Fases da minha vida ‒ 49
(As armadilhas espreitam à esquina)
Do ponto de vista administrativo, os últimos meses de cada ano civil são cheios de mais trabalho, pois é o momento em que se procura fazer as aquisições necessárias para ficarem em armazém, esgotando as verbas atribuídas a cada unidade. É, também, o tempo de preparar a abertura de concursos para determinados tipos de fornecimentos constantes e de valores financeiros elevados, como, por exemplo, o dos géneros para confecção da alimentação.
Decorreria, talvez, o mês de Novembro, o oficial ‒ um tenente ‒ encarregado da gestão do rancho do AB-1 falou comigo sobre a possibilidade de não se abrir concurso público para o fornecimento de carne e peixe, para o ano de 1973, porque as firmas abastecedoras da unidade se haviam comprometido com ele a não elevar os preços daqueles géneros.
Imediatamente e sem hesitações fiz-lhe ver que tal não podia ocorrer, pois, era de lei, fazer todos os anos concurso para abastecimento dos géneros alimentícios mais caros e de consumo constante (carne, peixe, vinho, pão, azeite, batatas, arroz, massas, pelo menos), sendo que, naquela altura, a Manutenção Militar nem carecia de apresentar propostas, pois estava sempre em concurso, desde que os seus preços fossem menores do que os dos comerciantes. Esta condição fazia parte do caderno de encargos tornado público.
Embatocou, como é usual fazerem todos quantos usam de manha nas suas intenções. Pela minha parte não pensei mais no assunto, dando andamento às muitas tarefas que me assoberbavam.
Cerca de duas ou três semanas depois recebi uma nota (ofício ou carta, para quem não está familiarizado com o termo) de serviço interno do comandante interino do AB-1 (não tinha poder hierárquico sobre o conselho administrativo), tenente-coronel piloto-aviador Proença ‒ homem de poucas falas e poucos sorrisos ‒ propondo-me exactamente o mesmo que o oficial gestor do rancho da unidade. Ou seja, o tenente foi envenenar o comandante, que percebia de pilotagem e muito pouco ou mesmo nada de administração financeira e de leis orçamentais, sem o informar do que eu lhe havia respondido.
Em face do exposto pelo tenente-coronel Proença, eu teria de tomar uma de duas atitudes: ou responder, explicando o que já havia explicado, ou limitar-me a nada dizer e continuar a proceder de acordo com a lei.
Avaliadas as hipóteses, optei pela segunda, pois explicar resultaria em nada, porque só o facto de ter feito a proposta ao conselho administrativo indiciava estar mais inclinado a seguir a linha do tenente gerente do rancho do que ouvir a voz da legalidade. A esta conclusão cheguei, pois coloquei-me no lugar do comandante e, se o gerente do rancho me fizesse a proposta eu, comandante, acabaria por perguntar qual a razão por que, do antecedente, se faziam concursos e, naturalmente, perceberia que eram um imperativo da boa administração pública.
Pouco antes do final do ano fez-se o concurso e chegada a data da abertura das propostas e da licitação verbal em face dos resultados, depois do despique da baixa de preços, mandei fazer a adjudicação provisória aos fornecedores. Enviei os resultados para a DSIC e continuei a minha vida normal, sem pesos de qualquer espécie na consciência.
No mês de Fevereiro de 1973, estava eu a tentar despachar o fecho do ano económico anterior, para poder rapidamente embarcar para Moçambique, para nova comissão, fui confrontado com uma nota confidencial do comandante do AB-1 para o comando da 1.ª Região Aérea na qual se denunciava a minha má conduta administrativa, por ter feito o concurso público, visto, ao contrário do proposto pelo tenente-coronel Proença, os preços dos géneros terem todos aumentado.
Bom, o homem não sabia com quem se havia metido!
Fui verificar quais eram os vencedores do concurso e cheguei, como previa, à conclusão de que, na esmagadora maioria, se tratava dos antigos fornecedores do ano de 1972.
Ora, repare-se: houve oportunidade, no momento da licitação verbal, ou seja, na altura em que o concurso assume a semelhança a um leilão (neste caso para baixar preços) de os fornecedores virem até aos valores que estavam a praticar. Mas não o fizeram. E porquê? Porque estavam de má fé ao proporem manter os preços, se não fosse feito o concurso, pois, saltada essa obrigação legal, iriam subi-los, invocando a inflação, deixando o conselho administrativo e a Força Aérea em falso por não ter cumprido a obrigação legal, o mesmo é dizer, incapaz de se impor aos fornecedores.
As armadilhas que estão no caminho da boa administração pública são muitas e muito subtis. É preciso estar com grande atenção para não ser apanhado em falta, porque, depois, a responsabilidade é de quem não cumpriu o que devia cumprir!
Dei imediata resposta, também confidencial, ao comando da 1.ª Região Aérea com conhecimento à DSIC a quem solicitei que fosse cancelado o concurso público, por falta de idoneidade e honestidade dos vencedores, que eram, afinal, os que se haviam comprometido a manter os preços durante o ano de 1973.
Não soube o resultado destas andanças, porque, no dia 1 de Abril, embarquei para Moçambique, mas de uma coisa ficou ciente o tenente-coronel Proença: eu não alinhava em irregularidades e ele, ingénuo e mal avisado, caía nas mais singulares armadilhas… Tinha ainda muito que aprender!