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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

29.06.20

Fases da minha vida ‒ 30

(A messe de sargentos)


Luís Alves de Fraga

 

Na cidade da Beira, a messe de sargentos da Força Aérea dividia-se por dois prédios distintos: o Bucelato e o Impala, este em frente do cinema Nacional. O segundo edifício pertencia todo à Força Aérea, contudo, o primeiro já não.

O prédio Bucelato tinha quatro pisos, sendo que o primeiro estava ocupado com escritórios, consultórios médicos e gabinetes de advocacia; os três restantes eram alojamento de sargentos casados, sem filhos, e solteiros ou sem família. Cada apartamento era constituído por uma antecâmara, onde cabiam uma mesa e quatro cadeiras, e um amplo quarto com vista para a praça Caldas Xavier. Por lá, não havia aparelhos de ar condicionado. Os balneários e sanitários ficavam próximo de um átrio e eram comuns. Já não recordo quantas casas de banho existiam, nem quantos apartamentos, mas estavam proporcionados os números.

O prédio Impala, também de quatro pisos, tinha os três primeiros reservados para apartamentos e uma parte do quarto andar para sala de jantar, cozinha, armazém, sala de estar e bar. Neste edifício alojavam-se sargentos com famílias numerosas e, de um modo geral, todos cozinhavam as refeições em casa. A sala de jantar, muito ampla e arejada, servia refeições para todos os sargentos e famílias que lá quisessem comer, em especial, os alojados no prédio Bucelato.

Necessariamente, e de acordo com a época, as instalações destinadas a sargentos deveriam ser diferentes (entenda-se, piores) do que as dos oficiais. E, contudo, não se podiam considerar indignas.

 

Poucos dias após ter iniciado o desempenho das funções de gerente, o sargento adjunto foi porta-voz dos elementos da sua classe alojados ou utentes da messe, expressando a vontade de se fazer uma reunião com todos para poderem expor-me as suas reivindicações e reclamações. Fui peremptório na resposta, que transcrevo de memória: «Não faço reunião nenhuma, porque nas reuniões diz-se o que se quer e não quer, e nunca se chega à conclusão mais conveniente. Vou arranjar uma solução para os problemas dos sargentos.» Estávamos muito longe da Democracia e eu não fui educado em democracia, contudo, tinha já a noção bem clara do que devia ser feito para dignificar as pessoas.

No dia seguinte, ordenei que o sargento adjunto da gerência elaborasse uma lista completa, por ordem de antiguidades, dos sargentos casados a viver e comer na messe. Mandei fazer um convite formal, por escrito, em cartão timbrado, para o sargento-ajudante que figurava à cabeça da lista, solicitando o favor de o casal jantar, num determinado dia, na mesa da gerência, a horas que já não recordo. Dei instruções claras ao sargento adjunto para que a mesa fosse posta como se nela jantassem sargentos.

Munido de um pequeno caderno de apontamentos (guardado durante muitos anos) no dia e à hora aprazados, fui ter com o casal convidado. Tinham idade para quase serem meus pais.

À mesa, depois de uma pequena introdução de cortesia, perguntei ao sargento-ajudante se tinha queixas a fazer sobre a messe. A resposta foi imediata: «Não senhor, meu alferes!» Sorri e, depois de um pequeno compasso de espera, disse à senhora: «Compreendo a atitude do seu esposo; ele e eu somos militares, mas a senhora não é e, por isso, vai dizer-me toda a verdade, que o senhor ajudante não diz, por razões óbvias.»

Não foi preciso repetir. As queixas saíram de rajada. Fui tomando notas no caderno, uma por uma: faltavam talheres de peixe, um jarro de água servia duas mesas, os guardanapos de pano estavam rotos e só eram mudados ao cabo de oito dias, as limpezas nos quartos não eram feitas, porque as empregadas limitavam-se a mudar a roupa de cama, tinha de se esperar que a loiça fosse lavada, porque não havia em quantidade, não havia talheres de fruta e muito mais. A meio do rol já eu tinha interrompido a senhora para dizer ao chefe de sala para mandar esperar, no bar, o sargento adjunto da gerência. Naturalmente, perguntei à esposa do sargento-ajudante se aquela mesa estava igual à de qualquer sargento e a resposta foi taxativa: «Nem pouco mais ou menos… Aqui não falta nada!».

 

Depois das despedidas e dos agradecimentos fui ter com o sargento adjunto da gerência e dei-lhe a maior descompostura da sua vida, pelo menos, até àquela data. Disse-lhe quanto ele tinha sido mau camarada para com os sargentos, deixando que a mesa estivesse posta com mordomias, que não havia para os comensais comuns. Ficou embatocado! Nunca imaginara que a minha reacção fosse assim.

Na semana seguinte, com outro casal, na mesa havia as faltas devidas e o meu guardanapo tinha um buraco no meio por onde cabia um punho.

Em coisa de três ou quatro semanas estavam repostas as faltas mais fundamentais na sala de jantar dos sargentos e as limpezas e arrumações dos quartos obedeciam a ordens específicas dadas por mim e escritas para que toda a gente delas tivesse conhecimento.

 

Três meses depois da minha tomada de posse, nas vésperas de Natal, ao fazer entrega de brinquedos às crianças ‒ nunca nas messes se tinha feito tal ‒ fui surpreendido, no final, quando me propunha a retirar, pelo avanço de duas crianças. Vinham com dois embrulhos nas mãos: eram duas valiosas peças chinesas que os utentes, os sargentos e suas famílias, me queriam oferecer. Sensibilizou-me a atitude, pois jamais tive conhecimento que qualquer gerente de messe tenha recebido prenda dos hóspedes e dos comensais.

Valeu a pena não ter feito a reunião com os sargentos… é melhor construir pontes de entendimento entre pessoas do que alimentar-lhes, em reuniões, a desconfiança, a raiva e as amarguras.

 

Próximo do final do ano, uma delegação de sargentos pediu-me autorização para organizar, nas instalações comuns (sala de estar, bar e sala de jantar), sem qualquer encargo para a messe, a passagem do ano ‒ de 1967 para 1968 ‒ com recurso a um conjunto musical, a uma ceia, a bebidas e prolongamento da festa até de madrugada.

Depois de pedir autorização ao director-delegado, concordei, com recomendações próprias. A única coisa que facilitei foi o avanço do dinheiro para as compras que iam fazer. Pagaram pontualmente, até ao último centavo.

Estive nessa festa e também lá estiveram alguns outros oficiais. Foi um êxito retumbante, porque os sargentos até convidados civis levaram! Nos dois primeiros dias de 1968, na Beira, nos cafés da cidade, não se falava de outra coisa.

 

Ainda hoje recordo que toda a minha atitude para com os sargentos e a sua messe foi ditada por três ideias bem definidas e bem integradas na minha cabeça: era filho de um sargento; fui educado nos Pupilos do Exército, instituição criada para servir os postos mais baixos da Forças Armadas; e, sem sargentos e soldados, os oficiais são perfeitamente dispensáveis.

27.06.20

Fases da minha vida ‒ 29

(A messe de oficiais)


Luís Alves de Fraga

 

Ao contrário da messe de oficiais de Lourenço Marques a da Beira estava instalada num edifício de quatro andares (mais tarde foi reconstruído e ganhou um notável porte em altura) nem todos, em exclusivo, pertença da Força Aérea. No primeiro piso ficava, de um lado ‒ o direito de quem subia as escadas ‒ o café Empório (que recebera o nome pelo qual era conhecido o prédio) e do outro uma cabeleireira e vários quartos pertencentes à messe; o segundo e terceiro andares, de ambos os lados, eram quartos para hóspedes; no quarto piso, do lado direito ficavam quartos e, no outro, a despensa, o armazém de géneros, a cozinha, a recepção, o escritório, o bar, a sala de estar e a sala de refeições.

Já não recordo quantos quartos havia por piso, mas, presumo, seriam vinte e quatro ‒ quatro eram maiores, porque de topo em relação ao edifício. No total, se as minhas contas não estão erradas, a messe tinha como alojamento efectivo, cinquenta e quarto quartos, sobrando um onde estava instalada a delegação das infra-estruturas na Beira, outro para gabinete do gerente e um mais que era armazém e alojamento de dois soldados para reforço da segurança.

Teoricamente estariam alojados na messe cerca de cem pessoas entre maridos e mulheres, tendo de admitir que havia quartos ocupados por um só oficial sem acompanhante ou outros onde o casal dormia com filhos ainda pequenos (a idade média dos hóspedes levava a que a descendência, no caso de existir, fosse de idade inferior a seis anos). Havia um quarto reservado para uso exclusivo do general-comandante da Região Aérea quando passasse na cidade.

 

Ao pequeno-almoço serviam-se cerca de cem refeições, ao almoço o número caía para quase metade e ao jantar subia para mais de cento e vinte.

Quase todos os quartos tinham aparelho de ar condicionado, que trabalhava ininterruptamente durante os meses de Verão ‒ Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro ‒ e só muito raramente nos restantes, pois na época fresca e seca o clima era bastante ameno ao contrário do tempo das chuvas onde a humidade do ar atingia mais de noventa por cento e o calor pegajoso era insuportável de dia e de noite.

Também, ao jantar, estava determinado pelo comando da Região Aérea, o trajo civil tinha, para os homens, de incluir casaco e gravata, embora na sala não houvesse qualquer aparelho de ar condicionado e fosse contígua à cozinha onde as temperaturas eram elevadíssimas.

Recordo que, ao assumir a gerência, em Setembro de 1967, fui interpelado, pelos oficiais mais graduados, sobre a possibilidade de alterar a disposição imposta. Perante a resposta negativa, fui eu quem teve de suportar o embate da raiva e revolta. E eu era somente alferes… eles eram capitães e majores!

 

Ao contrário da messe de Lourenço Marques, as esposas dos oficiais pouco ou nada faziam sala na zona própria para o efeito. Admito que tal se devia ao facto de a grande maioria ter empregos na cidade, por um lado, e, por outro, a disposição da sala de estar não oferecer grandes possibilidades para um convívio próximo. Nessa sala, para além de três mesas de jogo, existiam, em separado, três conjuntos de sofás em péssimo estado de conservação, diria mesmo, em estado miserável e inapropriado para qualquer sala de estar.

Talvez, uma das primeiras medidas por mim adoptadas foi a de mandar restaurar os sofás da sala de convívio, que ficaram, por conjunto, com cores diferentes e revestidos a napa. Um desses conjuntos tinha as costas brancas.

Ao cabo de dois ou três meses de cara lavada um dos sofás com as costas brancas apareceu todo riscado a esferográfica azul. Um acto que eu não podia deixar passar em claro.

Pus-me em campo para conseguir averiguar quem era o pai da criança responsável pelo facto, porque só uma criança poderia ter feito tamanha maldade. Depois de várias perguntas ninguém se acusou, muito embora eu tivesse quase a certeza sobre quem recaíam as culpas.

Tomei uma drástica resolução: com um aviso, colocado no painel onde se dava publicidade às decisões da gerência, informei que, na falta de assunção da responsabilidade, havia mandado retirar o sofá danificado e, se tal vandalismo se repetisse, retiraria todo o mobiliário da sala.

 

Fui interpelado pelas senhoras casadas com os oficiais mais graduados hóspedes da messe e mantive uma calma olímpica, reiterando a minha disposição se se continuassem a verificar tais atitudes pouco civilizadas.

Os respectivos maridos, porque majores, participaram de mim ao comandante da Base Aérea n.º 10, na esperança de que me fosse aplicada a sanção disciplinar conveniente. Felizmente, eu dependia do director-delegado e, assim, a participação foi encaminhada para o general-comandante da Região Aérea que, depois de consultar o meu chefe directo, a remeteu ao comandante da Base com um despacho que dizia qualquer coisa como (cito de memória): «O gerente da messe não usou de medidas disciplinares contra superiores hierárquicos seus, mas adoptou uma medida de carácter administrativo que faz dele um zeloso e cauteloso defensor do património da Força Aérea».

Imagine-se como ficaram bem-dispostos comigo os dois majores!

Adquiri, a partir daquele momento, um estatuto que nunca mais se descolaria da minha vida enquanto oficial de Administração. Nem eu desejava que fosse doutra maneira!

 

Os grandes problemas de uma gerência de messe de oficiais resultam da acumulação de todos os pequenos problemas do dia-a-dia repetidos vinte e quatro horas em cada dia, que, ao cabo de um ano de actividade, levam à exaustão, à impaciência e, por vezes, ao desespero: é a torneira da casa de banho que não veda bem, o ar condicionado que não funciona, a limpeza que não foi bem feita, o armário com a porta empenada, o barulho que fazem no quarto ao lado, a colcha da cama que está rasgada, o serviço de mesa que está demorado, a recepcionista que não atende o telefone com celeridade, a conta que inclui um extra não consumido, e tantas, tantas mais coisas quantas a imaginação de cada um pode gerar. A exaustão atingiu um tamanho tal que, ao regressar a Lisboa, estive três meses sem conseguir atender telefones.

Para além de todas as cautelas de gestão havia uma outra que se me impunha prementemente: evitar desvios de géneros cozinhados ou em cru por parte de funcionários das messes (de oficiais e de sargentos), já que a grande maioria era natural da Beira e dos arredores.

 

Um administrador não pode cair na irrealidade de pretender que não haja desvio de qualquer espécie! Ele tem é de ter marcado muito bem a dimensão do desvio, pois quanto mais apertada for a vigilância mais apurada é a manha do gatuno. Para isso é que havia uma forma de designar as diferenças entre o que devia existir e o que realmente existia, eram as quebras! Um bom gestor tem as quebras não só bem controladas, como bem limitadas sem levantar suspeitas nem fazer ondas excessivas. É que o gerente de uma messe tem de ser sensato ao ponto de conhecer as suas fragilidades e vulnerabilidades e elas podem ser exaltadas e usadas pelo chefe dos cozinheiros, pelo chefe de mesa, pelo encarregado do pessoal de limpeza, pelo despenseiro e pelo chefe do pessoal do bar. Exactamente pela ordem acima enunciada.

Mais que o sargento adjunto da gerência das messes, os indicados foram sempre o estado-maior que consultei para tomar decisões de orientação e gestão: tê-los próximos de mim para os controlar sem sentirem que o fazia, foi a minha política.

Esse foi um trabalho que desenvolvi com êxito e fiquei satisfeito.

25.06.20

Fases da minha vida ‒ 28

(A cidade da Beira)


Luís Alves de Fraga

 

Quando se faz a aproximação aérea à pista do aeroporto da cidade da Beira, em Moçambique, tem-se a perfeita noção da geometria da segunda urbe daquele Estado: uma vírgula sem tirar nem pôr. Era assim no ano de 1967, tal como, admito, continua a ser agora.

De facto, junto ao rio que dá pelo nome de Chiveve a cidade foi crescendo em círculo, um lado para junto do mar e outro para o lado de terra. Depois, sempre ao longo da costa, a partir do largo onde ainda existe, em ruínas, o Grande Hotel (ali chegou a funcionar a primeira messe de oficiais da Força Aérea, em 1960 ou 1961), construíram-se vivendas espalhadas por duas ou três ruas, até se chegar, lá mais ao fundo, nas proximidades do farol do Macúti, em que já só há casas junto à estrada, que sai para o aeroporto, para o Dondo e para Tete.

A Beira é uma cidade de beira-mar, que em alguns pontos, chega a ficar meio metro ou mesmo um metro abaixo do nível das águas que, por serem calmas e haver uma boa duna, nunca saltam para as ruas e prédios (recordo o antigo Jardim do Bacalhau, onde existia a única rampa para os aprendizes de condução automóvel treinarem o ponto de embraiagem). Interessante que, para suster as areias, desde o velho Oceana até ao Macúti, há pinheiros quase à beira-mar.

 

Enquanto Lourenço Marques era uma cidade geométrica, a Beira não apresentava uma geometria rigorosa em ângulos rectos; as ruas saíam mais ou menos segundo ângulos de diversos graus. Foi uma cidade colonial nascida um pouco à vontade dos Portugueses e muito regida pelas imposições britânicas, pois lá funcionou, por largos anos, a sede da Majestática Companhia de Moçambique. As influências inglesas eram gritantes.

Pululavam as lojas de chineses e as de indianos, na verdade, paquistaneses, alguns restaurantes famososO Grego, por causa do marisco de excelente qualidade, os dois chineses (o rico e o pobre) ‒ uma ou outra pastelaria, das quais, em 1967, a mais significativa era a do Empório (prédio onde se situava a messe de oficiais da Força Aérea, ainda somente com quatro pisos), um só hotel com dignidade para tal e alguns bancos.

Tinha um liceu e escola comercial e industrial, uma escola de artes e ofícios, uma catedral de dimensões modestas, um presídio pequeno mesmo no centro da cidade, uma estação de correios, uma estação de rádio (a do Aero-Clube da Beira), a Câmara Municipal, o porto e o aeroporto.

 

A baixa ‒ que ficava exactamente ao mesmo nível da alta ‒ concentrava o melhor comércio, os melhores estabelecimentos ‒ um pequeno armazém, o Bulha, tinha a pretensão de rivalizar com qualquer loja do país, num claro exagero do seu dono ‒ os consultórios médicos, os bancos, dois cinemas e os cabarés. Devo recordar que, nesses anos de fim de colonialismo, não havia discotecas onde os casais jovens pudessem, nas noites de sexta-feira e de sábado, ir dançar, beber um copo e ouvir música, pelo que era comum e quase normal fazê-lo nos cabarés, onde havia sempre um espectáculo de música, com cantores, que tinham sido famosos em Portugal, e, naquela altura, estavam em decadência.

 

Os velhos colonos, porque mais próximos das zonas onde havia operações militares, estavam mais circunspectos em relação ao resultado da guerra do que os laurentinos, desconfiando de soluções castrenses, apostavam mais na resolução pela via política e diplomática, mas sempre colocando como básica a supremacia branca, por claro contágio de Ian Smith, que pontificava na vizinha Rodésia.

Escarafunchando um pouco no verniz patriótico dessa gente habituada à maneira de estar e de ser britânica, percebia-se a incerteza de tudo o que viesse de Lisboa e de Portugal, a começar pela tropa, que, segundo eles, interferiu fortemente nas relações superiores dos brancos com os negros.

Até nisso, a sociedade civil da Beira mostrava diferença da de Lourenço Marques! Aliás, era conhecida, nesses anos, a rivalidade entre as duas cidades, porque, a mais pequena e mais a Norte, conseguia coesões que na capital não se alcançavam.

 

Tal como a Sul, também ali a vida começava muito cedo e acabava também cedo, na noite. Era comum os cidadãos trabalhadores deitarem-se às dez ou onze da noite. A diversão vinha na sexta-feira e no sábado; no domingo ainda, durante o dia, podia haver manifestações de paródia, mas o recolher voltava ao normal.

As mais vulgares distracções passavam pela manhã na praia, a tarde e a noite no cinema, sempre procurando locais onde se comesse bem em quantidade e em qualidade, de preferência pratos de marisco regados com abundante cerveja. Havia quem fosse descobrir praias paradisíacas, depois de muitos quilómetros por picadas no meio de mato. Mais raramente, alguns buscavam o exotismo do parque da Gorongosa ou o suave clima de Vila Pery (Chimoio).

 

Em jeito de balanço, posso dizer que senti a Beira uma urbe intimista e agradável, onde se equilibrava o prazer com o trabalho, muito mais do que Lourenço Marques.

24.06.20

Fases da minha vida ‒ 27

(Marcha para a Beira)


Luís Alves de Fraga

 

Corria o mês de Agosto de 1967, chegou, à DDSIC, em Lourenço Marques, a notícia de que o gerente das messes de oficiais e sargentos da Força Aérea na cidade da Beira, estava nomeado para frequentar o curso de major, na Base Aérea n.º 1, em Sintra, pelo que lhe era dada por terminada a comissão e deveria apresentar-se, na Escola Superior da Força Aérea, o mais tardar, em Outubro.

Dependendo as messes directamente da DDSIC, e não havendo nela, no momento, mais nenhum oficial subalterno do quadro permanente disponível para ocupar a inesperada vaga, fui nomeado para aquele lugar.

A minha mulher, com meses de gravidez e com o contrato estabelecido com o médico, teria de permanecer em Lourenço Marques, mas não tinha mais lugar na messe. A gentil oferta da amiga de juventude para ficar a residir lá em casa foi aceite de bom agrado, tanto por mim como por ela. Eu seguiria. Ela ficaria.

 

Cheguei à cidade da Beira no mês de Setembro, lá para dia 15 ou 18 (não tenho elementos para indicar a data exacta).

Na cidade, para além de várias unidades do Exército, só existiam, quatro da Força Aérea: a Base Aérea n.º 10 (comandada por um coronel piloto-aviador), o Batalhão de Pára-quedistas n.º 31 (comandado por um tenente-coronel pára-quedista), com poucos meses de instalação, o Depósito de Material da Força Aérea (comandado por um capitão) e as messes de oficiais e sargentos (gerida, na altura, por um alferes à espera de ser tenente). Assim, a dependência hierárquica do gerente das messes era directa do director-delegado, em Lourenço Marques (qualquer coisa como 1200 quilómetros de distância), e, por via disso, do general-comandante da Região Aérea. Deste modo, eu não tinha de me apresentar ao comandante da Base, ainda que, para efeitos administrativos ‒ recebimento do vencimento ‒ os meus documentos de matrícula fossem escriturados na secção de pessoal daquela unidade.

Era, e foi, importante esta não dependência para evitar ingerências do comando da Base e, consequentemente, não apresentar vulnerabilidades hierárquicas, porque as messes serviam todos os oficiais e sargentos da Força Aérea e não só os da Base ou do Batalhão de Pára-quedistas. Por isso, justificava-se a independência..

 

Quando, ao fim de dois ou três dias após a minha chegada à Beira, tomei conta da gestão e administração das messes, fiz questão de visitar os três comandos das unidades, para lhes apresentar cumprimentos e garantir-lhes a boa colaboração da gerência em tudo aquilo que me pudesse ser possível satisfazer. Semanas mais tarde, convidei-os formalmente para jantarem comigo na messe de oficiais, porque tinham residência do Estado em outras partes da cidade.

Grande topete o deste alferes!

 

O meu antecessor, capitão com já vários anos de serviço (também oriundo de miliciano, sem passagem pela Escola do Exército), tinha uma estranha forma de conceber a gestão das messes: fundamental era que houvesse o máximo lucro financeiro no final do mês!

Ora, é preciso não ter consciência do que é uma messe e qual a sua finalidade para a gerir com vista ao lucro, pois, de facto, segundo os princípios herdados do século XIX, através do cooperativismo castrense, este e outros estabelecimentos do mesmo tipo o que não podem, nem devem, é dar prejuízo, cumprindo o objectivo de satisfazer cabalmente os utentes.

Eu tinha o cofre e a conta bancária cheios, mas o pessoal comia mal, porque as ementas eram pobres.

Rapidamente dei volta ao assunto, chamando o chefe dos cozinheiros ‒ um funcionário civil do quadro, responsável pelas ementas semanais ‒, propondo-lhe uma mudança radical. Claro, alterar dava trabalho, pois supunha pratos mais complexos na execução e na apresentação. Tive de jogar com um incentivo pecuniário particular mensal e da minha responsabilidade exclusiva (embora com conhecimento do director-delegado através de conversa telefónica). As ementas saltaram logo para a escala do bom e os elogios à nova gerência não se fizeram rogados. Eu não fazia mais do que a minha obrigação. Era esse o meu serviço, tal como o meu sentido de serviço.

 

Auxiliava-me na gestão das messes um segundo sargento do Serviço Geral da Força Aérea, homem cheio de boa-vontade e preocupado em agradar. Era ele quem, todos os dias úteis da semana, às dez e trinta ‒ hora por mim estabelecida ‒ me trazia o despacho (receitas avulsas cobradas na recepção com os documentos respectivos, reclamações escritas, pedidos diversos e outras vulgaridades) para eu dar andamento.

Uma ou duas semanas depois de eu ter tomado posse do cargo, foi-me presente o pedido de um oficial casado e com a mulher a viver na messe para trocar de colchão. Estranhei a requisição e solicitei explicações ao sargento, que me relatou a seguinte: há um colchão muito velho que fica sempre para o último oficial casado que chega à messe, ora, por ter saído agora o senhor tenente X, que tinha um colchão bom, o senhor tenente Y pede para ficar com o colchão dele e o seu ser entregue ao alferes K, que acabou de chegar.

Isto era absolutamente diabólico e impensável! Em que mundo, ou melhor, em que messe é que nós estávamos?

De imediato, dei ordem ao sargento para que o colchão velho fosse colocado na minha cama e o meu fosse posto na cama do tenente peticionário. O mal cortava-se, e já, pela raiz! Mais tarde se veria como resolver o problema, que para mim não se colocava, dado que ainda dormia sozinho e ser capaz de deitar o corpo em cima de pedras e adormecer. Só já em Fevereiro ou Março de 1968 o caso foi resolvido, quando o director-delegado foi de visita à messe e tive oportunidade de lhe mostrar o colchão e obter dele autorização para comprar um novo para a minha cama, onde já, então, dormia, havia um mês ou dois, a minha mulher.

Não fiz alarde do caso, mas não faltaria quem falasse se tivesse, de imediato, mandado comprar um colchão para meu uso pessoal! É que, quem lida com dinheiros e pode usufruir de mordomias tem de ter sempre presente que «À mulher de César não lhe basta ser honesta, pois tem de parecê-lo!» E ser honesto é mais difícil do que ser herói, porque, para ser herói toda a vida, basta tê-lo sido uma só vez na vida.

23.06.20

Fases da minha vida ‒ 26

(O Dr. Dupont)


Luís Alves de Fraga

 

Às vezes não basta só referir a originalidade das sociedades europeias nas colónias, porque não se alcança onde se quer chegar com tal afirmação; é preciso exemplificar. E hoje recordo-me de um facto marcante da diferença de comportamento entre o Portugal de 1967 e Lourenço Marques, nesse ano.

 

Em Março ou começo de Abril a minha mulher pressentiu que estava grávida ‒ já levávamos mais de um ano de casados ‒ e colocou-se-nos a questão de saber como e por quem devia ser acompanhada. Uma amiga de juventude, casada com um veterinário natural de Lourenço Marques, sugeriu-nos um médico com consultório na baixa da cidade. Tinha sido ele o obstetra que lhe fizera o parto do filho. Chamava-se Dupont e era natural das ilhas Maurícias.

Lá fomos. A assistente era a sua própria mulher. Observou e confirmou uma gravidez muito recente. Com poucas semanas, talvez. E perguntou-nos se queríamos entrar no seu sistema. Naturalmente, quis saber o que era isso. Explicou.

 

O parto seria feito segundo uma técnica trazida por ele dos EUA, de um longo estágio feito por terras do Tio Sam, e consistia em deixar a parturiente chegar a um ponto da dilatação em que as dores de contracção se tornavam cansativas, ministrando, nessa altura, uma injecção soporífera. A parturiente passava a cair em sono profundo só despertando aquando da dor para voltar a dormir logo depois. Quando já estivesse feita toda a dilatação e fosse a hora do parto, na respectiva sala, dar-lhe-ia uma anestesia ráquis somente para puxar o bebé. Ficaria a dormir umas horas e acordaria repousada e pronta para amamentar. Note-se, neste tempo ainda não havia ecografias.

Mas não ficava por aqui o sistema do Dr. Dupont. Seguia-se-lhe a parte financeira.

Mediante o pagamento de uma quantia fixa e que não recordo qual era, o parto seria feito, por ele, na missão de São José de Lhanguene, acompanhado por freiras parteiras, implicasse ou não quaisquer outras acções. Mas ‒ vem agora a parte mais original ‒ poderíamos liquidar em suaves prestações até ao momento do parto, sendo que a grávida teria direito a todas as consultas que entendesse, a fazer telefonemas, a todo o acompanhamento a toda a hora, sem qualquer acréscimo financeiro.

Isto, para quem não tem nenhum tipo de apoio familiar numa terra estranha, era altamente convidativo.

E foi assim que, contra pagamento em prestações mensais, foi feito o parto da minha filha!

 

O Dr. Dupont, chegada a hora determinada pela freira, compareceu no quarto da minha mulher, aplicou-lhe a injecção na veia e deixou-se ficar à conversa comigo, em profunda tranquilidade, assistindo aos gemidos que ela dava em períodos cada vez mais pequenos, caindo logo num sono calmo, sem agitação nem batidas cardíacas alteradas. Contou-me interessantes histórias do seu tempo de estudante, em Coimbra, onde havia sido colega de um típico capitão médico da Força Aérea, por acaso, nessa altura, em serviço, também, em Lourenço Marques.

Horas depois, no momento certo, mandou que a minha mulher fosse levada para a sala de partos e, em pouco mais de cinco minutos, ouvi o primeiro choro da Helena Luísa.

 

Um método original, quer na execução do parto quer no acompanhamento da gravidez, quer, ainda, na forma de liquidação de encargos. Isto não era possível em Portugal, sem recurso a uma série de burocracias, cuja origem estaria no receio de ficar a arder com um pagamento. Lá, na cidade de Lourenço Marques, bastou a nossa palavra e houve confiança de parte-a-parte.

P. S. ‒ O Dr. Dupont, soube muito mais tarde, com a independência de Moçambique, em 1975, veio para a cidade do Porto exercer clínica e, creio, por lá morreu.

21.06.20

Fases da minha vida ‒ 25

(Os pobres de espírito)


Luís Alves de Fraga

 

Ao cabo de poucos meses da minha chegada a Lourenço Marques e colocação na DDSIC, apresentou-se mais um oficial, este com o posto de tenente-coronel recém-promovido, que eu não conhecia. Vinha ocupar um cargo novo, criado, segundo me parece, havia pouco tempo: inspector, subordinado ao director-delegado.

Era um pouco mais velho do que seria expectável e isso devia-se ao facto de ter frequentado a Escola do Exército já depois de ser oficial miliciano. Por conseguinte, havia transitado do Exército para a Força Aérea, mas, mal por mal, não entrara, como se dizia na altura, pela porta do cavalo, o que não fazia dele nem melhor nem pior técnico de Administração.

 

Como também já referi, estava colocado na DDSIC um major, cuja função era a de adjunto do director-delegado, esse sim, proveniente de miliciano com ingresso imediato no quadro permanente e sem qualquer formação castrense para além da recruta na Escola Prática de Administração Militar.

Há data da chegada do tenente-coronel inspector já eu e o major mantínhamos uma boa relação pessoal, dentro e fora do serviço. Muitas vezes, acompanhados das respectivas mulheres, íamos tomar café ou um chá, depois do jantar, fora das instalações da messe. Isso deu-me possibilidades de o conhecer mais de perto e fundamentar a conclusão tirada logo nos primeiros contactos: era um pobre de espírito, com alguma competência técnica, mas total ausência de sentido ético sobre a função castrense, pois deixava-se dominar por quem tivesse um naco de superioridade intelectual ou de verticalidade na vida. Culturalmente deixava a desejar, pois não tinha opinião sobre nada e pouco se interessava por qualquer actividade. Era um vazio absoluto. A mulher não lhe ficava atrás.

Trocávamos impressões sobre a gestão e a administração financeira nd Força Aérea em Moçambique e não era capaz de conceber uma pequena mudança do quer que fosse. Uma noite, descendo a avenida D. Luís, rumo à baixa da cidade, teve esta saída brilhante, que me deixou boquiaberto e sem palavras: «O Fraga não tem mentalidade de alferes! Tem de major ou tenente-coronel!»

Coitado! Para ele, as mentalidades estavam escalonadas por postos, hierarquizadas em função dos galões que cada qual tinha em cima dos ombros!

Se o major adjunto era o que acabo de relatar, o director-delegado estava-se nas tintas para o serviço ‒ dizia-se (e não há fumo sem fogo!) que, em despacho com o general-comandante da Região Aérea, quando queria esquivar-se a dar explicações, inventava legislação proibitiva, evitando os incómodos.

Estava bem entregue a chefia do serviço administrativo, em Moçambique, nesse ano de 1967! Justificou-se a razão de o director-delegado, em anos sucessivos, não ter sido escolhido para a promoção a coronel, sendo ultrapassado por alguns mais modernos. Deixou-se ficar por Moçambique.

 

Com a chegada do tenente-coronel inspector esperei que houvesse um refrescamento na Delegação da Direcção, mas foram vãs as minhas esperanças. O homem, para além de saber muito pouco, não arriscava nada e, acima de tudo, complementando complexos de inferioridade, era desconfiado.

Percebeu o ambiente que se vivia entre os capitães, os tenentes e os alferes de Administração ‒ gozávamo-lo à vara larga ‒ e passou, literalmente, como fazem todos os suspeitosos, a escutar atrás das portas. O que poderia ouvir eram risadas e pouco mais. Não nos merecia respeito, primeiro, pela incompetência mostrada e, depois, pela personalidade retorcida.

Casado em segunda núpcias, contava-se que, por ciúmes, mantivera a primeira mulher fechada num quarto em cuja porta havia uma abertura por onde lhe eram passadas as refeições. A senhora, ao que se dizia, acabou por se suicidar.

 

Um belo dia, pouco antes da saída para o almoço, o tenente-coronel inspector apanhou-me num dos corredores da Delegação e, de chofre, atirou: «Senhor alferes, eu sei que os oficiais andam a dizer mal de mim. Exijo que me diga quem são eles!»

Nem hesitei um segundo na resposta: «Meu tenente-coronel, das duas uma: ou acha que sou delator e, nesse caso está enganado, ou admite que eu possa chefiar todos os oficiais, até os de graduação superior à minha, e, nesse caso, está a dar-me uma honra que não mereço. Assim sendo, dá-me licença que me retire?»

Ficou com verdadeira cara de parvo, dei meia volta e fui continuar a tarefa interrompida. A verdade é que me ganhou respeito, como se verá lá mais para a frente.

 

Às vezes, cruzamo-nos com pobres de espírito, tornando-se impossível esquecê-los, por mais que tentemos!

Comecei cedo a frequentar essas encruzilhadas da vida.

20.06.20

Fases da minha vida ‒ 24

(A messe de Lourenço Marques)


Luís Alves de Fraga

 

A messe de oficiais da Força Aérea, em Lourenço Marques, ocupava todo o prédio Funchal, desde o 1.º andar até ao último. Era uma verdadeira escola para aprender a viver entre víboras!

 

Por lá alojavam-se os oficiais e famílias desde o mais baixo posto (alferes) até ao mais elevado (brigadeiro ou, agora, major-general). Havia flats para oficiais com família e quartos para os oficiais sem família. No 1.ºandar situava-se a recepção, o gabinete da gerência, o bar e salão de jogos, a sala de refeições e, lá ao fundo, num espaço mais ou menos amplo, a Gorongosa ou seja, a sala onde os pais depositavam as crianças para brincarem e comerem, segundo o princípio muito britânico, de que elas têm de ter um espaço para não incomodarem os adultos quando estes tomam as refeições. Havia uma empregada só para cuidar da bicharada.

Nesse 1.º andar existia uma ampla varanda que teria ‒ e aqui a memória pode induzir-me em erro ‒ à volta de seis ou sete metros de largura e estendia-se ao longo de quase todo o edifício. Dava para se conversar, para ter mesas e cadeiras de ferro onde se jogava xadrez ou damas, para passear de um lado a outro, enfim, para tudo. Ao fundo, do lado esquerdo de quem saía do elevador, ficava a sala de jantar com uma capacidade para, talvez, trinta a quarenta mesas de quatro lugares, sendo possível servir refeições a cento e vinte ou cento cinquenta pessoas.

O pequeno-almoço, tipo inglês, estava pronto bastante cedo e era abundante. Ao almoço, os militares estavam fardados e faziam, à maneira portuguesa, uma refeição prolongada ‒ já não me recordo bem, mas, creio, seria um intervalo de duas horas. Tal como ao jantar, servia-se sopa, prato de peixe e de carne, fruta e doce. A grande diferença é que, à noite, os homens tinham de vestir casaco e usar gravata. Eram sempre formais os jantares, mesmo em relação a convidados. A sala tinha vários aparelhos de ar condicionado que, na época quente, geravam uma temperatura compatível com a exigência determinada pelo general-comandante.

 

Estes aspectos genéricos nada dizem sobre o que era a vida na messe de oficiais da Força Aérea, em Lourenço Marques, nesse começo de ano de 1967. Vale a pena recordar os outros, os que envolviam os actores dessa vivência diária.

 

Os locais mais frequentados por gente perigosa eram o bar, a sala de jogos e a de estar, a ele contíguas.

No bar, após o almoço e o jantar reuniam-se, frente ao balcão, os oficiais de quase todos os postos, em conversas que iam dos assuntos de serviço até aos disparates dos jovens. Dali, os alferes, olhavam as pernas de algumas das filhas de oficiais mais graduados que, com as suas generosas minissaias, deixavam ver coxas mais ou menos bem desenhadas. Havia uma ‒ filha de um capitão médico ‒ que se distinguia de todas as outras pelas belas pernas de que era dona. Não faltava a filha do coronel piloto-aviador ‒ completamente chalado e obcecado em descobertas científicas de quem os alferes riam à socapa ‒ engraçada, viva e rebelde, nem a sonsa e meio atrasada mental filha de um oficial general, cujo pai a gostaria de ver casada com um alferes; também não faltavam as outras, mais entradas em idade, que se insinuavam junto dos oficiais milicianos na esperança de um casamento mais ou menos feliz.

A tudo isto assistia, impassível, bem-educado, prestativo e correcto, o Fernando ‒ um africano de tez acastanhada e idade indefinida entre os quarenta e cinquenta anos ‒ que, se quisesse, teria muitas estórias para contar. Mas a sua discrição era total. E mantinha uma contabilidade impecável dos vales de cafés, cervejas e outras bebidas que consumíamos e deixávamos por pagar com um simples «Fernando, é para vale» e que, no final do mês acrescia à conta de alojamento e alimentação na messe. O Fernando, visto à distância que me separa desse tempo, era, realmente, um senhor!

 

Para além do bar ficava a sala de estar e de jogo. Na segunda, entretinham-se alguns oficiais, quase viciados, a jogar póquer de dados e bridge, e, na primeira, sentavam-se as esposas dos oficiais, desde as mais novas às mais idosas ‒ mulheres até aos cinquenta anos, talvez ‒ ordenadas segundo dois critérios: o das graduações dos maridos e o das idades e diversas comissões de serviço no ultramar.

Ali refaziam-se carreiras de oficiais ‒ caídos em desgraça junto dos seus chefes ou, por agradarem, às esposas, fruto de boa convivência com as respectivas mulheres ‒ com louvores ou críticas ou, até, em última instância, marcha acelerada para outras unidades da Força Aérea bem distantes de Lourenço Marques.

Recordo o badalado caso de um oficial, casado e com filhos, que se perdeu de amores por uma funcionária civil e cuja esposa lhe conseguiu a transferência para uma cidade distante da sua paixão, salvando, deste modo, o casamento, que manteve por mais alguns anos.

Era um poço de víboras que, mal apanhavam a jovem mulher de um alferes ou tenente acabo de chegar, lhe ministravam toda a instrução necessária para se saber comportar no meio castrense; isto se a jovem se mostrasse receptiva às boas influências, por ser bem-educada ou suficientemente cínica para disfarçar com rigor uma certa inocência, porque, no caso contrário, caía logo na alçada das línguas afiadas, esperando estas o momento próprio para lhe lançarem o labéu de desavergonhada, perdida e coisas semelhantes.

 

Mas nem todos os oficiais frequentavam o bar para ocupar o tempo, nem todas as senhoras se davam à conversa com as oficialas. Havia os que estavam em Lourenço Marques para juntar dinheiro e arranjavam empregos para as mulheres e filhos, se tivessem idade para tal, pois, como já disse, em Moçambique, as entidades patronais eram generosas e pouco exigentes relativamente à formação académica e laboral dos europeus. Esses, os que queriam poupar dinheiro, em vez de comer na messe, mandavam buscar à copa, com as respectivas latas de comida, uma dose (gratificavam a servente negra que aviava as embalagens) bem servida e toda a família comia pelo preço de um só! E, sobre eles, era exercida uma forte crítica feita pelas víboras da sala de estar!

 

Confesso que aprendi muito do que era a família militar nos cerca de seis meses que vivi com a minha mulher na messe. Foi uma experiência valiosíssima para o resto da minha comissão.

17.06.20

Fases da minha vida ‒ 23

(O quotidiano em Lourenço Marques)


Luís Alves de Fraga

 

Era a primeira vez que me afastava de Lisboa por mais do que o tempo de umas férias longas e era, também, a minha primeira experiência de vida numa cidade de segunda ordem, pela grandeza e pela diversão.

Desde já faço notar que a vida em Lourenço Marques, naqueles anos distantes, ficava bastante limitada para quem, como eu, não tinha automóvel próprio. Usava os machibombos (autocarros) das carreiras públicas nas deslocações mais distantes. Neles, a convivência social não tinha nem limites nem barreiras de espécie nenhuma.

 

A vida, no dia-a-dia, começava muito cedo ‒ os empregos já funcionavam às oito horas da manhã, sendo que, a maioria, encerrava pelas quatro ou cinco da tarde, dando uma larga margem ‒ mesmo no tempo fresco e seco (Inverno) ‒ para se usufruir de certo convívio social, que se fazia nos cafés e pastelarias da moda e centrais: a Atneia, a Princesa, o Scala e o Continental. Por ali passavam os europeus, depois de acabado o trabalho, mas, curiosamente, a qualquer hora do dia, estes estabelecimentos tinham frequência suficiente que justificava o elevado número de empregados negros. Outro local onde a média burguesia laurentina ia comer um ice-crem, era a Cooperativa dos Criadores de Gado.

Bebia-se cerveja ‒ a célebre Laurentina, bastante mais fraca do que a não existente Sagres ‒, café, sumos ou os milkshakes de banana. Havia quem mandasse servir uísque ou outras bebidas espirituosas. Por volta das sete da tarde, os chefes de família regressavam a casa, para jantar, ler o jornal e deitar cedo, porque o dia começava, também cedo.

 

Será interessante referir que a maneira de trajar, de homens e de mulheres europeias, residentes na cidade, era descontraída, muito fora dos hábitos metropolitanos; fato e gravata eram raros nos homens; usavam, durante o dia, com toda a naturalidade, calções, meias altas com sapato e camisa aberta nos colarinhos. Os tecidos eram de cor clara e aspecto fresco. A informalidade colonial só a compreende quem por lá passou e conviveu, nas cidades, com os habitantes europeus.

Para jantar fora ou ir ao cinema nas noites de folia (sextas e sábados) então, sim, as senhoras e os cavalheiros vestiam com mais rigor. Mas, essas alturas constituíam excepção.

 

Os cinemas (eram, pelo menos, três na baixa da cidade) nas noites de semana não tinham muita frequência; às sextas-feiras e sábados enchiam. Notava-se, facilmente, nos outros dias, que os espectadores eram militares ou gente sem hábitos coloniais.

Também, por curiosidade, devo referir que a censura às fitas cinematográficas era muito, mas mesmo muito, mais branda do que em Portugal. Os filmes chegavam via África do Sul e não eram legendados como continuam a ser entre nós; por baixo do ecrã grande, havia um muito mais pequeno por onde passavam as legendas não sincronizadas com as cenas. Muitas vezes, acontecia que ou adiantavam as legendas ou as atrasavam, causando barafunda nos espectadores menos fluentes na língua inglesa.

 

No dia-a-dia, para além do cinema, dos cafés e cervejarias, as distracções do cidadão europeu comum passavam por ler um dos dois jornais que se publicavam em Lourenço Marques e ouvir rádio ‒ o Rádio Clube de Moçambique (RCM) com capacidade para chegar a todo o território‒, cuja importância assumia o papel que, já nessa altura, tinha a televisão em Portugal. Rádio escutava-se em todo o lado e em todos os momentos e não só no automóvel. As emissões do RCM faziam-se em português e nos vários dialectos, tornando-se um meio de propaganda para servir os fins da luta contra a FRELIMO.

 

Uma outra particularidade, que aprendi pouco tempo depois da minha chegada, é que, por lá, as distâncias quilométricas não tinham equivalência nenhuma aos nossos hábitos metropolitanos. Ir, de automóvel, de Lisboa a Coimbra, à Covilhã, a Beja ou a Viseu era fazer uma grande viagem de duzentos e tal quilómetros para a qual todos nós nos preparávamos com alguma antecedência, tomando as devidas cautelas de verificação do estado da viatura; ir de Lourenço Marques à praia do Xaixai (220 Km) ou à do Bilene (184 Km) ou à Ponta do Ouro (240 Km) ou ao hotel do Chongoene (233 Km) não era coisa do outro mundo e havia quem se fizesse à estrada de madrugada, para passar o dia nesses locais paradisíacos, e regressasse à noite. No hotel do Chongoene ‒ com serviço à inglesa ‒ muitos recém-casados passavam a sua lua-de-mel.

 

A mais comum população europeia de Lourenço Marques frequentava aos sábados e domingos a praia da Costa do Sol. Nesses dias o restaurante lá do fundo enchia para servir bom marisco e cerveja, que corria em abundância.

Era ligeira, agradável e contagiosamente informal a vida na cidade capital da colónia. Para os europeus radicados, os salários permitiam-lhes fazer uma vida em nada comparável ‒ atendendo às suas habilitações literárias ou à sua formação específica ‒ àquela que poderiam fazer em Portugal. Para quem quisesse, dava para poupar dinheiro em cada mês. O problema estava em enviar o aforro para Portugal. A esse propósito, vi um pouco de tudo: comprar moeda sul-africana e enviá-la pelo correio, comprar lotaria premiada para a mandar para Lisboa e receber em escudos portugueses e mais umas quantas outras artimanhas. E, mesmo assim, os velhos colonos continuavam a achar que Moçambique era tão português como o Algarve ou o Minho!

16.06.20

Fases da minha vida ‒ 22

(Moçambique ‒ A Delegação da Direcção)


Luís Alves de Fraga

 

Quando embarquei para Moçambique tinha a perfeita convicção de estar a ir para a guerra ‒ uma guerra onde quem definia a frente de combate era o inimigo ‒, todavia, ia sem a completa certeza de ser justa a razão de se fazer a guerra.

Ao cabo de vinte dias de viagem, instalado em 1.ª classe de um paquete de média qualidade, somente de passageiros onde seguiam alguns alferes ‒ um deles negro e com semelhanças fisionómicas com o Mobutu ‒ desembarquei, na manhã de 26 de Dezembro de 1966, na cidade, então, chamada Lourenço Marques.

A chegada à baía onde desagua o rio Maputo impressiona logo pelo morro onde fica o Hotel Polana. A terra é vermelha. Depois, a cidade deixou-me maravilhado pela geometria das avenidas e ruas em perpendicular. Era uma urbe moderna, com tiques, muitos, britânicos, a começar pela condução automóvel à esquerda.

 

Esperava ter imediato alojamento na messe da Força Aérea, no edifício Funchal, junto à Câmara Municipal e à sé catedral com vista para a imensa praça dominada pela estátua de Mouzinho de Albuquerque. Não tinha… estava-se em plena season e não havia lugar nem em pensão ‒ por muito rasca que fosse ‒ nem em hotel ‒ por muito caro que fosse. Tive de comprar o jornal do dia, alugar um táxi e procurar um quarto mobilado para dormir nessa noite. Foi uma loucura! Contudo, deu para conhecer o pior e o razoável de Lourenço Marques. Ao fim da tarde, extenuado, ensopado em suor, desidratado, encontrei, num dos prédios mais característicos da cidade, na avenida Pinheiro Chagas, um quarto, na flat (tudo isto, desde edifícios identificados por nomes até à corrente utilização de palavras inglesas, tive de aprender em horas) de mãe e filha, senhoras naturais de Trás-os-Montes. Era no prédio Valente, imensamente grande e povoado pelas mais diferentes e estranhas pessoas. O meu quarto tinha varanda para a rua e era grande e asseado, à custa do trabalho de um jovem mainato.

À noite fui beber uma Coca-Cola, numa pequena cervejaria em frente. Quando o empregado negro me perguntou se queria pequena, média ou familiar, porque estava acompanhado da minha mulher, a única família que ali tinha, pedi familiar. Fiquei espantado com o tamanho da garrafa. Ficou na mesa, mais de metade!

 

Depois da apresentação no comando da 3.ª Região Aérea, fui mandado para a Delegação da Direcção do Serviço de Intendência e Contabilidade (DDSIC), que ficava no prédio Fiat. O chefe era um tenente-coronel, antigo aluno dos Pupilos, coadjuvado por um major, oriundo de miliciano, que nada fazia. Depois, havia dois tenentes também oriundos de milicianos e mais três alferes milicianos, se não estou com lapsos de memória.

Ninguém, para além do director-delegado (que queria tudo menos chatear-se com o serviço), percebia o que andava a fazer. Fazia-se!

 

Da guerra não havia notícia. Isso era coisa que acontecia lá para o Norte. E este Norte ficava a milhares de quilómetros de distância!

Aprendi que, afinal, na minha especialidade, havia oficiais, algumas, poucas, praças ‒ cabos do serviço geral ‒, sargentos do serviço geral, muitos, e muitas funcionárias civis; que, ali, em Lourenço Marques, se estava como se se estivesse numa estância de veraneio onde, para distrair, se trabalhava a um ritmo muito baixo. Isso acontecia também na unidade mais operacional da Força Aérea ‒ o Aeródromo-Base n.º 8 ‒ onde tinham sede a esquadra dos velhos Dakotas DC-3. Na maioria das situações os pilotos faziam viagens pela colónia, mas vinham dormir a casa.

 

Na DDSIC foram-me dadas funções de chefe de duas secções: a da subvenção de família ‒ um cabo do serviço geral tratava de tudo ‒ e a de verificação de contas ‒ era coadjuvado por um dos alferes milicianos. Havia uma outra secção de combustíveis e lubrificantes, chefiada por um tenente oriundo de miliciano, e a secção de vencimentos e ajudas de custo, chefiada por um tenente oriundo de miliciano coadjuvado por dois alferes milicianos. Existia uma secção de arquivo e expedição de correspondência.

No mesmo edifício, no piso de cima, funcionava o conselho administrativo do comando da 3.ª Região Aérea, cujo chefe de contabilidade era um capitão, também ex-aluno dos Pupilos e oriundo de miliciano. Diga-se, em abono da verdade, tinha um alto sentido da organização, era competente e exigente. Claro que, a sua educação militar não ia além da que havia aprendido nos Pupilos do Exército… e foi oficial general, bem mais tarde!

 

Por formação, quando tomei conta das minhas novas funções, quis fazer funcionar a verificação de contas, mas, para além de combater contra a inércia ‒ senti que era o único oficial interessado em que o serviço corresse célere ‒ comecei a ter sucessivos conflitos com o chefe da contabilidade do comando da Região Aérea; falávamos uma linguagem desigual. O tenente-coronel assinava todos os documentos que lhe desse para serem expedidos para o conselho administrativo, sem os discutir nem colocar em causa. Assim, eu estava coberto pela autoridade dele!

Ao cabo de dois ou três meses de sucessivos atritos com o capitão DF, o tal chefe da contabilidade do comando da Região Aérea, ele convocou-me para uma reunião. Havia percebido quanto eu estava interessado em trabalhar e fazer bem feito. Tratávamo-nos por tu. Tinha preparado um significativo volume de fotocópias, que me entregou, com a indicação de que as estudasse, pois, para além dele, mais ninguém sabia como funcionava administrativamente a 3.ª Região Aérea.

Fui para casa e fiquei espantado com o que li.

Anos atrás havia sido implantado um sistema de centralização administrativa, que virava toda a legislação do avesso. Um só conselho administrativo tinha de prestar contas à Fazenda Nacional: o do comando da Região Aérea, pois os restantes mais não eram do que antenas deste em todo o território, ou seja, funcionavam como delegações do conselho administrativo da Região Aérea. A autonomia dos comandantes das unidades era uma falsa autonomia; os restantes conselhos administrativos não eram conselhos, mas tão só secções do conselho administrativo de Lourenço Marques.

Ao mesmo tempo, tinha-se feito a centralização do processamento dos vencimentos e das ajudas de custo na DDSIC, daí o elevado número de sargentos, de verbetes de alterações de vencimentos e as máquinas de contabilidade, que eram operadas por duas funcionárias civis. Assim se justificava uma certa leviandade do director-delegado e uma quase irresponsabilidade dos oficiais da Delegação. Todo o verdadeiro trabalho estava centrado no conselho administrativo do comando da Região Aérea!

 

Por esta altura, um dos tenentes do quadro, o EL, acabou sendo promovido a capitão e foi nomeado gerente da messe de oficiais e sargentos da Força Aérea em Lourenço Marques. O director-delegado nomeou-me chefe, também, da outra secção ‒ a de vencimentos e ajudas de custo ‒ da delegação.

Consegui, até Agosto de 1967, pôr em dia o processamento das ajudas de custo, que estava atrasado cerca de seis meses. Consegui que a verificação de contas se fizesse sem entraves para o conselho administrativo da Região Aérea. Trabalhava para além das horas de serviço, mas senti-me satisfeito. Estar em Lourenço Marques ‒ ao contrário dos restantes oficiais ‒ não era estar no bem bom; era contribuir, o melhor possível para o bem-estar do pessoal da Força Aérea de todo o território moçambicano.

16.06.20

Fases da minha vida ‒ 21

(A bordo de um paquete)


Luís Alves de Fraga

 

Como alferes, por conseguinte, oficial, ainda que no posto de menor graduação, eu tinha direito a viajar na 1.ª classe do navio I (havia a 2.ª e a 3.ª classes). A cabine ou camarote que me coube em sorte não era grande coisa, embora fosse espaçosa e com vista para o deque de bombordo. Ficava mesmo ao fundo, quando se caminhava para a ré, junto da escada de acesso à piscina (um tanque de água salgada que chegava para se darem cinco braçadas curtas no sentido do comprimento e três ou quatro no da largura).

Havia o bar, a sala de jogo e de festa, o salão de refeições e o longo deque por onde se podia caminhar ou estar sentado à volta de mesas ou reclinado em cadeiras de repouso.

Navegar num paquete não era, para mim, novidade, por isso sabia que a bordo os passageiros têm distracções várias para ocupar o tempo. Naquela época os paquetes ainda não tinham a configuração de grandes hotéis flutuantes dentro de grandes centros comerciais. Eram confortáveis, com certo tipo de luxo clássico e algum requinte, mas viajar era viajar e não uma fonte de despesa.

Estes navios transportavam, também, carga nos porões que separavam a 3.ª classe, a vante, da 1.ª classe, a meia nau, e no espaço desta para a 2.ª classe, que ficava à ré.

 

As primeiras vinte e quatro horas de navegação, como vim a perceber, reservava-as o comandante do navio para nos ambientarmos ao espaço e às condições primárias de vida a bordo. Fomos descobrindo as salas, os salões, o bar e o modo como nos devíamos deslocar.

Chegámos ao Funchal, uma ampla baía que se não restringe ao espaço marítimo frente à cidade, creio, depois do almoço e, de imediato, tomei a decisão de visitar de novo, a cidade. Nunca são excessivas as incursões, pelo menos, naquela urbe. Ver o mercado dos lavradores e a baixa absolutamente cosmopolita é imprescindível, principalmente em época invernosa, como foi o caso. E a razão é simples: sai-se de Lisboa agasalhado para os nossos frios e chega-se ao Funchal e suporta-se andar sem sobretudo, sem luvas, bastando o normal fato, camisa e gravata. Mas eu tinha mais uma razão sobre todas as mais comuns para visitar a baixa funchalense: ir beber um copo de leite no celebérrimo café-pastelaria Golden Gate, o café que fica à esquina do mundo, no dizer de Ferreira de Castro. Estava a criar tradição, pois a primeira vez que estive no Funchal, com a idade de seis anos, o meu pai levou-me a beber o copo de leite ao, já então, afamado Golden Gate; fez-me um discurso sobre as virtudes daquele leite com gordura (por estranho que possa parecer ainda recordo o sítio exacto onde estava a mesa e como eram as cadeiras). Íamos a caminho dos Açores. Na volta tornámos a beber leite no estabelecimento. Quando fui, com a idade de quinze anos, agora sozinho, à terra do meu pai, repeti, nas duas viagens, o que havia feito antes (aqui para nós, sempre que volto, vou lá tomar um copo de… vinho Madeira e já não o de leite!)

 

Saímos ao fim do dia, já noite, e deliciei-me com o espectáculo de ver o Funchal iluminado semelhante a um grande presépio. É inesquecível a paisagem.

No dia seguinte, ao almoço, tínhamos companhia. Eu conto.

No salão de jantar havia várias mesas para quatro pessoas e uma maior, ao topo, que tinha seis ou sete lugares. Nessa surgiu o comandante do navio, como anfitrião, acompanhado de personagens que, admito, seriam militares de elevada graduação e pessoas distintas, na época. Recordo-me de uma senhora com cerca de trinta e tal anos, bonita, trajando, ao longo dos dias da viagem, vistosos saris.

Nas restantes mesas estava um oficial chefe de cada um dos diferentes serviços de bordo. Na minha calhou-me o castiço senhor Vinhais, chefe do serviço de máquinas, homem à volta dos cinquenta e poucos anos. Procurava fazer conversa de ocasião, mas, realmente, aquele não era o seu ambiente natural. Percebi que se sentiria muito mais confortável sentado à mesa de uma tasquinha de bairro a beber umas cervejas e a comer amendoins ou tremoços. O mesmo não acontecia com outros oficiais do navio com quem tive oportunidade de cavaquear naqueles longos dias de navegação.

Por cima do salão havia uma espécie de balcão ou um mini palco onde actuava, durante as refeições, um grupo musical com piano, violinos, e instrumentos de sopro. Estava consensualmente estabelecido que, ao jantar, se ia vestido mais a rigor.

De tarde havia, na sala de jogo e dança, sessões de bingo ou baile ou cançonetas para distracção dos passageiros da 1.ª classe. Noutras tardes havia corrida de cavalos, no deque, ou jogo da malha.

Mal o tempo começou a aquecer a piscina foi cheia de água do mar e, de manhã, davam-se umas braçadas e apanhava-se um pouco de sol.

Devo recordar que a maior estirada na viagem foi entre o Funchal e São Tomé, cerca de dez dias.

A partir de certa altura começou a tornar-se muito mais agradável ficar no interior do navio do que nos deques, pois o calor húmido era quase insuportável e os prazeres do ar condicionado começaram a mostrar a sua importância na região dos trópicos.

 

Desembarcámos em São Tomé, mas, por não haver cais de encosto, o navio ficou ao largo, usando os passageiros embarcações ligeiras para ir a terra. Fui logo no primeiro transporte e, no pequeno molhe da cidade, encontrei vários oficiais do Exército e, entre eles, estava um antigo companheiro dos Pupilos, em cumprimento do serviço militar obrigatório. Foi agradável e deu-me dicas para a rápida visita que fiz à cidade e aos arredores mais imediatos.

Comprei, a um vendedor ambulante, uma pequena e finíssima bengala ‒ tipo pingalim ‒ que me acompanhou nas duas comissões em África ‒ usava-a como adorno, à maneira britânica, debaixo do braço ‒ e desapareceu há anos, com grande pena minha.

Depois de sairmos de São Tomé reparei num casal, ainda jovem, embora mais velhos do que eu e a minha mulher, que, com muita frequência olhavam para nós, quando estávamos no bar. Criada a condição para chegarmos à conversa, vim a saber que se tratava do, já então, célebre locutor e artista de teatro Álvaro de Lemos. Faziam um casal bem-disposto que nos foi colocando ao corrente da vida em Lourenço Marques. Desconfiei de algumas coisas que me disse, nomeadamente sobre a ausência de clima de guerra na cidade. Achei impossível, mas, por delicadeza, não quis mostrar a minha surpresa. Em boa hora optei pelo prudente silêncio, como se verá mais para a frente.

 

Acostámos em Luanda, por um dia, outro no Lobito e visitei Benguela, depois foi a vez de Mossâmedes e tive oportunidade de entrar uns quantos quilómetros pelo deserto. Seguimos para a Cidade do Cabo, que visitei, tendo por lá passado uma noite. Aí vi o que era o verdadeiro racismo, praticado, aliás, de parte a parte.

A 1.ª classe, que quase ficara vazia em Luanda, encheu-se com sul-africanos. Nunca tinha visto coisa semelhante; entraram, deixaram a bagagem nos camarotes, e dirigiram-se ao bar de onde não arredaram pé. Bebiam uma cerveja logo seguida de um copo de aguardente! Faziam a viagem, quase não saindo do navio e escolhiam os mais pequenos e que iam mais a norte para terem mais tempo de bebedeira. O seu espanto foi, quando estávamos a chegar a Lourenço Marques, ver o alferes miliciano negro, fardado e a passear-se na 1.ª classe como era seu direito. Muitos viravam a cara para o lado e outros afastavam-se como se o oficial tivesse doença grave e contagiosa.

 

Interessante foi a noite de Natal a bordo, cuja tripulação enfeitou a rigor as salas de festas e a de jantar onde não faltaram os doces tradicionais da época, ainda que o bacalhau fosse um prato alternativo.

 

O desembarque em Lourenço Marques fez-me acordar para uma outra realidade: a guerra, que, julgava eu, iria ser o ambiente da capital da província, como na altura se designava.

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