos e, garantidamente, na 3.ª Região Aérea, nesse ano, os efectivos eram mais do dobro do número indicado. Realmente, tentando a aproximação por outro método, embora não tenha dados exactos e bem estabelecidos, por simples empirismo, julgo que, nos diferentes tipos de missões aéreas, no ano de 1968, não se terá ficado muito longe das quinhentas. Assim, por clara evidência, não podemos dizer que eram cerca de quinhentos os pilotos envolvidos, mas é mais admissível calculá-los pelos cento e vinte a cento e cinquenta, chegando, desta forma e de outra maneira, ao cálculo anterior. Estabeleçamos três mil militares da Força Aérea em Moçambique, no ano apontado.

 

É muito?

Pensemos nos porta-aviões desse tempo e nos actuais, cuja tripulação andava ou anda pelos quatro mil homens, sendo que, de certeza, nem dez por cento são absolutamente privativos da navegação do navio. Pensemos no número de aeronaves e no de pilotos embarcados e veremos que, em termos de contingente, tanto Angola como Moçambique, eram semelhantes a porta-aviões de grande envergadura.

Mas, na guerra colonial, só em poucos aeródromos o inimigo exerceu a sua acção ofensiva e destruidora e, nesses, os efectivos de apoio, por razões tácticas, eram reduzidos aos mínimos essenciais. Daí haver distinções entre os que lá estavam e os que não estavam.

 

Embora a comparação com o porta-aviões sirva para justificar os números de gente necessária para apoio aos poucos que vão voar, não se adequa à situação de uma base aérea em tempo de guerrilha, como foi o caso de Moçambique, Angola e Guiné, pois não estando em perigo os efectivos de terra da mesma maneira que está a guarnição do porta-aviões, quase parece legítimo desvalorizar esses homens ‒ militares e civis ‒ que geram as boas condições para o cumprimento da missão. É por causa desse quase que, ainda, se menospreza quem apoia aqueles que voam.

 

Felizmente, enquanto fui gerente da messe de oficiais e sargentos da cidade da Beira, tive plena consciência que o meu trabalho servia para o esforço de guerra e para o cumprimento da missão da Força Aérea, em Moçambique.

06.07.20

Fases da minha vida ‒ 34

(Notícias da guerra: Mueda)


Luís Alves de Fraga

 

Um pouco diferente de Lourenço Marques, em 1967, na Beira sentiam-se de forma atenuada, nos meios civis, os efeitos da guerra que se passava lá no Norte. Mas, mesmo assim, a vida continuava sem sobressaltos e sem uma clara noção de que aquele era um conflito decisivo para o território e para Portugal.

Nos meios militares da Força Aérea a percepção da guerra era muito mais nítida. Os aviões de transporte, com sede na Base Aérea da Beira, iam e vinham do Norte e traziam notícias, ainda que vagas, do que por lá se passava. Mas, mais do que os aviões, a guerra começou a chegar como notícia à Beira através da acção dos pára-quedistas do BCP-31. Eles eram utilizados nas zonas de intervenção às ordens do comandante-chefe nas áreas mais conturbadas.

 

Quando cheguei à cidade da Beira tive oportunidade de me aperceber dos últimos resquícios do bloqueio britânico ao porto de mar, por causa do apoio que Portugal dava ao Governo de Ian Smith, da Rodésia. Ainda estavam visíveis, nas cercanias da pista do aeroporto, na zona militar, as fortificações precárias das peças antiaéreas montadas para defesa da instalação, em caso de ataque inglês. A guerra de que se mais falava, nos cafés e nas esplanadas era a dos navios da Armada inglesa que vigiavam de forma cerrada a navegação marítima para a Beira, em especial a dos petroleiros. Londres queria vergar o Governo da Rodésia porque este tinha declarado unilateralmente a independência, tendo à frente um Governo da minoria branca. A ONU havia imposto que as colónias fizessem referendos para se perceber o tipo de emancipação desejada; a solução de Ian Smith tinha todo o apoio de Salazar e do Governo de Lisboa, porque, para além de tudo o mais, servia de tampão à expansão do movimento de libertação de Moçambique. O desafio a Londres e a paciência do velho aliado são hoje pouco recordados. A população europeia da Beira não escondia a simpatia pela forma como o território vizinho solucionara a exigência imposta pela ONU. Da guerrilha no Norte pouco se queria saber e esperava-se que a tropa resolvesse a situação.

 

Salvo erro, entre Julho e Setembro de 1968, passou pela messe de oficiais o meu amigo e camarada tenente piloto-aviador António Mira Godinho, vindo do Norte, mais exactamente de Mueda. Estivemos no meu gabinete muito tempo à conversa sobre o que era a guerra lá nesse planalto tristemente famoso.

Falou-me dos sucessivos ataques com morteiros pesados feitos pela FRELIMO, das valas onde se abrigava a guarnição do aeródromo quando as granadas por lá caíam um pouco ao acaso, de como tinham de levantar os helicópteros para colocar tropas em posição de ataque a santuários da guerrilha, das evacuações que se faziam, do estado de espírito do pessoal, da tensão dos pilotos e da tropa da polícia aérea, que garantia a segurança das instalações.

 

Nessas, talvez, duas horas eu tive a mais real perspectiva do que acontecia onde se combatia a sério a guerrilha. Percebi muito mais do que me contou; percebi que a única grande esperança do Exército residia na possibilidade de as aeronaves da Força Aérea apoiarem as suas operações sem grande oposição da FRELIMO, cuja capacidade de resposta estava nas armas ligeiras.

Era perceptível que o fio onde se seguravam as forças portuguesas em terra era o avião ou o helicóptero no ar. O tempo, mais tarde ou mais cedo, iria provocar uma mudança. As campanhas heróicas dos Mouzinhos, dos Caldas Xavier e dos Couceiros tinha ficado lá para trás, no final do século XIX. Já não eram hordas de negros armados de zagaias que atacavam os soldados portugueses. Eram pequenos grupos bem equipados que espalhavam a desordem nas colunas que os procuravam como se procura uma agulha num palheiro.

 

O António Mira Godinho com a sua excelente explicação gerou a minha intranquilidade.

A guerra, para nós, não ia ter fim. A solução não passava pelo uso das armas, mas pela diplomacia e esta pela política.

04.07.20

Fases da minha vida ‒ 33

(A estreia como cronista)


Luís Alves de Fraga

 

O trabalho na messe era grande, mas, tal como já disse, no essencial, resumia-se a apagar fogos de momento, a qualquer hora do dia ou da noite ao longo de qualquer dia da semana, porque, para as actividades rotineiras, bastou-me defini-las de início e, depois, cumpri-las com rigor. Deste modo, sobrava tempo para outras coisas, tais como ler tudo o que podia e me caía ao alcance do olho.

Como de rapaz me habituei a escrever e, por ver o meu pai retomar a sua tendência de jornalista, talvez por mera imitação, comecei a rabiscar ensaios de crónicas e a mandar-lhos para me dar a opinião. Corrigindo aqui e ali, saiu-me, parece-me, no mês de Setembro de 1968, uma crónica mais elaborada, que o meu progenitor entendeu mandar para a redacção do mais antigo jornal português ‒ o Açoriano Oriental, que se publica na ilha de S. Miguel. Era a minha estreia como cronista!

Exultei ao receber o jornal e ver nele o meu nome e as minhas palavras, embora com alguns saltos incompreensíveis. O meu pai explicou-me a razão dos desconchavos: cortes da censura.

 

Criei o hábito de todas as semanas redigir uma crónica, remetendo-a para análise paterna; se aprovada, era enviada para os Açores.

A pouco e pouco, ganhei o jeito de escrever de modo a que os censores não tivesse nada para cortar. A redacção saía, para os leitores, muitíssimo mais escorreita e compreensível. Mas, tenho de confessar, fui um beneficiado pela sorte. Explico.

 

Em Setembro desse ano, caiu-nos em cima, como um raio em tarde de Verão bem quente, a notícia da cirurgia de Salazar, em consequência do tombo da cadeira.

Na Beira foi recebida com silêncio colectivo a ocorrência, mas, soube-o de fonte segura, a PIDE tinha ordens para prender e interrogar todo aquele que contasse qualquer tipo de anedota sobre o enfermo.

Dia após dia, as notícias sobre o estado de saúde do ditador apontavam para a impossibilidade de voltar ao desempenho do cargo. Vivíamos suspensos, porque ninguém calculava o que se iria seguir. Todos sabíamos que havia possíveis delfins, mas quando, como e quem daria a volta?

 

No caso da morte política de Salazar, iam sendo todos os dias ultrapassadas as notícias que nos chegavam.

A escolha de Marcello Caetano para Presidente do Conselho de Ministros trouxe um sobressalto de esperança quanto à possível alteração do regime, tanto mais que, no discurso da tomada de posse, o professor foi muito claro quanto ao traçar das novas linhas de conduta, já que se considerou um homem comum.

De facto, de Setembro a Dezembro, ainda tive oportunidade de perceber que a censura estava a ser aliviada, pelo menos, na aparência. Isso permitiu-me escrever com mais ligeireza algumas das crónicas mandadas para o Açoriano Oriental.

Seria já em Lisboa que eu passaria a viver aquilo que se achou ser uma grande abertura e foi apelidada de primavera marcelista.

03.07.20

Fases da minha vida ‒ 32

(“A Caravana da Amizade”)


Luís Alves de Fraga

 

Lá por volta de Fevereiro ou Março de 1968, já não me recordo através de que canal, fui avisado de que se preparava para, em Agosto, chegar a Moçambique e à Beira a chamada Caravana da Amizade formada por alunos dos Pupilos do Exército acompanhados de antigos alunos e de oficiais, nomeadamente o capitão Robalo Gouveia, que exibiria a classe especial de ginástica. Era preciso preparar tudo para os receber, alojar, alimentar, levar a passear e ajustar as exibições de ginástica com a dignidade desejada.

Porque não havia ex-alunos no Exército na cidade da Beira e eu estava melhor posicionado para centralizar a acção, fazendo do meu gabinete, na messe, o quartel-general, tratei de convocar os ex-alunos militares da Força Aérea e civis para formarmos o nosso estado-maior.

 

O mais antigo e mais velho era o senhor Fernando Batista Alves (230/1919), tesoureiro da companhia Lusalite, homem da idade do meu pai, de uma modéstia e simplicidade imensas, mas com uma extraordinária experiência de vida notável. Era convictamente anarquista, sem disso fazer alarde, mas, depois de me sondar, foi-me falando nessa ideologia política. Conseguiu despertar-me mais para a compreensão da vida em Portugal.

Embora presidindo-nos, o Fernando Alves empurrava para mim as funções e os destaques que lhe eram atribuíveis.

 

Juntámos um núcleo interessante, que se reunia no meu gabinete em noites previamente combinadas e, passo a passo, fomos delineando programas e inventariando apoios para aqueles poucos dias em que a Caravana da Amizade ia estar na Beira.

Os mais activos foram, para além do Fernando Alves, o Fernando Silva Dias, mundialmente conhecido pela alcunha herdada do pai, que foi professor de Matemática nos Pupilos, Papa Giz, bem-humorado, excelente apreciador de petiscos e de bons copos, o Fernando Cristo e o saudoso Pedro Pinheiro, chefe de contabilidade da Base Aérea n.º 10.

A partir do quartel-general, noite após noite e semana após semana, fomos encontrando solução para o alojamento de todos, para os cumprimentos a apresentar pelos oficiais responsáveis pela comitiva, para os saraus de ginástica a levar a cabo, convidando classes desportivas da cidade para se exibirem também, para as visitas a fazer ‒ Gorongosa, com alojamento, e Vila Pery, com exibição, Companhia Têxtil do Pungué ‒, para os meios de transporte a usar, de modo a não haver encargos financeiros para a Associação dos Pupilos do Exército nem para o próprio Exército.

 

Guardámos para o fim a forma de dar mais visibilidade e publicidade à Caravana da Amizade. Até convocámos uma conferência de imprensa para o meu gabinete na véspera da chegada dos atletas e acompanhantes!

À custa de diversos esforços e sinergias tudo correu maravilhosamente. Foi um êxito a estadia da Caravana da Amizade, no distrito de Manica e Sofala. A imprensa e a rádio não se cansaram de tecer elogios aos ginastas dos Pupilos.

 

Deste esforço colectivo entre ex-alunos, nasceram várias coisas interessantes. A primeira, foi a criação, ainda que efémera, do núcleo da Associação dos Pupilos do Exército (APE) na cidade da Beira. De facto, passámos, até ao final da minha comissão, em Janeiro de 1969, a reunir, em almoço mensal, gerações diferentes, com experiências diversas uns dos outros, mas onde todos encontrávamos o elemento comum: o nosso Instituto. A segunda, mais pessoal, resultante da passagem da Caravana da Amizade pela Beira, foi a consolidação de uma amizade, quase inimaginável, entre mim e o Fernando Alves. Com ele fiquei a saber como era a educação nos Pupilos nos primeiros anos de existência da nossa Casa, mas, como já disse, pela mão dele li vários livros sobre anarquismo e, também, sobre oposição à ditadura. Fiquei encantado com um do qual nunca mais me esqueci: Quando os Lobos Julgam a Justiça Uiva, da autoria de Aquilino Ribeiro, editado, em 1958, no Brasil. O prefácio é de Adolfo Casais Monteiro e nele pode ler-se a seguinte passagem (colhida, agora, na Internet): «O nosso conhecido medo de enfrentar a verdade (o medo de um povo que para tal foi educado, desde séculos antes de ter sido salazariado), o falso optimismo do ‘talvez não seja tanto assim’, que é a reacção dos que ainda querem salvar uma mísera comodidadezinha, pouco acima do nível da fome e paga à força de abdicações morais e espirituais — eis o terreno no qual a ditadura não teve dificuldade em firmar os alicerces do seu monstruoso culto de coisa-nenhuma, o auto-endeusamento da violência que só ama a si mesma. Porque um povo que fecha os olhos de dentro ao que os olhos virados para fora lhe estão mostrando a cada instante, é um povo pronto a abdicar da sua vontade nos altares da tirania (...)».

Percebe-se que textos assim, para quem como eu, nos meus vinte e sete anos de vida, estava desejoso de perceber a democracia e a liberdade, abriram-me vulcões de curiosidade, só aplacáveis no diálogo com o meu velho condiscípulo Fernando Alves.

 

Estava, sem me dar conta, a pisar o primeiro degrau da mudança de uma fase da minha vida.

01.07.20

Fases da minha vida ‒ 31

(Os cabritos de Vila Pery)


Luís Alves de Fraga

 

Será bom recordar que, naquele fim de Inverno (no hemisfério do sul), no mês de Setembro de 1967, eu tinha, incluído o tempo de aspirante, um pouco menos de dois anos de oficial e, experiência de chefia e direcção de subordinados, na verdade, somente alguns meses, pois, no ano de serviço na Base da Ota, havia sido um adjunto aprendiz de práticas de assuntos estudados na teoria dos livros e das aulas na Academia Militar.

A gerência das messes ia ser a minha prova de fogo em termos técnicos e de liderança. Realmente, ainda estava a aprender tudo, mas da maneira mais dolorosa, porque dos meus erros ou falhanços seria o único responsável.

Cabe aqui e agora recordar uma lição que retive para a vida.

 

Embora o saldo financeiro da messe fosse muito confortável, uma gestão cautelosa não impedia que se procurasse comprar os géneros nos fornecedores de qualidade, mas com custos menores.

Assim, foi-me sugerido pelo despenseiro uma ida à região de Vila Pery ‒ hoje conhecida por Chimoio ‒ comprar uma dúzia de cabritos, na quinta (farm) de um agricultor, que fazia preços fora de concorrência. Aceitei a ideia, por ser razoável e conveniente.

 

Vila Pery ficava a duzentos quilómetros da Beira. Naquele tempo a estrada ‒ se é que se podia chamar estrada àquilo ‒ era constituída por uma estreita faixa de alcatrão por cima da qual só dava para circular um veículo. Ladeavam-na uns metros de terra batida, mais ou menos lisa, mais ou menos enrugada em tempo de chuvas. Era para a berma que os automóveis saltavam, deixando só o rodado do lado direito (conduzia-se à esquerda) em cima do alcatrão, fazendo o mesmo o outro carro. Claro, nesta estrada, quando passava um veículo em sentido contrário abria-se uma garrafa de champanhe!

A meio caminho tinha de se parar na cantina de Vila Machado. Ora, a primeira vez que fiz este percurso, percebi muitas coisas, para além da precariedade da estrada; percebi que uma vila, no interior de Moçambique, podia ser ‒ e, na maioria das vezes, era ‒ um conjunto de casas de alvenaria com telhado de chapa ondulada de fibrocimento e, logo ali colada, uma aldeia indígena, que cultivava as suas terras e negociava com os comerciantes da vila.

Era em Vila Machado que se inflectia para a picada que levava à entrada para do imenso parque da Gorongosa. Continuando na estrada, estava-se a cem quilómetros de Vila Pery, esta sim, com o aspecto de uma pequena cidade com alguns requintes de urbe com dignidade: um moderno café com esplanada, um cinema, um colégio privado e um liceu, uma escola comercial e industrial e um pequeno hospital.

 

Fomos direitos à farm do agricultor. A casa era de alvenaria, com o telhado de fibrocimento, mas tudo com um aspecto modesto de gente que trabalhava duro para conseguir um estatuto um pouco melhor do que o abandonado em Portugal. Era um agricultor que estava nos antípodas daqueles britânicos apresentados nos filmes sobre a colonização feita pelos filhos da velha Albion!

Lá nos fomos ao rebanho e o despenseiro, o cabo Zé ‒ o mais velho cabo da Força Aérea ‒, homem para cinquenta e tal anos, daqueles que sabem fazer de tudo um pouco, mas sem alarde das suas capacidades, perguntou-me se eu queria escolher os animais. Recordando a cadeira de Tecnologia do Serviço de Intendência, e no que lá aprendi, nos livros, está bem de ver, sobre a técnica de escolher gado, respondi-lhe prontamente que me encarregava do assunto.

Meti-me pelo meio do rebanho e, apalpo aqui e apalpo ali, seleccionei doze cabritos gordos e anafados. O cabo Zé olhava-me à distância.

 

Regressámos à Beira, já tarde, na carrinha Volkswagen (tipo pão de forma), que estava atribuída à messe e que guiei muitos e largos quilómetros, acompanhados pelos berros dos cabritos bem amarrados e deitados no chão.

Descarregados os animais, fui-me deitar, depois da janta e de dois dedos de conversa com camaradas amigos. No armazém de géneros ficou o cabo Zé a matar e esfolar os animais, que deviam sangrar e secar até, no dia seguinte, poderem ou ir para a panela ou para o frigorífico à espera de serem desfeitos e cozinhados.

 

Como era meu hábito, pouco depois das onze da manhã, fui passar revista às instalações, começando pelo armazém e cozinha. Nesta, deviam estar pendurados alguns dos gordos e anafados cabritos por mim escolhidos na véspera, mais ou menos por aquela hora. O que estava pendurado nos ganchos eram uns magros cabritos que lembravam, palidamente, os bichos do dia anterior!

‒ Mas estes é que são os animais que trouxemos ontem de Vila Pery? ‒ perguntei eu com ar espantado.

Com um sorriso trocista, respondeu o cozinheiro: «Claro que são. Têm alguma diferença?»

‒ Eram mais gordos ou, pelo menos, pareciam ‒ respondi, pondo-me à retranca.

‒ Mas foi o senhor alferes quem os escolheu, não foi? ‒ disse o cozinheiro.

‒ Claro que fui!

Ao mesmo tempo, oiço a voz do cabo Zé, dizer entre dentes:

‒ Quem te manda a ti sapateiro tocar rabecão?

Lembrei-me da minha saudosa mãe, aconselhando a minha irmã: «Mulher séria não tem ouvidos». Calei-me, disfarcei, continuei a revista e, ao regressar ao meu gabinete, jurei deixar-me de experiências e assumir o meu papel de gestor, chefe e responsável.

 

Fomos muitas mais vezes ao mato, na região de Vila Pery, comprar cabritos, mas deixei o cabo Zé escolhê-los bem gordos, cheios de carne e saborosamente cozinhados pelo Albertino, mestre doceiro e excelente chefe.

Em todas as alturas da Vida e com toda a casta de gente estamos capazes de aprender, assim o queiramos!

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