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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.07.20

Fases da minha vida ‒ 49

(As armadilhas espreitam à esquina)


Luís Alves de Fraga

 

Do ponto de vista administrativo, os últimos meses de cada ano civil são cheios de mais trabalho, pois é o momento em que se procura fazer as aquisições necessárias para ficarem em armazém, esgotando as verbas atribuídas a cada unidade. É, também, o tempo de preparar a abertura de concursos para determinados tipos de fornecimentos constantes e de valores financeiros elevados, como, por exemplo, o dos géneros para confecção da alimentação.

 

Decorreria, talvez, o mês de Novembro, o oficial ‒ um tenente ‒ encarregado da gestão do rancho do AB-1 falou comigo sobre a possibilidade de não se abrir concurso público para o fornecimento de carne e peixe, para o ano de 1973, porque as firmas abastecedoras da unidade se haviam comprometido com ele a não elevar os preços daqueles géneros.

Imediatamente e sem hesitações fiz-lhe ver que tal não podia ocorrer, pois, era de lei, fazer todos os anos concurso para abastecimento dos géneros alimentícios mais caros e de consumo constante (carne, peixe, vinho, pão, azeite, batatas, arroz, massas, pelo menos), sendo que, naquela altura, a Manutenção Militar nem carecia de apresentar propostas, pois estava sempre em concurso, desde que os seus preços fossem menores do que os dos comerciantes. Esta condição fazia parte do caderno de encargos tornado público.

Embatocou, como é usual fazerem todos quantos usam de manha nas suas intenções. Pela minha parte não pensei mais no assunto, dando andamento às muitas tarefas que me assoberbavam.

 

Cerca de duas ou três semanas depois recebi uma nota (ofício ou carta, para quem não está familiarizado com o termo) de serviço interno do comandante interino do AB-1 (não tinha poder hierárquico sobre o conselho administrativo), tenente-coronel piloto-aviador Proença ‒ homem de poucas falas e poucos sorrisos ‒ propondo-me exactamente o mesmo que o oficial gestor do rancho da unidade. Ou seja, o tenente foi envenenar o comandante, que percebia de pilotagem e muito pouco ou mesmo nada de administração financeira e de leis orçamentais, sem o informar do que eu lhe havia respondido.

Em face do exposto pelo tenente-coronel Proença, eu teria de tomar uma de duas atitudes: ou responder, explicando o que já havia explicado, ou limitar-me a nada dizer e continuar a proceder de acordo com a lei.

Avaliadas as hipóteses, optei pela segunda, pois explicar resultaria em nada, porque só o facto de ter feito a proposta ao conselho administrativo indiciava estar mais inclinado a seguir a linha do tenente gerente do rancho do que ouvir a voz da legalidade. A esta conclusão cheguei, pois coloquei-me no lugar do comandante e, se o gerente do rancho me fizesse a proposta eu, comandante, acabaria por perguntar qual a razão por que, do antecedente, se faziam concursos e, naturalmente, perceberia que eram um imperativo da boa administração pública.

 

Pouco antes do final do ano fez-se o concurso e chegada a data da abertura das propostas e da licitação verbal em face dos resultados, depois do despique da baixa de preços, mandei fazer a adjudicação provisória aos fornecedores. Enviei os resultados para a DSIC e continuei a minha vida normal, sem pesos de qualquer espécie na consciência.

No mês de Fevereiro de 1973, estava eu a tentar despachar o fecho do ano económico anterior, para poder rapidamente embarcar para Moçambique, para nova comissão, fui confrontado com uma nota confidencial do comandante do AB-1 para o comando da 1.ª Região Aérea na qual se denunciava a minha má conduta administrativa, por ter feito o concurso público, visto, ao contrário do proposto pelo tenente-coronel Proença, os preços dos géneros terem todos aumentado.

Bom, o homem não sabia com quem se havia metido!

 

Fui verificar quais eram os vencedores do concurso e cheguei, como previa, à conclusão de que, na esmagadora maioria, se tratava dos antigos fornecedores do ano de 1972.

Ora, repare-se: houve oportunidade, no momento da licitação verbal, ou seja, na altura em que o concurso assume a semelhança a um leilão (neste caso para baixar preços) de os fornecedores virem até aos valores que estavam a praticar. Mas não o fizeram. E porquê? Porque estavam de má fé ao proporem manter os preços, se não fosse feito o concurso, pois, saltada essa obrigação legal, iriam subi-los, invocando a inflação, deixando o conselho administrativo e a Força Aérea em falso por não ter cumprido a obrigação legal, o mesmo é dizer, incapaz de se impor aos fornecedores.

As armadilhas que estão no caminho da boa administração pública são muitas e muito subtis. É preciso estar com grande atenção para não ser apanhado em falta, porque, depois, a responsabilidade é de quem não cumpriu o que devia cumprir!

 

Dei imediata resposta, também confidencial, ao comando da 1.ª Região Aérea com conhecimento à DSIC a quem solicitei que fosse cancelado o concurso público, por falta de idoneidade e honestidade dos vencedores, que eram, afinal, os que se haviam comprometido a manter os preços durante o ano de 1973.

Não soube o resultado destas andanças, porque, no dia 1 de Abril, embarquei para Moçambique, mas de uma coisa ficou ciente o tenente-coronel Proença: eu não alinhava em irregularidades e ele, ingénuo e mal avisado, caía nas mais singulares armadilhas… Tinha ainda muito que aprender!

29.07.20

Fases da minha vida ‒ 48

(Comando da 1.ª Região Aérea: o presidente)


Luís Alves de Fraga

 

Ser chefe de contabilidade de uma grande unidade, tal como era, então, o Comando da 1.ª Região Aérea, constituía uma tarefa difícil e requeria muita atenção, pois a acção financeira e logística dividia-se pelo comando propriamente dito, pelo GDACI (Grupo de Detecção Alerta e Condução da Intercepção) ‒ ambos em Monsanto ‒, pelo Aeródromo Base n.º 1 ‒ Aeroporto de Lisboa (velhos barracões do tempo da 2.ª Guerra Mundial) e Figo Maduro (hangares) ‒ e a esquadra de radares de Montejunto. O general comandante, nunca vi; com quem tinha relações mais frequentes ‒ pelo telefone ‒ era com o chefe do estado-maior, coronel piloto-aviador Baião, homem de trato muito difícil.

O conselho administrativo estava instalado nos velhos barracões do AB-1, pegado ao edifício do comando dessa unidade e muito perto do da enfermaria e posto médico. No lado oposto, a uma certa distância, mas em construção de pedra, cimento e tijolo, estava a messe de oficiais.

 

Aquando da transmissão do cargo, o camarada que substitui ‒ ia novamente para África ‒, fez-me uma série de avisos importantes, nomeadamente sobre o presidente do conselho administrativo, um velho coronel de Administração já na reserva, mas prestando serviço activo para aumentar a pensão até ao limite máximo de idade e de dinheiro. Tratava-se de um beirão, que, creio, ainda em capitão, havia sido julgado, punido e obrigado a repor uma elevada quantia desviado dos cofres do Estado. Desconhecia-lhe este passado. Teria de estar muito atento às manobras do coronel, pois, pelos vistos, tentava golpes de todas as maneiras e feitios.

Fiquei de pé atrás.

 

Para se compreender o resto, tenho de descrever uma das acções mais importantes do chefe de contabilidade, naquele tempo e no de agora para funções idênticas.

Quando uma subunidade ou serviço pretendia que fosse mandado comprar um qualquer artigo (que não alimentar, porque o processo era outro) ‒ nas lojas ou firmas fornecedoras ‒ fazia uma requisição à esquadra de material e infraestruturas (EMI), a qual, se não tivesse em armazém o artigo requisitado, elaborava o pedido de aquisição, que apresentava no conselho administrativo. Este fazia a ordem de compra sujeitando-a ao chefe de contabilidade para ser devidamente classificada de acordo com as rubricas orçamentais, que suportavam a despesa (pode parecer altamente burocrático o processo, mas havia circuitos de urgência capazes de dar resposta a uma solicitação em menos de meia hora).

Era nesta fase que se iniciava a possível travagem da aquisição pois, para avançar a ordem de compra para o mercado, tinham de se verificar duas condições em simultâneo: haver rubrica orçamentada para suportar a despesa e, caso existisse, haver saldo nos duodécimos já vencidos. Não se podia comprar, comprometendo valores ainda não recebidos da Fazenda Pública.

Como chefe de contabilidade tinha de começar por verificar se todo o processo estava completo para tomar, de acordo com o valor da compra, uma de três decisões: ou classificar e cativar a verba necessária ou proceder a uma consulta ao mercado ou, em última instância, por via do valor da aquisição, mandar fazer um concurso para fornecimento. Nos casos mais vulgares, a ordem de compra seguia para o mercado, depois de rubricada pelo chefe de contabilidade e pelo presidente do conselho administrativo.

Para facilitar, em cada dia, elaboravam-se todas as ordens de compra e eram sujeitas ao chefe de contabilidade ao mesmo tempo (salvaguardado o caso de urgência).

 

Uma tarde de um dia qualquer, estava a cabimentar as ordens de compra quando topei com uma sem requisição nem entidade requisitante. Propunha-se a aquisição de várias sacas de cimento e várias toneladas de tijolos. Chamei a funcionária responsável pelo circuito de trabalho antes descrito e perguntei-lhe onde estavam as requisições para este material e o justificativo de quem necessitava dele. Ficou muito vermelha, gaguejou e não foi capaz de dizer nada.

Insisti, então já com voz de capitão e chefe. Em tom sumido, respondeu-me:

‒ Foi o senhor coronel quem disse para fazer…

Mandei-a retirar do meu gabinete e, porque deste tinha acesso directo ao do presidente do conselho administrativo, bati à porta e recebi autorização para entrar. Levava na mão a ordem de compra.

‒ Meu coronel, que raio de merda é esta?

Foi assim, sem mais nem menos, que entrei a matar. Tinha de inverter a hierarquia militar, caso contrário ficava na mão do presidente.

O velho coronel titubeou, pigarreou ‒ era asmático ‒ tossiu e disse, com o jeito do menino apanhado a comer o doce do armário:

‒ Não seja assim! Estou a fazer uma casinha e é uma ajuda para a construção.

‒ Não, meu coronel! Coisas destas não se passam enquanto eu for o chefe da contabilidade deste conselho. O senhor devia ter vergonha de ser apanhado por um capitão e de dar a saber, a uma funcionária civil, que anda a fazer falcatruas com os dinheiros do Estado! Rasguei a ordem de compra e deixei-lha na secretária.

 

Tive pena do homem e do ar acabrunhado com que ficou. Nunca mais me tentou aldrabar e eu também nunca voltei ao assunto. Foi como se não tivesse existido.

 

28.07.20

Sonhos nocturnos


Luís Alves de Fraga

 

Há muitos anos que, durante a noite, tenho grandes desavenças com o mundo! Às vezes, chego a viver cenas de pugilato, quando não de tiros.

Acordo cansado, exausto. Depois, durante a manhã, esqueço tudo.

 

Hoje, após cinco ou seis horas de sono profundo, acordei em aguerrida luta verbal com uma turma de alunos universitários, do 1.º ano, sem experiência de ensino superior.

Para além de indisciplinados ‒ eu tentava, quase debalde, impor a ordem na sala de aula ‒ seis ou sete alunos, ‒ um deles um tipo anafado, vermelhusco e exaltado ‒, exigiam que eu explicasse exactamente o que estava no manual (na universidade, há muito, não há manuais), recusando-se a ouvir a minha dissertação.

Esgotei-me a esclarecê-los que, no ensino superior, o professor não explica manuais; disserta sobre o que julga poder ajudar os alunos a despertar para a reflexão e, acima de tudo, para a compreensão crítica do que vão estudar. O professor não quer repetições de conhecimentos; quer gente capaz de discernir, capaz de pelear pela palavra em defesa das suas ideias, indo buscar argumentos às suas leituras, aos seus estudos. A discussão académica não se faz seguindo um guia, nem um feeling, nem uma obsessão como se fosse a disputa sobre as qualidades de um clube de futebol; a discussão académica faz-se admitindo a dúvida, começando e acabando sempre com um talvez seja assim, porque no saber nada é definitivo.

Com a dissertação do professor, os discentes vão aprendendo um processo de expor o assunto em estudo e análise que, normalmente, não é o único, mas é um dos possíveis.

 

A nada se demoviam aqueles alunos rebeldes. Queriam sair da sala. Disse-lhes:

‒ Se saírem, podem ter a certeza, estão reprovados nesta cadeira.

Saíram.

Acordei cansado, transpirado, mas com uma imensa vontade de não esquecer os contornos deste sonho que, nos últimos anos de ensino universitário, quase se tornou realidade em face da incapacidade dos discentes, vindos do secundário, perceberem que haviam subido um degrau, que os distingue dos alunos repetidores de matérias, transformando-os, se tal quiserem, em jovens adultos capazes de pensar por si mesmos.

É esta a fronteira que separa os saberes básicos dos saberes evoluídos.

26.07.20

Fases da minha vida ‒ 47

(O Externato de Santa Bárbara)


Luís Alves de Fraga

 

Em Outubro de 1971, nasceu-me outro filho e o orçamento familiar tinha de ser reforçado. Cabia-me a obrigação de me desdobrar para conseguir um acréscimo, mesmo que pequeno, de dinheiro ao fim do mês.

Já não recordo como, soube de uma vaga num externato, que ficava a meio caminho de minha casa e da DSIC, cujas aulas nocturnas começavam às dezanove horas. Bastava-me sair do serviço quinze minutos mais cedo e conseguia estar a tempo do início das aulas. Desta vez, a proposta era leccionar História aos anos equivalentes àquilo que são hoje o sétimo, oitavo e nono. Era hábito, nos colégios, o professor de História ensinar também Geografia. Foi isso que me propus. Já levava concluídas muitas cadeiras do ISCSPU e sentia-me capaz de enfrentar uma turma de jovens.

 

Devo esclarecer dois aspectos significativos: a frequência destes colégios e quem os dirigia. É necessário para se perceber o que vou contar.

Naqueles tempos, o chamado curso dos liceus dividia-se três partes: o ciclo preparatório, o curso geral e o curso complementar. O ciclo preparatório durava dois anos; o curso geral durava três anos; o complementar dois anos. O curso geral dividia-se em duas áreas: a de letras e de ciências e só era dado por concluído quando o aluno aprovava em ambas as áreas. Só havia exames no final de cada parte.

Estabelecendo a relação com o modelo actual, podemos dizer que os exames se faziam, a nível nacional, no 6.º, no 9.º e 11.º ano.

Qualquer pessoa podia, depois de feitos os dois primeiros anos (5.º e 6.º, na designação actual, ou ciclo preparatório, na designação antiga) propor-se a exame de 9.º ano em uma das secções e, no ano seguinte, na outra. Ou seja, em dois anos lectivos concluía três de frequência normal.

Este sistema representava uma excelente oportunidade de negócio para quem quisesse e tivesse possibilidades (dinheiro e alvará) de abrir um externato (colégio onde os alunos eram externos ao contrário dos internatos), angariar professores com habilitação mínima, pagar-lhes quantias baixas, e reunir um elevado número de alunos a quem cobrava um valor mensal que chegasse para pagar as despesas e obter um lucro razoável.

 

Perto do largo de Santa Bárbara, em Lisboa, na rua Passos Manuel, num rés-do-chão, ficava o Externato de Santa Bárbara, propriedade de um sacerdote católico, despadrado. Foi lá que iniciei a minha experiência civil de leccionar. Turmas grandes, com mais de trinta alunos interessados, quer pela despesa que faziam quer por já não serem crianças, embora a maioria rondasse os dezassete e dezoito anos.

A preparação das aulas ainda me ocupava os serões, pois tinha de ser rápido a explicar, mas capaz de prender a atenção dos alunos, preparando-os o melhor possível para os exames. Fazia testes ou pontos escritos como se dizia na época. Avaliava os alunos e as suas capacidades com ponderação e cautela. Chegado ao mês de Junho, nas últimas provas escritas, ao entregar os resultados, avisei os mais fracos da inutilidade de se apresentarem a exame, pois iriam reprovar, quase de certeza, já que, em matéria de estudos, nunca acreditei em milagres.

Devo confessar, todo esse ano lectivo foi uma bela experiência para alimentar uma vocação que andava perdida nos labirintos de mim mesmo.

 

Estavam a acabar as aulas e fui chamado ao director do externato; queria comunicar-me que eu havia procedido mal ao avisar os alunos do seu mais que previsível insucesso escolar. Fiquei pasmado com aquele recado dado no tom seráfico, mas sibilino, característico dos sacerdotes católicos.

‒ Mas não é para dizer? Devo deixá-los irem a exame convencidos de um sucesso que jamais terão?

‒ Está claro que sim, senhor capitão! É que, se lhes tirarmos as esperanças, para o ano, vão escolher outro externato, porque nunca irão acreditar ser culpa deles, pois a culpa será nossa por não os termos preparado para o exame!

Fiquei estupefacto perante um argumento incapaz de me passar pela cabeça. Ainda tentei argumentar tratar-se de uma desonestidade intelectual esse engano dos alunos.

 

No final do mês de Setembro do ano lectivo de 1971/1972 recebi uma carta do director do externato a dispensar os meus serviços ‒ em boa verdade eu já sabia que, em 1973, marcharia para África para nova comissão ‒ à qual respondi com toda a agressividade, ameaçando-o de denúncia pública e administrativa de desonestidade para com os alunos. Foi uma forma de o assustar e, ao mesmo tempo, não me calar perante uma atitude tão reprovável.

Na volta do correio propunha-me o horário que eu quisesse escolher, um aumento do pagamento da hora em mais cinquenta por cento e contrato por dois anos seguidos. A resposta foi, como não podia deixar de ser, uma recusa em voltar a trabalhar naquele externato.

 

Comecei a aprender que o ensino é, muitas vezes, um mero negócio e que, na vida, um processo de obter segurança passa pela mais reles atitude humana: a chantagem.

25.07.20

Fases da minha vida ‒ 46

(Na verificação de contas)


Luís Alves de Fraga

 

Na DSIC havia uma secção que absorvia nove ou dez oficiais: a verificação de contas. Por lá passavam todos os meses as contas com as despesas e receitas de todas as unidades da Força Aérea do continente e dos Açores. Foi no ano de 1971 ‒ não recordo a data precisa ‒ que recebi ordem para abandonar a chefia da secção de subvenção de família e passar para a de verificação de contas, cujo chefe era um major oriundo de miliciano, incompetente, pedante e, acima de tudo, sabujo. O homem sabia pouco de tudo, mas tinha a particularidade de se rodear de colaboradores com conhecimentos seguros e, através do trabalho deles, chamar a si os louros passíveis de receber. Podia contar histórias bem elucidativas do seu carácter. Chegou a brigadeiro (major-general).

 

Foi com pena que abandonei o cargo anterior, mas a decisão que determinou a transferência foi consequência da grande autonomia que quis introduzir na minha chefia. Usando uma linguagem de hoje, começou a constar que eu andaria em roda livre, comportando-me muito para além das liberdades que eram inerentes à minha graduação: capitão recente. Os meus comportamentos teriam de gerar anticorpos na hierarquia.

Na nova secção, embora sendo capitão, porque mais moderno que um outro, oriundo de miliciano, o meu trabalho era, em tudo, semelhante ao dos alferes e tenente milicianos ali colocados: verificar as contas, somando colunas infindáveis de números e procurando se as despesas estavam bem feitas de acordo com as respectivas rubricas orçamentais, bem como se havia discrepâncias entre a soma das facturas e os respectivos recibos. Em suma, era um trabalho que já havia feito, anos antes, em Lourenço Marques, logo após a minha apresentação na DDSIC.

 

Na grande sala onde trabalhávamos em secretárias umas por trás das outras, formando duas filas, só uma estava virada ao contrário, permitindo ao seu ocupante vigiar o trabalho dos restantes: era a do capitão mais antigo.

Trabalho monótono, silencioso, cansativo, obrigava a que, ao cabo de algumas horas, fizéssemos intervalos, aproveitando para encetar conversas sobre diversos assuntos.

Estavam por lá quatro alferes milicianos, estudantes do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (actual ISEG), significativamente politizados à esquerda. Nesses momentos de pausa, aproveitavam para deixar escapar alguma doutrinação que, para mim, já com leituras feitas nos domínios da ciência política, eram identificáveis na sua matriz marxista. A porta de entrada na política era fácil de encontrar através de comentar os diálogos e as discussões provocadas pelos deputados da Ala Liberal na Assembleia Nacional (designação do Parlamento no tempo do fascismo). Criticavam-se os ultras e, também, o monolitismo de Salazar, aceitando como plataforma de entendimento mínimo a abertura de Marcelo Caetano; dali passava-se à crítica do sistema.

As conversas eram acaloradas, durando, às vezes, mais tempo do que o conveniente. O capitão vigilante movimentava-se na cadeira, olhava para nós, para mim, e soprava quase imperceptivelmente. Jamais se ausentou da sala durante estes diálogos escutados de fio a pavio com toda a atenção. A inexperiência dos alferes e do tenente levava-os a sentirem-se seguros, contudo, porque mais velho, mais conhecedor do meio, eu desconfiei. Atrás da desconfiança veio uma certeza: tinha de desmascarar o capitão. Mas teria de ser de uma forma desconcertante, que o levasse a mostrar jogo.

 

Certa tarde, na pausa costumeira, iniciou-se a conversa habitual e eu, ao contrário de alimentá-la com mais dados e mais argumentos, comecei a opor-me ao que se estava a afirmar, contrariando os alferes, que me olhavam espantados e diziam, quando podiam:

‒ Mas, senhor capitão, ainda ontem…

Até que, bruscamente, interrompi e, fazendo voz exaltada, disse qualquer coisa à volta do que escrevo de memória:

‒ Pois olhem, não concordo nada com o que estão para aí a dizer! Acho incrível que ponham as questões nesse pé. Para mim, se governasse, mandava substituir a estátua do marquês de Pombal e em seu lugar punha a de Salazar, um grande político e um grande estadista!

Gerou-se silêncio na sala. Os alferes olharam para mim com ar de espanto sem perceberem se eu tinha enlouquecido ou se estava a gozar. Mas o meu semblante fechado, tal e qual como me habituara a fazer, nos meus anos de Pupilos e de Academia Militar, quando estava a praxar, levou-os a acreditar nas minhas palavras. Trocaram olhares entre si e embrenharam-se no trabalho.

Ao cabo de dez minutos o capitão vigilante levantou-se passou pela minha secretária e, baixinho, pediu-me para ir ter com ele a um dos gabinetes contíguos.

 

Um ou dois minutos depois, levantei-me e lá fui. Fechou a porta e disse a frase que jamais esqueci:

‒ Fraga, fez muito bem em destacar-se dos alferes. Eu sou o oficial de segurança da Direcção (eu desconhecia) e passam-me pelas mãos os relatórios sobre o pessoal. Os alferes são todos politicamente suspeitos (designação usada, na época, para identificar os militares que não ofereciam confiança ao regime, o mesmo é dizer à PIDE/DGS) e basta que ponham o pé em ramo verde e vão parar ou a África ou ao presídio militar.

Olhei para ele e disse-lhe, porque não nos tuteávamos:

‒ Obrigado pelo aviso, meu caro F. Tomarei cautela e providências.

Saí e fui até ao bar beber um café.

Na hora de fim do serviço, sorrateiramente, disse a um dos alferes para se encontrar comigo num café distante da zona.

 

Meia hora depois, vestido à paisana, como era evidente, estava no café à espera do alferes.

Ao sentar-se à minha mesa estava com um ar comprometido. Expliquei-lhe, em poucas palavras a razão da minha tomada de posição e ele, com um sorriso nos lábios disse-me:

‒ Pensámos que tinha ficado louco ou que nos tinha andado a enganar todo este tempo.

Em seguida, contei-lhe a conversa com o capitão e todas as suspeitas que pendiam sobre eles. Avisei-os que as nossas conversas políticas tinham de passar a ter lugar fora do serviço. Agradeceu-me. Saímos e fomos para nossas casas.

Dias mais tarde convidaram-me, para assistir à primeira conferência feita na clandestinidade, numa cooperativa, que havia recebido ordem para encerrar as portas. Era mesmo na entrada para a praça Marquês de Pombal. Fui e gostei.

Mas eu já não era um oficial de confiança. A minha situação na DSIC não estava segura e, se calhar, numa estratégia de separar o que devia ser separado, fui mandado apresentar no Comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto, para assumir o cargo de chefe de contabilidade nas instalações que estavam na área do aeroporto de Lisboa, no, então, Aeródromo-Base n.º 1.

23.07.20

Fases da minha vida ‒ 45

(Subserviências e favores)


Luís Alves de Fraga

 

Na secção de subvenção de família, que chefiava desde Fevereiro de 1969, aprendi a importância de saber lidar com jovens de idades compreendidas entre os dezoito e os vinte três anos. Jovens protegidos por alguém da hierarquia da Força Aérea ou mesmo do aparelho do Estado. Para não perder a mão sobre eles havia que desenvolver um tipo de liderança que lhes fosse agradável, sem deixar de ser responsável, fazendo-lhes sentir o peso do dever. Mostrar-lhes que eu era importante para eles e eles importantes para mim e para as contas que tinha de prestar superiormente.

Consegui, realmente, ao fim de alguns meses, conquistar o meu pessoal. Acho que fiz escola, pois, muitos anos mais tarde, alguns deles confessaram-me a admiração pela minha liderança democrática onde, a par da liberdade, havia o sentido da responsabilidade.

Porque, até ao ano de 1971, não tive nenhum oficial a coadjuvar-me, procurei detectar no meio daqueles pseudo operários das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), um que fosse completamente aceite pelos restantes e tivesse sobre eles o ascendente necessário para ser a correia de transmissão entre mim e todos os outros. Informalmente o CL passou a ser o meu adjunto. Tomava algumas decisões sobre áreas previamente definidas por mim, nomeadamente a centralização dos pedidos e reclamações do pessoal. Assim, a última instância sobre eles era eu, que assumia, perante os meus chefes, a responsabilidade de tudo.

 

Talvez, ainda, em 1969 ou início de 1970, num dia que já não recordo, fui chamado ao gabinete do subdirector ‒ coisa rara nessa altura, pois ainda não havia sido chefe da secretaria e o coronel não era aquele já por mim referido lá para trás ‒ ordem que cumpri de imediato.

Ao entrar no gabinete dou de caras com um jovem guedelhudo ‒ cabelo farto a bater-lhe pelos ombros ‒ alto, com casaco grená de bombazina, ar simpático, desportivo e um sorriso nos lábios.

‒ Faça favor, meu coronel.

‒ Olhe, Fraga, apresento-lhe o ZN, filho do comandante N que vem trabalhar para a sua secção.

Contive-me, a muito custo. Então era chamado ao gabinete do subdirector da DISIC, para receber um funcionário civil, guedelhudo, e protegido das altas esferas? Era mais um!

Nunca tinha ouvido falar no comandante N, nem me preocupava muito com isso. Mas que ali havia merda, lá isso havia!

No elevador não troquei palavra com o indígena, nem o olhei de frente. Chegado ao meu gabinete chamei o civil que me servia de adjunto e dei-lhe as indicações necessárias para pôr a trabalhar o artista e que não me chateasse nos próximos tempos.

 

Procurei averiguar quem era esse tal comandante N e fiquei a saber que se tratava de um antigo oficial de Marinha, que se separara, havia muito tempo, da vida militar, e, na altura, possuía uma empresa que, junto de França, comprava os helicópteros e os aviões para a Força Aérea Portuguesa!

Continuei a não querer conversas com a criatura até que, talvez ao cabo de várias semanas ‒ e não foram poucas ‒ o civil meu adjunto informou-me que o guedelhudo já estava a trabalhar e era um bom funcionário. Com algum receio, tentou saber o motivo do meu voto ao ostracismo da criatura. Expliquei-lhe a minha relutância e ele, apaziguador e com sentido diplomático, fez a defesa do recém-chegado… Era só aparência, porque queria trabalhar como todos os restantes!

Alguns dias depois, mandei-o chamar ao gabinete e comecei por lhe dizer:

‒ Não estou habituado a receber e transportar os meus funcionários! Não gostei da atitude do subdirector e não espere tratamento especial!

Com simpatia no rosto explicou-me que também ele não gostava daquele tratamento, que já acontecera antes num banco onde trabalhara, e não contava com nenhuma benesse, por ser filho de quem era.

Com o rodar dos meses conclui que era um excelente funcionário, uma simpatia, disponível para todos os serviços e pretendia afirmar-se pelo seu valor e não queria viver à sombra do papá. Ficámos bons amigos.

Muitas vezes, é o proteccionismo dos pais, quem estraga os filhos e lhes macula o futuro.

 

Como já disse, morava, nesses anos da década de 70 do século XX, na rua da Verónica, mesmo em frente do liceu Gil Vicente. Por regra, desde sempre, sempre liguei pouca importância aos vizinhos próximos ‒ do prédio ou da rua ‒ e, por isso, sem quebra de boa educação, não lhes fixo a cara. Ultrapassada esta introdução, regressemos à secção de subvenção de família na DSIC.

Pela passagem à disponibilidade de um dos cabos amanuenses surgiu lá um outro, bem parecido e com declarado desejo de ser engraçado, tipo malandreco de Lisboa, embora vivesse no Barreiro.

Poucos dias depois de se ter apresentado já fazia constar que era primo do juiz delegado do Ministério Público no tribunal plenário, chamado da Boa-Hora, em Lisboa. Tratava-se, quase de certeza, da mais sinistra figura daquele famigerado tribunal; era, em última instância, o magistrado que dava cobertura à acusação da PIDE/DGS.

Ao cabo de um mês ou dois de por lá andar o cabo C ‒ o primo do juiz ‒ recebi, em casa, numa noite, o telefonema do juiz CS que me tratou com todos os salamaleques e fez-me saber que éramos vizinhos, pois morava no prédio exactamente ao lado do meu. Pediu-me para o receber em casa. Que viesse.

 

Depois das formalidades sociais habituais ‒ era talvez dez anos mais velho do que eu ‒ deu-se a conhecer como primo do cabo amanuense C, que, sendo casado e com um filho muito pequeno, tinha sérias dificuldades financeiras, pelo que ele, juiz, lhe arranjara emprego numa muito conhecida empresa de construção civil, onde trabalhava de manhã para angariar um pouco mais de dinheiro. Em face de uma situação tão precária, vinha pedir-me se o poderia dispensar uma semana, em cada mês, para angariar mais ordenado na empresa.

Estava ali, pensei, a minha oportunidade de ouro!

Depois de lhe ter manifestado estranheza pelo pedido que me fazia, afirmei, textualmente, «espanta-me o sentido de equidade de um magistrado, por não ver quanto injusto eu estaria a ser para com os outros três cabos sob as minhas ordens, se acedesse ao seu desejo».

Acho que ele esperava tudo, menos esta resposta. Hesitou, gaguejou, vacilou e, depois de o ver bem encostado às cordas, respondi-lhe:

‒ Deixe-me pensar no assunto, para encontrar uma solução justa para toda a gente.

Desfez-se em agradecimentos, enquanto acabava de beber o copo de uísque que lhe havia servido, e, com cumprimentos exagerados, regressou ao seu apartamento no prédio contíguo.

 

No dia seguinte, no serviço, chamei o cabo C e dei-lhe um tremendo raspanete, acabando a perguntar-lhe se ele achava justo para os camaradas os benefícios que pretendia exclusivos para si. Não foi capaz de me responder.

Fui à sala grande onde todos trabalhavam e contei, com alguns pormenores, o pedido que me havia sido feito pelo juiz, primo do cabo C. Depois, recordei-lhes que os civis ganhavam oitenta escudos por dia e os cabos oitenta escudos por mês.

Chamei ao meu gabinete o civil meu adjunto e expus-lhe o meu projecto, que se resumia ao seguinte: como cada mês tem quatro semanas em cada uma estava dispensado, por mim e à minha exclusiva responsabilidade, um cabo, desde que os civis e os cabos restantes garantissem o trabalho do dispensado e não houvesse atrasos de qualquer espécie. Ele que se reunisse com o restante pessoal e apurasse se havia concordância, pois bastava um não aceitar e nada disto se faria.

Meia hora depois regressou ao meu gabinete e disse-me que havia unanimidade de votos.

 

Quando o juiz CS me telefonou a agradecer, tive oportunidade de lhe dizer que, para mim, a justiça é sempre equitativa e sem favores especiais. Acabou por se tornar visita regular de minha casa, embora sabendo quanto eu não concordava com o regime. Isso será motivo para, mais à frente, voltar a esta estranha figura.

20.07.20

Fases da minha vida ‒ 44

(Na chefia da secretaria ou a vantagem de ser maluco)


Luís Alves de Fraga

 

Num mês, que já não consigo precisar, do ano de 1970, era subdirector da Direcção do Serviço de Intendência e Contabilidade (DSIC), agora já coronel, o tenente-coronel que, em Lourenço Marques, me havia convidado a ser delator de uma conjura contra ele e só existente na sua cabeça. O homem vira compensados os seus esforços de sabujice, alcançando o segundo posto mais elevado na nossa especialidade, mas continuava a ser desconfiado e incompetente.

Eu mantinha-me na chefia da secção de subvenção de família ‒ de dia para dia aumentava o número de beneficiários e, por conseguinte, de trabalho ‒, a aproveitar as manhãs para estudar e um curto serão para fazer crónicas para os jornais com quem colaborava graciosamente. O tempo, em todas as alturas do dia, estava bem ocupado.

 

Na chefia da secretaria da Direcção havia sido colocado, havia pouco tempo, um velho capitão do serviço geral, com residência no Norte do país e, consequentemente, com grande desejo de se ver transferido para a Base Aérea de S. Jacinto, próxima de Aveiro.

O homem choramingava, em todas as oportunidades, a sua infelicidade: Lisboa em vez de Aveiro!

Nunca ninguém fez nada por ele, nunca ninguém lhe prometeu o que quer que fosse.

Velho militar, com muito calo nos pés criado pelas botas de marchar, em face da ineficácia das suas lamúrias, empenhos e muito mais que não sei, optou por uma solução radical: num domingo à noite baixou ao Hospital Militar do Porto com queixas de natureza nervosa. Claro que, passados dias, teve alta para convalescer em casa! Estava nas suas sete quintas. Lisboa e a secretaria da DSIC que se lixassem. A incompetência e inabilidade do subdirector haviam deixado chegar as coisas ao extremo.

Mas, a incompetência do subdirector associada ao desleixo do brigadeiro (equivalente hoje a major-general) director, encontrou uma solução óptima para quem não quer resolver nada, mas quer ter quem faça as coisas!

Vejamos.

 

Uma bela tarde sou chamado ao gabinete do coronel subdirector.

‒ Tenente Fraga, como sabe, estamos sem chefe de secretaria. Ora, eu e o nosso director, lembrámo-nos de o nomear interinamente para o lugar, atendendo à sua versatilidade e aos bons serviços que vem desempenhando. Assim, ficará em regime de acumulação.

‒ Meu coronel, eu nada sei de serviço de secretaria!

‒ Não tem importância, porque tem lá pessoal civil e militar que dá boa conta do assunto!

 

Foi deste modo que um capitão do serviço geral, manhoso, invocando desequilíbrio mental e exaustão, empurrou um, já antigo, tenente de administração para também ser chefe de secretaria.

Apoiei-me, realmente, numa das funcionárias civis em serviço há muitos anos na secretaria e num cabo amanuense, desenrascado, praticante amador de luta greco-romana. Toquei o serviço para a frente, sendo que, ao fim da tarde deixava a pasta de despacho no gabinete do subdirector para ele assinar ou encaminhar o que devia ser encaminhado no resto das horas de serviço e no começo da tarde do dia seguinte.

A nomeação era provisória e, esperava eu, com a duração de uma ou duas semanas. Mas foi-se prolongando e já levava quase um mês de acumulação e nada de haver notícia de novo chefe de secretaria.

As respostas às minhas constantes insistências junto do coronel batiam na sua já mais do que conhecida incompetência e subserviência perante o director. A coisa ia eternizar-se. Ora, deste modo, o meu respeito ‒ que já era pouco ‒ pelo subdirector diminuía, de dia para dia, a olhos vistos.

 

Certa tarde, quando lhe levei a pasta de despacho, o coronel começou com uma das suas célebres arengas, cujo fim era imprevisível. Ele sentado por trás da secretária e eu, na sua frente, de pé, a escutá-lo sem qualquer tipo de interesse. O tipo era um chato!

Já cansado de o ouvir, a pensar no trabalho que me esperava na minha secção ‒ trabalho a ser feito sem atrasos ‒, passou-me pela mente a vontade de mandar o homem à merda. Contive-me, mas saltou-me a frase:

‒ O meu coronel dá-me licença?

‒ Diga, diga Fraga…

‒ Não, dá-me licença que saia?

Sem ouvir a resposta, voltei costas e retirei-me rumo ao meu gabinete, na secção de subvenção de família!

 

Decorreu mais uma semana, talvez, e, numa bela tarde, através de um ofício da Assistência aos Tuberculosos das Forças Armadas, verifico que devia ser passada guia de marcha para um determinado major ir ao Hospital Militar de Doenças Infecto-Contagiosas (HMDIC) fazer uma microrradiografia. Dei ordem ao cabo amanuense para escriturar a guia de marcha para o tal major ir fazer a micro. Ele dactilografou e eu meti na pasta de despacho, sem olhar, porque, pela rotina, estaria certa com certeza.

No dia seguinte, ao chegar à secretaria já lá tinha de volta a pasta de despacho do subdirector e vejo, preso, na guia de marcha, com um clipe, um pequeno papel onde, textualmente, dizia o coronel: «Micro, décima milionésima parte do milímetro. Se o senhor major Fulano não vai fazer a décima milionésima parte do milímetro, que coisa pequena vai fazer o senhor major?»

Passei-me e arranquei direito ao gabinete do subdirector, levando na mão o papelito.

Entrei e, sem o cumprimentar, disse-lhe, exactamente:

‒ Meu coronel, para escrever isto o senhor teve de ir ao dicionário! E, se foi, é porque tem muito tempo para tal, pois eu nem tempo tenho para me coçar. Dá licença que me retire?

Virei costa sem olhar para a cara de parvo do subdirector… Porque só podia ser essa a cara dele!

Cheguei à secretaria e, estendendo o braço direito por cima do tampo da minha secretária, atirei com tudo para o chão, ao mesmo tempo que dizia:

‒ Também tenho direito a estar maluco!

O pessoal, todo o pessoal, ficou boquiaberto com a minha atitude. Saí direito ao meu gabinete, na secção de subvenção de família, onde fui trabalhar.

 

No dia seguinte, por volta das catorze horas, pedi à minha mulher para telefonar para a secretaria da DSIC, informando que eu me encontrava doente e que ia consultar um psiquiatra, não sabendo quando regressaria ao serviço.

Fiquei uma semana em casa a estudar. Quando me apresentei, fardado a rigor, fui recebido pelo director, tipo pequenino, vermelhusco, com ar velhaco, que me disse estar eu vergonhosamente substituído na chefia da secretaria pela funcionária civil!

Não lhe respondi, tal e qual como não respondeu o capitão do serviço geral que, repimpadamente, estava em casa, no sítio onde lhe convinha.

 

Para o resto da minha vida militar ficou-me uma lição: fazer de doido, algumas vezes, dá um excelente resultado!

19.07.20

Fases da minha vida ‒ 43

(A primavera marcelista: impressões)


Luís Alves de Fraga

 

Para se conseguir explicar certas situações temos, por vezes, de nos socorrer de exemplos aparentemente sem sentido. Hoje, começo dessa maneira.

 

Imagine o leitor que é um passarito daqueles canoros que se prendem numa gaiola com liberdade bastante limitada. Imagine que, ao fim de muito tempo ‒ meses ou anos ‒ o dono do passarito leva-o e à gaiola para uma pequena divisão da casa, sem janelas e com uma porta minúscula. Leva-o e abre-lhe a portinhola da gaiola. E o leitor, habituado ao limitado espaço da sua prisão, nem quer acreditar que, agora, pode voar muito mais, muito mais… na limitação da pequena divisão da casa. E, desse modo, tem de agradecer ao seu dono. Agradecer e, de certa maneira, sentir um profundo reconhecimento, até porque ele, na limitada divisão, colocou mais poleiros, mais alpista, música e vem diversas vezes ao dia visitá-lo para conversar consigo. Que dono maravilhoso!

O leitor vai demorar algum tempo a perceber que a única coisa feita pelo seu dono foi alargar-lhe a gaiola e criar-lhe ilusões!

Chega de dar largas à imaginação.

A primavera marcelista foi, mutatis mutandis, o exemplo do passarito na gaiola!

 

Passo a explicar.

Salazar, nas estórias contadas em voz baixa nos cafés de Lisboa, era conhecido pelo senhor Esteves, por um simples motivo: nunca se anunciava a ida dele a qualquer lado; noticiava-se a sua pretérita estadia em algum sítio! Vivia fechado no palacete de S. Bento (depois do atentado de que, por mero acaso, saiu vivo), rodeado pela governanta, as criadas ‒ como se dizia na época ‒ e um ou outro ministro a quem mandava chamar ou que o procurava para obter concordância com algum aspecto duvidoso. Salazar era uma sombra. Quando falava em público usava uma linguagem de cátedra servida por uma construção gramatical correcta, mas ultrapassada.

Caiu da cadeira e foi substituído por um professor da Faculdade de Direito, que usava a seguinte expressão para incentivar a criatividade dos seus alunos: «Os senhores podem dar as definições que quiserem, desde que digam exactamente o mesmo que as minhas».

Um verdadeiro democrata no exercício da sua função docente!

 

Quando assentei arraiais, em Fevereiro de 1969, vindo de Moçambique, Marcelo Caetano levava uns meses de governação e, nesse tempo, já tinha conseguido que os passaritos, que éramos, nos sentíssemos livres no quartito transformado em nova gaiola.

‒ Como é que o fez?

Muito simples: mudou as moscas! E nós nem demos por isso…

Num país onde o governante durante dezenas de anos raramente aparecia para se deixar ver em público, Marcelo Caetano, de quando em quando, passa a ir aos estúdios da televisão e tem uma conversa ‒ por acaso era um monólogo ‒ em família. Isto é, dá-nos importância! Uma importância estabelecida por ele, mas que era muita para quem não a tinha há muitos anos ou nem sequer a havia conhecido, como foi o caso da minha geração. Parecia-nos que vinha prestar contas à nação!

 

Uma das primeiras mudanças mais evidentes, que marcaram a primavera foi a alteração do nome do célebre elemento de repressão do Estado Novo, a PIDE (Polícia de Internacional e de Defesa do Estado), para DGS (Direcção Geral de Segurança). Uma outra foi a mudança da designação do partido único ‒ União Nacional ‒ para Acção Nacional Popular. Tratava-se de uma declarada tentativa de converter o partido de apoio de Salazar num esteio à sua própria pessoa. Esqueceu, no entanto, que o saudosismo pelo chefe anterior ia perdurar para além dos tempos. Na verdade, foram mudanças de nomes. Tudo o mais se manteve, nesta operação de maquilhagem da velha ditadura fascista.

Não tão imediatamente evidente foi o abaixamento do nível da censura prévia. Nos jornais, nos filmes e nas peças de teatro sentiu-se uma nova liberdade, que, dito de outra maneira, não era liberdade, mas menor prisão. Podiam-se abordar temas até então impossíveis de debater. Eram questões, realmente, menores, todavia, na altura, surgiram-nos como maiores.

Foi gozando dessa pequena abertura censória que algumas editoras arriscaram a publicação de livros quase impossíveis de verem a luz do dia em tempos de Salazar. Talvez a chancela que mais se destacou pela ousadia tenha sido a Dom Quixote, com a Snu Abecassis à frente. Ao olhar o catálogo do começo dos anos 70 do século passado temos uma visão completamente nova das traduções surgidas. E fez mais, para prevenir as apreensões, tão vulgares anos antes: começou a publicar através do sistema de subscrição, nomeadamente os livros da colecção Cadernos Dom Quixote, remetidos para casa em encomenda postal. Muitos, quase de seguida, foram proibidos. Mas eu tive-os todos!

 

Seguiram-se aos livros alguns jornais, dos quais recordo o Comércio do Funchal e o Jornal do Fundão. Qualquer deles tornou-se referência para quem não concordava com a ditadura. Em Janeiro de 1973, surgiu o jornal Expresso que, na grande imprensa, constituiu uma lufada de ar fresco, por causa da ousadia dos temas tratados. Nas revistas, recordo a Vida Mundial, dirigida pelo democrata e combatente antifascista Carlos Ferrão.

 

Todavia, a marca da primavera marcelista foi-nos dada pela integração de cerca de trinta novos deputados na Assembleia Nacional, que procuraram fugir à passividade bovina do suposto Parlamento da ditadura. Chamaram-lhe Ala Liberal.

Foram figuras de topo desse movimento renovador ‒ porque é importante perceber que estes liberais não punham, nem puseram, em causa o modelo corporativo/fascista do Estado Novo e, por isso, não foram nem oposição nem antecessores do PPD/PSD, como agora se quer fazer crer ‒ Francisco Sá-Carneiro, Francisco Pinto Balsemão, Miller Guerra, Mota Amaral, Magalhães Mota e Pinto Leite, entre outros de menor destaque.

Para se perceber o que foi a Ala Liberal tem de se tomar boa conta num aspecto básico: nunca esteve nos objectivos destes políticos, nessa altura ainda jovens, uma mudança do modelo de governação; o que os animava não era a contestação da estrutura, mas os métodos usados para sustentá-la. Assim, estavam em causa as prisões e os maus tratos e jamais a polícia política; o rigor da censura e jamais o fim da mesma; as condições como se fazia a guerra e jamais a própria razão do estado de guerra.

Evidentemente, este movimento dito liberal tinha de produzir efeitos tanto à direita como à esquerda. À direita, porque obrigou a um endurecimento dos defensores do antigamente, à frente dos quais, na Assembleia Nacional, estavam Casal Ribeiro e Henrique Tenreiro, que, até aos últimos dias do regime, se bateram pelo refortalecimento das posições do Governo contra a contestação dos liberais. À esquerda, comprovou a incapacidade do fascismo português se reformar, caminhando para uma solução democrática. Foi daqui que surgiu a convicção, que se espalhou às Forças Armadas, da necessidade de derrubar pelas armas a caduca ditadura.

 

O quadro que acabo de traçar não é fruto de uma posterior análise da situação; é, digo-o sem receio de falsear seja o que for, o resultado daquilo que fui sintetizando entre Fevereiro de 1969 e Fevereiro de 1973. Nesta última data eu já pensava assim, embora não pudesse ser tão claro como acabo de ser.

Mais à frente, vou explicar como cheguei a esta visão e compreensão da situação.

18.07.20

Fases da minha vida ‒ 42

(Tempo e local de estudo)


Luís Alves de Fraga

 

Após a matrícula no ISCSPU tive a grata surpresa de saber que, sendo aluno voluntário, isto é, não obrigado a assistir às aulas, gozava, embora fosse oficial do quadro permanente, das mesmas facilidades e regalias que haviam sido legisladas para os militares milicianos regressados das colónias: fazer exame fora da época apropriada, bastando para tal um simples requerimento a solicitar a formação de um júri para a cadeira à qual se desejasse ser sujeito a avaliação.

Conheci médicos, advogados e outros licenciados que concluíram os cursos em modo acelerado, pois papavam cadeiras atrás de cadeiras, com preparações de poucos meses entre cada uma. Do ponto de vista da recuperação do tempo gasto no serviço militar nas colónias era um extraordinário benefício, mas, olhando por outro prisma tal benefício, percebemos que o Governo, a universidade e todo o sistema de ensino estava a compactuar com o facto de o exame ser um pro forma e não uma demonstração de saber, pois, o mesmo era dizer: prestem provas, independentemente de terem conhecimentos consolidados.

Usei este benefício para me sujeitar à avaliação depois de ter esgotado toda a bibliografia aconselhada e saber as matérias muito para além do conteúdo das sebentas.

 

O meu tempo para estudo começava, nos dias de semana, por volta da nove da manhã e acabava ao meio-dia. Porque morava na Graça, e ainda não tinha automóvel próprio, ia de eléctrico até aos Anjos, mais em concreto até junto ao antigo cinema Lys, para me instalar na mesa de um velho café com história: o Colonial. História, porque ali havia almoçado Amílcar Cabral após o primeiro casamento com a colega de curso de agronomia, Maria Helena Vilhena Rodrigues, natural de Chaves. E a ementa só constava de dois pratos: um bom prego com batatas fritas e ovo a cavalo ou o celebérrimo bacalhau à Brás.

Ao sentar-me à mesa, o empregado já sabia o que me servir: um café e um marino, também especialidade da casa. Foi ali, no silêncio de um estabelecimento onde, àquela hora do dia, só estavam alguns reformados ou gente de passagem, que preparei uma parte dos meus exames, lendo, sublinhando e anotando as sebentas e os livros, que comprava em primeira ou segunda mão. Sem pressa, ia deglutindo o saber. Voltava atrás para compreender melhor, para relacionar, para extrair sínteses.

 

Depois de ter feito, fora de época, um ou dois exames, percebi coisas sobre o ensino universitário daquele tempo: tinha de memorizar nomes de autores, pois não bastava papaguear o que disseram ou defenderam; era mais importante repetir o saber dos professores do que o meu entendimento da matéria.

Entre Novembro de 1969 e Dezembro de 1972 fui estudando e crescendo intelectualmente. Porque tudo aquilo era um acessório na minha vida, perdi toda a ansiedade sobre o fim do curso. Acabava quando acabasse, por isso, nas férias de Páscoa e nas de Verão andava com os livros de um lado para outro, com os cadernos das sínteses (sem o saber, já fazia fichas de leitura, por onde revia as matérias antes das provas) para entrar, muito para além do exigido, nas metodologias próprias das ciências sociais e das ciências políticas, que me encantavam. Foi nesses anos que percebi a mais-valia de não ter optado pelo curso de História, pois lá só iria aprender o passado; um passado morto. Contudo, nas ciências políticas e sociais, a História ganhava vida, porque provava a acção, através de olhá-la com as justificações de quem busca a verdade ou, no mínimo, uma verdade. A História é um saber que auxilia a ciência política quando se quer trabalhar em termos justificativos, mas, curiosamente, a ciência política ou, melhor dito, a sua metodologia tomam o papel de auxiliar quando se quer fazer História, porque permite dar-lhe a cor da vida em plena acção.

 

Nesses anos, porque o tempo era sempre pouco para estudar aquilo que me apaixonava, deixei de ler ficção. Na mesa de cabeceira já não estava o romance, como nos anos posteriores à saída da Academia Militar, mas o livro de ensaio que me dava perspectivas sobre isto ou aquilo que andava a explorar naquele momento.

Curiosamente, foi nessa altura que deixei de saber ler romances, porque passei a mastigar as palavras de modo a compreender o que está para além delas. Na maioria das vezes, a ficção vive das emoções veiculadas pelas palavras enquanto o ensaio vive da apreensão das ideias cujo suporte são as palavras.

 

Deixei de estudar para satisfazer aos condicionalismos universitários, no começo do ano de 1973, porque soube da minha próxima nomeação para África. Faltavam as cadeiras equivalentes a um pouco mais de um ano para concluir o curso. Havia aprendido e conseguira os resultados possíveis para quem frequentava pouco as aulas e não tinha muito tempo para estudar.

Recordo-me de ter pensado: no regresso logo acabarei, se ainda houver este curso!

16.07.20

Fases da minha vida ‒ 41

(Impressões sobre a universidade)


Luís Alves de Fraga

 

O ensino universitário em Portugal, até ao fim dos anos 70 do século XX foi, na maioria das vezes, frequentado por jovens provenientes de camadas sociais com amplas ou médias posses financeiras. Assim, entre os estudantes e o regime político salazarista não houve desacordo ou desentendimento, porque o sistema favorecia quer os pais, que pagavam os estudos, quer os filhos, que garantiam, com o diploma, um emprego na panóplia das possibilidades existentes, então, no país.

Houve momentos de sobressalto, até ao ano de 1961, entre os estudantes universitários e os poderes constituídos, mas foram poucos e muito pontuais,.

Era criança e não me recordo, o primeiro desaguisado entre os estudantes universitários e o Estado Novo ocorreu no final da 2.ª Guerra Mundial, quando a oposição, esperançada na queda de Salazar e da ditadura, criou o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e o MUD Juvenil. Houve saneamentos de professores, alguns deles bastante consagrados, e de estudantes, que ficaram incapacitados de concluir os cursos.

Durante a década de 50 não tenho memória de ter havido contestação juvenil organizada contra a ditadura. Se existiu foi pontual e muito bem silenciada.

 

A eclosão da guerra colonial, em Março de 1961, associada ao efeito de borboleta das eleições presidenciais de 1958 ‒ onde o general Humberto Delgado, um homem do regime se rebelou contra o sistema ‒ e da tentativa de golpe palaciano de Abril para solucionar a questão ultramarina, geraram condições para se iniciar uma larga contestação nas universidades portuguesas (só existentes em Lisboa, Coimbra e Porto). Se quisermos ir um pouco mais fundo na análise da revolta estudantil não a podemos dissociar de dois elementos, um de carácter social e outro de natureza política. Vejamo-los.

 

Socialmente, o acesso ao ensino universitário tornou-se mais possível e mais apetecível a filhos de famílias com rendimentos menos abundantes, aumentado o número de alunos identificados com franjas sociais financeiramente débeis e, por conseguinte, passíveis de compreender os motivos de qualquer contestação.

Politicamente, a dividida oposição ao regime entre democratas liberais e comunistas, no final dos anos 50, deu origem ao surgimento de células partidárias muito agressivas de matriz maoista, lineares na concepção e na ideologia, as quais tomaram de assalto a juventude universitária, combatendo em duas frentes: uma, contra o regime e, outra, contra a tentada hegemonia do Partido Comunista.

Era este o quadro de contestação ‒ aumentado pelos acontecimentos de Maio de 1968, em França ‒ quando, em Outubro de 1969, entrei no ISCSPU.

 

Preponderava, como figura de proa, no Instituto, o professor Adriano Moreira, antigo ministro do Ultramar. A ele se deviam as reformas feitas nos cursos e, muito especialmente, o leque de cadeiras leccionadas.

Na verdade ‒ confirmado muitos anos depois pelo próprio ‒, Adriano Moreira tinha um sonho para o Instituto: fazer dele a Escola de formação de quadros políticos de Portugal. Não seriam só quadros administrativos para as colónias; seria gente capaz de gerir politicamente um país submetido a uma ditadura corporativa de matriz fascista, mas carecida de funcionários com conhecimentos no âmbito das ciências sociais e das ciências políticas. Qualquer coisa à semelhança de certas escolas de grande gabarito existentes em França. Naturalmente, este sonho era isso mesmo, um sonho, porque, nem em Portugal havia democracia, nem os mestres e, menos ainda, os alunos tinham preparação para alcançarem os níveis gauleses. Contudo, no ISCSPU, leccionavam-se matérias ainda não experimentadas noutros cursos universitários nacionais.

 

Talvez, exactamente, por pretender ser uma escola de quadros políticos, o ISCSPU tinha um corpo docente onde imperavam alguns dos ultras do regime. Recordo a figura sinistra do professor Silva Cunha. No entanto, albergava cientistas sociais como, por exemplo, o professor Jorge Dias, antropólogo de renome internacional.

Sem dúvida, as aulas que concitavam uma maior assistência eram as do professor Adriano Moreira, não só pela forma como expunha os assuntos, mas pelo conteúdo das mesmas. Sabia separar, dentro dos limites do possível e de acordo com a época ‒ estamos a falar de factos passados há meio século ‒, a posição política do antigo ministro de Salazar da do mestre que procura isenção e, acima de tudo, que se não exime a tratar com carácter científico temas usualmente examinados com elevada carga propagandística e distorções ideológicas. O anfiteatro enchia-se para acompanhar o raciocínio do professor quando expunha o conteúdo da cadeira de Teoria e Ideologias Políticas.

Embora sem brilho, as aulas de Geopolítica, de cuja exposição se encarregava o professor Políbio Valente de Almeida, eram muito frequentadas, por causa da matéria. Realmente, através do estudo das diferentes teorias e escolas geopolíticas, adquire-se uma nova perspectiva das relações políticas entre Estados, regiões e poderes. É uma janela para o passado, mas, acima de tudo, para o futuro.

Depois, a Antropologia Cultural ‒ outra cadeira nova entre nós ‒ constituía um excelente processo para perceber ‒ quem quisesse perceber, está claro ‒ que, na espécie humana, todas as diferenças são só e somente do âmbito cultural. A ela devo a ausência de preconceitos rácicos.

Outras cadeiras inovadoras iam da Sociologia à Ciência Política, incluindo conhecimentos capazes de se tornarem instrumentos para desbloquear o outro lado da ditadura, deixando à mostra a democracia.

 

Ainda que se usasse, como meio de aquisição de conhecimentos o velhíssimo sistema de apontamentos ou sebentas para responder às questões colocadas pelos professores nos exames, do que mais gostei foi das longas listas bibliográficas fornecidas pelos docentes. Fiz, na minha preparação, aquilo que quase ninguém, na altura, fazia: li a maior parte das obras indicadas. Assim, o meu saber não ficou limitado ao que o docente considerava como essencial; aumentei em muito a minha bagagem intelectual.

Uma nova forma de estudar e de aprender abriu-se-me de par em par. Por outro lado, como era aluno voluntário ‒ em oposição aos ordinários, os que acompanhavam as aulas com regularidade ‒ e não andava na universidade para me integrar num grupo político, todo o movimento estudantil passou-me à margem. Foi, dois anos mais tarde, fora do Instituto, que eu fiz uma grande abertura política e, curiosamente, para que tal se tornasse possível encontrei nas matérias estudadas a melhor das bases para a minha afirmação democrática.

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