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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

26.05.20

Fases da minha vida ‒ 14

(Ensino académico)


Luís Alves de Fraga

 

Na Academia Militar, no meu tempo, para se frequentar as armas e os serviços do Exército e o curso de pilotagem aeronáutica tinha de se estar habilitado com as alíneas (designação da época) de ciências físicas e matemáticas, ficando excluídos da carreira militar todos aqueles que tivessem marcada aptidão para as alíneas de letras (incluídas Direito, História e Filosofia). E o fundamento para tal modelo de concurso já começava a não fazer sentido, especialmente no que tocava às chamadas armas: infantaria, cavalaria e artilharia. E não fazia sentido, porque o desenvolvimento tecnológico era já, então, suficientemente avançado, dispensando a necessidade de saber física, química e matemática para fazer evoluir tropas em combate desde o posto de alferes a general. A prova absoluta disto mesmo tivemo-la, em 1973, quando guerrilheiros, na Guiné e Moçambique, sem formação especial, usando uma arma sofisticada ‒ o SAM 7 ‒ derrubaram aeronaves de elevado custo financeiro e grande valor operacional. Só este acontecimento ‒ se nos nossos estados-maiores militares se reflectisse sobre as coisas significativamente importantes ou se deixasse de usar a velha tradição castrense de que é assim, porque sempre foi assim ‒ era suficiente para alterar as exigências literárias de admissão à Academia Militar e, mais tarde, à Academia da Força Aérea, passando a incluir como passíveis de dar excelentes oficias os alunos com formação básica em letras.

 

Claro que este requisito académico tinha tido a sua razão de ser, muito mais de natureza política do que de âmbito científico. Em duas palavras a explicação é simples.

No ancient regime a nobreza tinha, naturalmente e por direito, lugar imediato no comando de tropas; no século XVIII começaram a surgir as primeiras escolas de formação de oficiais, em especial, para comandar tropas de artilharia e para dirigir trabalhos de construção militar. Era o despertar da cultura burguesa, que se impunha pelo saber e não pelo nascimento. A Revolução Francesa, acabando com a preponderância cultural da aristocracia, acabou circunscrevendo as ciências ditas exactas como fonte de uma nova cultura. Este facto teve imediatos e necessários reflexos na formação dos oficiais do exército na Europa. A Portugal chegou em pleno liberalismo, depois da vitória de D. Pedro, em 1834.

 

Para além da condição científica, antes referida, acresce que, na Academia Militar, tínhamos de, no primeiro ano lectivo, a par de cadeiras de índole castrense, fazer com aproveitamento as disciplinas do primeiro ano da Faculdade de Ciências: Matemáticas Gerais, Física Geral, Geometria Descritiva e Desenho Rigoroso. Era dose!

Todas eram leccionadas por oficiais do Exército, menos a regência de Geometria Descritiva, que estava entregue a um civil. Acrescentavam-se, depois, duas cadeiras semestrais tipicamente militares (uma delas foi, no meu tempo, a já referida Deontologia).

 

O facto de serem ministradas por docentes militares evidenciava um aspecto subtil, que, na altura, nos passou despercebido, mas, com o rodar dos anos e a minha própria experiência de vida, se me tornou evidente: a par do conhecimento específico de cada cadeira estava subjacente a análise implícita, devida ao professor, das qualidades castrenses dos cadetes. Isso era tão evidente no meu tempo (como o é ainda agora) que admira não ter sido percepcionado logo de imediato através de um simples facto, que passo a relatar.

Na universidade, um aluno que use de meios pouco ou nada lícitos para provar saber o que não sabe, obtém a classificação de zero e reprova; na Academia Militar, para além dessa imediata consequência, é punido disciplinarmente. Ou seja, fica marcada a sua propensão para a desonestidade (mesmo que natural na comunidade académica nacional) com a possibilidade de ter desfecho futuro no percurso formativo.

 

Ao longo do curso de três anos e de mais quase dois semestres lectivos de tirocínio (aquisição de experiência prática para o exercício imediato das funções de oficial subalterno ‒ alferes e tenente) os cadetes aprendiam matérias de índole universal e conhecimentos específicos de duas naturezas: os gerais ao oficialato e os particulares da sua arma ou serviço.

Exemplifico: os universais poderiam ser as Matemáticas Gerais; os gerais iam da topografia à estratégia, passando por história militar, fortificações, táctica geral, transmissões, motores, armamento e muitos mais; os particulares variavam entre os necessários às engenharias, à cavalaria, à infantaria, à artilharia e ao serviço de administração militar.

Curiosamente, havia o cuidado de ensinar as bases fundamentais, com acrescentos teóricos, que tornassem a Academia na escola formadora para toda a vida militar e não somente para alcançar determinados postos na hierarquia. Todos os cursos seguintes, para a progressão no oficialato eram acrescentos ao saber, podendo constituir condição de promoção, mas o conhecimento estrutural devia ser adquirido no fim dos anos lectivos do internato na Academia Militar. Assim, ao concluir o curso, eu sabia ler uma carta militar (entenda-se mapa) e perceber onde se situavam as várias unidades constitutivas de uma divisão de infantaria; percebia se estava instalada ofensiva ou defensivamente; se ocupava as linhas de altura ou os vales ou as encostas; sabia os fundamentos da estratégia ‒ a ciência dos generais ‒ e como e quando se devia passar à ofensiva ou à defensiva, distinguindo, no teatro de operações, as diferentes zonas fundamentais para sustentar o empenhamento das tropas em primeiras linhas. Enfim, eu alferes era quase general! Claro que, função do desempenho da actividade diária própria da minha especialidade, na Força Aérea, em poucos anos perdi essa bagagem teórica. Perdi-a eu tal como todos os meus camaradas do Exército e os pilotos-aviadores! Tínhamos muito mais em que pensar e a guerra colonial chamava por nós.

 

23.05.20

Fases da minha vida ‒ 13

(Formatação ou acção psicológica)


Luís Alves de Fraga

 

Depois dos cadetes do primeiro ano da Academia Militar estarem capazes de marchar com alguma cagança (pouca, ainda, muito pouca!) e de, parados, fazer as voltas todas do regulamentos ou abrir fileiras ou perfilar pela direita ou alinhar pela frente ou pelos lados, começou a formatação psicológica ‒ tão necessária a quem quer ser militar do quadro permanente ‒ que eu chamaria de acção psicológica.

Nesta fase foi fundamental a atitude do capitão Pedrosa, o Zé d’Adega, a quem me referi anteriormente. Era suficientemente alucinado, com total falta de sentido autocrítico, exagerado em tudo e, por isso, aquilo que deveria ser uma actuação dissimulada, sub-reptícia, disfarçada, para surtir um efeito mais profundo e muito mais marcado e marcante, passou a ser alvo de risadas, de chacota e quase de rejeição.

 

Na formatura da manhã, após o pequeno-almoço, quando tínhamos de seguir para as aulas, o capitão Pedrosa, fazia-nos recitar ‒ o termo é mesmo este ‒ o Código de Honra do Cadete da Academia Militar.

Não tenho dúvidas quanto ao interesse e valor desse código naquele momento crucial; deveria ser interiorizado por todos os novos alunos, pois era uma peça importantíssima na socialização, que supõe a carreira das armas, sobre a qual se deviam construir todos os esteios necessários à verticalidade e estruturação de quem vai comandar homens em situações extremas e que podem ter de dar e levar a dar a vida em prol de um objectivo nem sempre claro ou compreensível por quem combate.

A forma como era declamado o Código tornava-o ridículo e, por mais repetido que tenha sido, creio, hoje, os cadetes desse tempo, oficiais reformados e velhos, não o devem saber, embora tenham apreendido o seu sentido último. O que devia ser lembrado como chave de uma socialização nova e necessária, perdeu-se lá nas calendas da memória.

 

Mas houve outras formas, subtis, embora visíveis, de nos entrar na psique. Recordo duas a merecerem tratamento relevante: Mouzinho e a Deontologia Militar.

Vamos a elas.

 

O curso entrado na Academia Militar em Outubro de 1961 teve como patrono a figura de Mouzinho de Albuquerque. E compreende-se. A guerra colonial tinha começado em Angola e havia que chamar à memória dos cadetes desse ano a reminiscência de um grande capitão de África. Um militar que foi prestigiado no seu tempo por feito julgado quase impossível (devo acrescentar que, para mim, nessa altura da minha vida, ele fulgia lá no topo dos topos como exemplo único de bravura e de capacidade de servir a Pátria; estudos posteriores, análises feitas muito mais tarde com a frieza ‒ quiçá, o cinismo ‒ que os anos dão, levaram-me a perceber como de um militar comum, embora duro e intransigente, se faz um herói, mas isso ficará para depois…). E um patrono assim era uma responsabilidade para quem o tinha!

Mas antes, creio eu, já havia espalhados pelas paredes das camaratas e outros pontos bem pensados, quadros com retratos e transcrições de escritos de Mouzinho. Textos curtos, mas incisivos, e outros mais longos, mas memoráveis. A carta de Mouzinho ao príncipe real D. Luís Filipe, quando foi nomeado, por D. Carlos, aio do suposto futuro Rei de Portugal é o exemplo mais acabado dessa acção psicológica para nos moldar dentro dos quadros mentais do que deve ser um soldado. Dessa, sim, ainda hoje recordo algumas frases ‒ lapidares ‒ que me forjaram o modo de estar na vida e no meio castrense.

 

A Deontologia Militar, cadeira, creio, semestral, era ministrada pelo capelão da Academia, tenente-coronel licenciado em Direito e sacerdote católico, António dos Reis Rodrigues. Havia quem o designasse por Urubu, mas, indubitavelmente, era um homem superiormente inteligente, sabendo com muita exactidão o que se pretendia dele, enquanto docente daquela disciplina.

Quando nós, cadetes, fazíamos barulho ou conversávamos nas aulas ele interrompia e, com olhar severo, dizia:

‒ Se não respeitam o professor têm de obedecer ao tenente-coronel!

Note-se a força desta frase crua, mas acutilante. Ele integrava, em absoluto, a farda que usava, os galões que lhe conferiam uma autoridade que jamais poderia ser contestada por qualquer um de nós sem que tal fosse indicador de uma total falta de vocação militar. Este homem foi marcante pelos apontamentos da disciplina que regia e à qual tínhamos de dedicar tanta atenção como a todas as outras.

O meu relacionamento com ele, embora ainda dentro do âmbito da prática católica ‒ fui um dos poucos cadetes do meu tempo a aderir ao movimento, do qual ele era responsável no patriarcado de Lisboa, designado por Juventude Universitária Católica (JUC), que abandonei no segundo ano de frequência ‒ foi muito escasso e pouco dialogante.

O volume por onde estudávamos Deontologia Militar ‒ foi há poucos anos que me desfiz dele, estando em depósito na biblioteca dos Pupilos do Exército ‒ é ainda agora um excelente manual onde estão compiladas as ideias fundamentais do comportamento moral, cívico, político e castrense que devem orientar um oficial desde o mais baixo posto até ao mais elevado da hierarquia. Este manual foi estudado por todos nós e, por pouco que tenha ficado guardado na memória, há, em cada um, os resquícios necessários para termos completado a carreira sem ferir em excesso aquilo que era esperado fizéssemos.

Foi com o tenente-coronel António dos Reis Rodrigues que eu ‒ e todos os outros, que a tal tomaram atenção ‒ aprendi ser possível e, até, desejável que as Forças Armadas tomem o poder político quando aqueles que o detém já não representam os legítimos interesses da Nação!

 

A formatação não se ficava pelo que descrevi; ela era feita ainda mais subtilmente enquanto aprendíamos conhecimentos diversos.

Lá irei.

20.05.20

Fases da minha vida ‒ 12

(Direita volver)


Luís Alves de Fraga

 

Depois de cumpridas as primeiras formalidades de admissão e recepção de fardamento nós, os novos cadetes da Academia, começámos a ter os rudimentos de instrução militar. Formávamos em círculo e, no meio, um jovem tenente, pacientemente, ia explicando e exemplificando as várias posturas e movimentos.

Para mim tudo aquilo era uma repetição desnecessária, pois, durante, sete anos, no mínimo, treinei e ensinei a chamada ordem unida. Às vezes, olhava com sentido crítico o instrutor, pois, alguns, não pareciam fadados para o que estavam a fazer. Já nem me quero lembrar da figura triste da maioria dos meus camaradas acabados de vir do liceu! Eram descoordenados nos movimentos, desequilibrados nas voltas, meias voltas e reviravoltas. Tinham posturas pouco condizentes com aquela que se exige de um militar e, em especial, de um oficial.

Recordo com particular saudade aquele que, estando na roda, tinha as duas mãos nos bolsos; o instrutor perguntou-lhe o motivo para tal e, na resposta ‒ com o jeito mais ou menos faia, mais ou menos ingénuo, mais ou menos espertalhão do lisboeta típico ‒, disse que estava a tirar o lenço do bolso. O tenente não se deu por achado e inquiriu se o cadete tinha um lenço em cada algibeira. Para espanto de todos nós, o meu camarada ergue as mãos com dois lenços. Foi o desconcerto geral, até do instrutor, que fez os possíveis para se não dar por achado.

 

Em duas semanas, se não estou equivocado, aquela amálgama de jovens era já capaz de cumprir os mínimos para entrar em formatura e responder com suficiente capacidade às ordens dos cadetes mais antigos. Daquela massa descoordenada, nasceram hipóteses de militares com postura a condizer com a carreira que se iniciava.

Mas, o que a maioria não desconfiava, é que, a par da exigida coordenação, os instrutores estavam a moldar outros aspectos, que não só os motores!

 

Na verdade, a ordem unida ‒ nome que se dá aos movimentos conjuntos e síncronos de uma tropa ‒ visa domesticar as mentes dos instruendos; é uma forma de subordinar quem nunca foi sujeito à disciplina colectiva; esta é fundamental na vida castrense, pois, especialmente, em combate, ninguém pode ou deve pensar que alcança a vitória por si só, pois todos contam com todos.

Esta domesticação e moldagem passa por aspectos julgados meramente preparatórios do físico do futuro oficial, contudo, feita uma análise mais profunda e cuidada, podemos concluir que, afinal, o mais importante são aspectos psíquicos e, em simultâneo, disciplinares. Darei alguns exemplos.

 

Mesmo no começo dos anos 60 do século passado, quando todas as deslocações já eram mecanizadas, qual seria o interesse em obrigar os cadetes a, durante os dois primeiros anos, terem aulas de equitação? Aulas, diga-se em abono da realidade, violentas, tanto pelo desgaste psicológico como pela perigosidade física. É que não se tratava de aprender a passear a cavalo; aprendia-se volteio, montando em pêlo, saindo das aulas, por vezes a sangrar do ânus, tal o atrito contra a rude manta que cobria a coluna do animal; caía-se muito facilmente e corria-se o risco de apanhar um coice do cavalo. Em média eram cerca de quinze montadas no picadeiro. Havia cadetes que tinham terror das aulas de equitação.

Qual era a necessidade?

Uma só: aprender a impor a vontade própria contrapondo-a à vontade e manha do animal; superar o medo do que podia acontecer. Acima de tudo, dominar temores, superar dificuldades.

 

Não se esgotava na prática hípica os mecanismos para disciplinar e moldar caracteres. O salto do muro, o salto da vala, a corrida no pórtico, o salto para o galho, a subida do muro das osgas, a descida no slide sem qualquer segurança para além da força das mãos, o salto de uma camioneta em andamento com enrolamento no solo, a descida, com enrolamento, das escadas eram tantos outros exercícios que punham à prova a capacidade do cadete se transformar num oficial capaz de marcar pelo exemplo e liderar sem mostrar receios. No fundo, queria-se fazer crescer uma certa loucura controlada capaz de levar a correr riscos sempre que necessários.

De todos os meios usados pelos instrutores destaco dois, por me parecerem especialmente marcantes: a prova de agressividade e a corrida com máscara antigás. Eu conto.

 

Na prova de agressividade o instrutor mandava dois cadetes calçaram umas luvas de boxe pouco acolchoadas e cronometrava, creio, quinze ou vinte segundos para que os dois se envolvessem à pancada, sem qualquer restrição de golpes… valia tudo. Mas a coisa não era assim tão simples! É que a escolha era sempre desigual: um alto com um baixo, um melhor constituído com outro pior, um com características de ferocidade com outro aparentemente calmo. Vi um cadete ‒ que não chegou a oficial ‒ fugir à frente de outro que o foi; soube de vários narizes fracturados que, no entanto, levaram os intervenientes ao oficialato.

A corrida com máscara antigás foi executada nas manobras, no Campo Militar de Santa Margarida, no final do primeiro ano (1962), e consistiu no seguinte: após uma progressão por todo o terreno, feita em acelerado, durante vários quilómetros, a patrulha era obrigada a descer um vale com grande declive e a subir a vertente oposta, servindo-se das mãos para vencer a inclinação; chegados ao topo esperava-nos um instrutor com um jeep e máscaras antigás que, com a cara suada, colocávamos e, depois, tínhamos de correr atrás da viatura donde o tenente verificava se alguém aliviava a máscara para conseguir respirar. Pensei que morria, mas a frase insistentemente gritada ou murmurada pelos oficiais era sempre a mesma: «O limite da resistência humana ainda está por descobrir!»

 

Ao cabo de um ano de formação, na Academia Militar, estava-se longe de se ter conseguido mudar os jovens civis, antigos alunos do liceu, em oficiais do Exército, embora a maioria julgasse o contrário. Isso mesmo foi visível para mim, com a preparação militarizada adquirida em sete invernos de Pupilos do Exército, no contacto com os cadetes do segundo ano. Era perceptível em coisas simples, tais como a tentativa de praxe, da qual rapidamente desistiam, usando uma frase com que denunciavam a sua impreparação, ainda que, conscientemente, não a admitissem: «O infra vá-se embora, porque já é praça velha». Era também detectável nas crises de autoritarismo confundidas com capacidade de liderança.

 

Voltarei, mais tarde, a este aspecto, que reputo muito importante, para se perceber como uma formação mais longa faz toda a diferença entre um oficial miliciano e um oficial do quadro permanente (questão que, nem mesmo os velhos oficiais com elevada graduação, durante a guerra colonial, perceberam ao aprovar cursos de curta duração para milicianos com experiência de campanha).

18.05.20

Razões da aflição nacional


Luís Alves de Fraga

 

Naturalmente todos percebemos a necessidade e a urgência da retoma da actividade económica nacional. Temos familiares, amigos, conhecidos que ficaram sem emprego ou com salários muito reduzidos. Conhecemos alguém que teve de fechar a sua empresa.

 

Isto tem várias explicações, mas aquela de que não se fala é, na minha opinião, a mais importante de todas: o tipo de empresas existentes.

De facto, o tecido empresarial nacional é maioritariamente constituído por microempresas, mini empresas e pequenas empresas. São, por conseguinte, empresas que qualquer sopro as deita ao chão. Dão trabalho a pouca gente e não dão rendimentos significativos ao empresário. Estes não têm capital suficiente para suportar as convulsões do mercado, pois vivem nas margens do dia-a-dia.

 

Esta tendência caracteriza a cultura portuguesa: mais vale ser patrão do que ser empregado! Assim, há uma constante apetência para a criação de minúsculas empresas incapazes de suficiência financeira. Dependem, quase completamente, de empréstimos bancários; estão sempre com a corda na garganta.

 

Cabia aos poderes políticos alterar esta cultura, através da adopção de medidas tendentes à formação de quadros para trabalhos qualificados em empresas com dimensão média/grande; através de facilitar o investimento estrangeiro não em empresas de exploração de mão-de-obra de baixo custo, mas empresas capazes de absorver trabalhadores de médio/alto gabarito especializado.

 

Assim, em resumo muito sintético, o que sempre fez falta em Portugal foi governantes com visão estratégica capaz de estudar as conjunturas e os contextos dialécticos, gerando respostas integradas e altamente supervisionadas para determinar políticas formativas, fiscais e financeiras que contrariem hábitos velhos e frágeis num mundo de tremenda concorrência.

17.05.20

Fases da minha vida ‒ 11

(Academia Militar, uma surpresa)


Luís Alves de Fraga

 

Dei entrada na Academia Militar ‒ aquartelamento da Amadora, antigas instalações do Grupo de Esquadrilhas de Aviação República (GEAR) ‒ no dia 19 de Outubro de 1961.

Não ingressámos todos no mesmo dia; fomos entrando até perfazermos um total de duzentos e cinquenta e sete cadetes, se a memória não me falha. Trajávamos, naturalmente, à paisana, acompanhados de uma mala para transportar os nossos pertences, e foi vestidos à civil que nos dirigimos para um moderno ‒ na altura ‒ anfiteatro situado num conjunto de edifícios claramente de construção recente. Viemos, mais tarde, a saber tratava-se do palácio do Maravilhas.

Usou da palavra um capitão de infantaria ‒ era o comandante da 1.ª companhia de alunos ‒ os infras ‒ e chamava-se Pedrosa, cuja alcunha, também mais tarde aprendida, era Zé d’Adega. Sujeito espalhafatoso, nitidamente a querer impressionar os novos cadetes, exagerado nos movimentos de corpo, arengou durante, talvez, mais de meia hora.

 

Três ou quatro ideias retive desse discurso: primeira, ia-nos ser entregue um livro no qual estava previsto tudo sobre o modo como nos devíamos comportar na Academia e fora dela, bem como tudo o que tínhamos direito e tudo os que nos estava vedado e, ainda, tudo sobre como deveríamos requerer o quer que fosse. Eram as ISI (se a memória não me atraiçoa) ou seja, as Instruções de Serviço Interno; segunda, estávamos ali para sermos oficiais do Exército português; e, terceira, a carreira das armas não era financeiramente rendosa para ninguém, mas, entre nós, estariam, pela certa, alguns futuros generais; quarta, quem se tivesse enganado na escolha do futuro poderia e deveria sair imediatamente. Ninguém saiu.

 

Depois de identificarmos a nossa cama, o armário e o baú na camarata ‒ dividida em compartimentos separados por um murete de cerca de dois metros de altura, alojando dez cadetes ‒, fomos receber os artigos de fardamento: desde o bivaque às botas, passando por lençóis de cama, de banho, toalhas, camisas, fronhas de almofada, cinto, blusão, calças, polainitos.

 

Cadetes mais antigos abeiravam-se de nós e, chamando-nos infras, ensaiavam as primeiras as acções de praxe, as quais se centravam na tentativa de intimidar o recém-chegado, fazendo-lhe perguntas, às vezes, bastante estúpidas.

 

Os únicos antigos alunos dos Pupilos admitidos no primeiro ano da Academia foram, para além de mim, o António José Mendes Dias Trancoso e o Manuel António Duran dos Santos Clemente ‒ este havia sido, no Instituto, o comandante do batalhão de alunos, no ano transacto ‒ que, por nos destinarmos ao Serviço de Administração Militar, ficámos na mesma camarata, no mesmo compartimento e na mesma mesa, no refeitório.

 

Para quem, como eu, vinha de um internato militarizado, as instalações, a vida e as liberdades oferecidas no aquartelamento da Amadora corresponderam a ter saído de um calabouço e a ter dado entrada numa pensão de quatro estrelas!

Não me assustavam os horários, nem as formaturas, nem as continências, nem o rigor exigido no comportamento; o que me espantava era o facto de nas camaratas haver aquecedores, funcionando a água quente ‒ vinha habituado a rapar frio no Inverno ‒, ao pequeno-almoço poder escolher várias alternativas de alimentos ‒ ou todos, se para tal tivesse estômago ‒ desde o simples café com leite com pão e manteiga, até salsichas, iogurtes, ovos, mel, doce, cereais, ao almoço e jantar haver dois pratos e fruta e doce, vinho branco, tinto e água, poder fumar nas aulas práticas, consumir bebidas alcoólicas no bar de alunos, existir uma sala de música para os maluquinhos dos clássicos escutarem, no maior silêncio, as peças preferidas e, maravilha das maravilhas, sair entre o fim das aulas ‒ dezassete horas ‒ e regressar, devidamente autorizado, às dez da noite. A acrescentar a tudo isto, ainda recebia trezentos escudos, no final do mês, representando um alívio da conta bancária, que tinha de gerir cautelosamente, onde o meu pai guardara, mensalmente, o abono de família, que lhe era devido por ter um filho. Foi desse dinheiro que paguei explicações e tudo o mais necessário para concorrer à Escola Naval e à Academia Militar.

A admissão na Academia deu-me a mais completa noção de liberdade nunca sentida nos sete anos anteriores, aquando da estadia nos Pupilos do Exército.

 

Naturalmente, este sentimento não durou todo o tempo de formação. Seria, até anormal se tal sucedesse. Vingou até às férias do Natal. Depois tudo se tornou rotineiro e ganhou as dimensões de uma nova realidade.

Lá irei, lá irei.

 

14.05.20

Fases da minha vida – 10

(Na despedida)


Luís Alves de Fraga

 

Acabado o concurso à Academia Militar, feita a cadeira de Geometria Descritiva, restaram-me uns dias, talvez uma semana para gozar, efectivamente, férias… em Lisboa, na casa dos meus pais.

Havia sido um Verão intenso, pois o concurso à Escola Naval ‒ minha primeira escolha no fim do segundo ano de contabilistas ‒ começava como, creio, ainda começa, logo no final de Julho ou primeiros dias de Agosto e voara o tempo em voltas burocráticas e em preparar-me ‒ com auxílio de uma explicadora ‒ para o exame de Matemática e para o de Geografia. Fiz as provas psicotécnicas e académicas e logo nestas fui excluído, não por causa da Matemática ‒ tinha uma boa cunha suficiente para superar as minhas carências ‒, mas por causa da Geografia onde tudo correu bem até à pergunta de desenvolvimento.

Merece que conte.

 

No final do primeiro trimestre do ano de 1961, como é sabido pelos mais velhos, começaram as operações militares em Angola e os jornais transbordavam, ainda em Julho e Agosto, de um patriotismo exacerbado. Os Portugueses andavam exasperados com os massacres levados a cabo no Norte de Angola, pela UPA. Vivia-se o espírito do Rapidamente e em força e do Angola é nossa, slogans lançados por Salazar num discurso feito algures.

Ora, o comandante Renato Sequeira de Brito, professor da cadeira de Geografia, na Escola Naval, também antigo aluno dos Pupilos do Exército, entendeu levar os candidatos a mostrarem o que pensavam sobre o futuro de Angola, naquele momento.

Ciente de que estava a responder a uma pergunta para ingresso no ensino superior militar, entendi que o patriotismo próprio de uma prova de exame de instrução primária não tinha ali cabimento e, se o pensei, melhor o coloquei em prática: achei por bem dizer que, embora a resistência de circunstância fosse necessária, a prazo, como acontecera com o Brasil, Angola, viria a ser independente.

Jesus, Virgem Santa Maria, o que eu fui dizer! Reprovado por falta de patriotismo foi a resposta dada a um dos oficiais, também de Administração Naval, o comandante Diogo Afonso, um dos que intercedia por mim no concurso. De nada valeram as racionais chamadas de atenção. O regente da cadeira era, pelos vistos, um visionário, um crente em soluções impossíveis e, acima de tudo, um homem do Estado Novo.

Acaba aqui a história que me levou a não poder ser hoje, provavelmente, um capitão-de-mar-e-guerra, reformado, da nossa Armada!

 

Sem férias decentes e sem resultados do concurso à Academia Militar o meu pai entendeu ‒ e bem ‒, no dia do começo das aulas nos Pupilos mandar-me apresentar para frequentar o terceiro ano do curso de contabilistas. E eu fui, porque nem outra coisa me passou pela cabeça! Poderei ter achado violento ‒ se achei, já não me lembro ‒, mas uma ordem do meu pai não era para ser refutada.

Fui e ainda tive um ou dois dias de aulas. Mas ‒ aqui, presumo, terá havido mão da minha mãe ‒, talvez no terceiro dia ‒ lá para 9 de Outubro, que foi segunda-feira ‒, de manhã, avisaram-me que o meu pai estava na parada da 2.ª Secção e queria falar comigo. Fui ter com ele e disse-me: «Vamos ser recebidos pelo senhor director». Não me deu a curiosidade de averiguar do motivo e fui com ele direito ao gabinete do coronel Ferreira Gonçalves.

 

O diálogo começou por o meu pai expor que eu estava ali porque não se sabia, ainda, o resultado do concurso à Academia Militar, que não tinha tido férias e julgava justo eu ter alguns dias de repouso, se fosse aprovado nas provas já concluídas. O director, muito amável, com uma amabilidade que lhe desconhecia, prontificou-se a telefonar para o gabinete de estudos da Academia e saber se eu estava ou não na situação de ser admitido.

Não tardou a resposta: eu já era cadete da Academia Militar e poderia ir para casa. Contudo, o inesperado, o impensável, o inacreditável, aconteceu, e passo a relatar.

O rigoroso e nada simpático coronel Alfredo Ferreira Gonçalves, director do Instituto dos Pupilos do Exército, disse, textualmente, ao meu pai:

‒ Senhor Fraga, não deixe o seu filho ir para a Academia Militar; ele tem um outro futuro na frente!

Fiquei estarrecido. O que era aquilo? O meu director não queria que eu fosse militar de carreira? Poderiam contar-me tudo, mas aquilo que acabara de ouvir jamais acreditaria.

O meu pai, com a tranquilidade que lhe era habitual, respondeu:

‒ Senhor director, o Luís Manuel é quem decide. Os olhos de ambos estavam fixos em mim. Tinha arquitectado vários planos B para o caso de não entrar na Academia, mas não previra este cenário. Eles esperavam uma resposta.

‒ Eu quero ir para a Academia Militar!

Acabara de cortar definitivamente o cordão umbilical que me prendia à Casa, ao director, ao curso de contabilistas e a outras hipóteses que se me abririam na vida. Defini, naquele momento e com aquela frase, o meu presente.

11.05.20

Fases da minha vida ‒ 9

(Preparação para nova mudança)


Luís Alves de Fraga

 

Depois da morte de uma paixão, depois de um chumbo, depois de uma excomunhão o meu regresso ao Instituto dos Pupilos do Exército já só tinha um significado: concluir o ano lectivo e tentar ingressar ou na Escola Naval ou na Academia Militar.

Procurei alcançar o maior rendimento possível nos estudos, mas, como já disse, aquele ano lectivo era muito difícil. Esgadanhei nos livros o mais que pude, contudo, as notas não foram famosas. A minha natural propensão não ia no sentido das ciências físicas nem matemáticas. Estar naquele caminho representou muito esforço e muito sentimento de suficiência, porque era um aluno só suficiente!

 

Chegado a Junho fui sujeito a várias provas orais e lá me safei com uma média baixinha. Mas…

Há aqui uma história, da qual só tive conhecimento um ano depois, que merece ser relatada. Quem ma contou foi, nem mais nem menos, o director dos Pupilos do Exército, era eu já cadete da Academia Militar, quando, uma vez, fui visitar a 2.ª Secção do Instituto.

 

Do que me disse o coronel Ferreira Gonçalves, em Junho de 1961, na reunião dos professores, antes dos exames, ao discutir-se quem aprovava ou não, eu estava em vias de ser excluído, por falta de positivas em mais de duas ou três disciplinas. Perdeu-se tempo a analisar o meu caso e, porque também professor, o padre Ruy Corrêa Leal foi taxativo na sua opinião: havia que eliminar-me, sem apelo nem agravo. Rua, com as pernas cortadas!

Foi o director quem exigiu que me fosse dada a possibilidade de ir a exame escrito e oral. Fui e passei. Todavia, a razão para o austero director me contar este episódio, que me seria completamente alheio, está ligada a uma outra história. Aí vai.

 

Como já relatei, desde 1959, com a reforma da Escola do Exército em Academia Militar, os alunos dos Pupilos, com o curso de contabilistas, poderiam concorrer a todas as armas e serviços, porque, cumulativamente, estavam habilitados, também, com o, então designado, 7.º ano alínea f) dos liceus. Ora, havia uma das cadeiras correspondente àquela equivalência que só era leccionada no último ano do curso de contabilistas, donde, porque eu estava a concorrer com o penúltimo, a aceitação às provas na Academia Militar era condicionada à aprovação nessa derradeira disciplina, que deveria fazer em época especial, determinada pelo director do Instituto. Não era fácil a tal disciplina em falta; tratava-se de Geometria Descritiva, coisa de que eu nunca ouvira falar!

 

Lá pelo meio de Agosto ‒ creio, já depois de ter feito algumas das provas de admissão ‒ tive de ir aos Pupilos e encontrei o severíssimo director que, de chofre, me lançou as perguntas: «Quando é fazes exame de Geometria Descritiva? Sabes alguma coisa da matéria?». Olhei-o nos olhos e respondi: «Não sei nada e faço quando o meu director mandar».

Marcou-me o exame para treze dias depois e deu-me o programa da matéria para eu saber o que tinha de estudar. Olhei para aquilo exactamente como diz o provérbio popular: como boi para palácio!

Nesse mesmo dia consegui arranjar uma explicadora, que levava um preço módico, para me ensinar o programa em lições intensivas com duração de cinco ou seis horas diárias.

 

Descobri que tinha uma capacidade, até aí, minha desconhecida: ver no espaço, ou seja, imaginar, em abstracto, objectos que não existem. Este facto foi fundamental para perceber a forma de representar no papel esses objectos, idealizando-os atravessados por rectas ou por planos. Em doze dias passei do completo desconhecimento da Geometria Descritiva para a capacidade de transpor da representação no 1.º quadrante para o 4.º.

No décimo terceiro dia apresentei-me a exame escrito, com a presença do director e, depois de concluído, fui sujeito a prova oral, cerca de meia hora após ter sabido da aprovação com uma nota que, se aceite, iria ser superior à do meu condiscípulo que havia frequentado o ano completo de aulas; assim, a classificação teria de ser mais baixa. E foi.

 

Na opinião do coronel Ferreira Gonçalves, só um indivíduo muito inteligente teria condições para fazer o que eu fiz!

Juro, na altura, não liguei a mínima importância ao facto; o que queria era entrar para a Academia Militar. Agora, era esperar pela saída dos resultados do concurso. Mas, para o director, a minha aprovação naquela cadeira confirmou a aposta que havia feito dois meses antes, quando o padre Ruy me queria ver excluído dos Pupilos por falta de aproveitamento escolar!

 

Até chegar à Academia Militar falta, ainda, um episódio passado nos Pupilos entre o director e o meu pai, com a minha presença.

Vê-lo-emos mais tarde.

08.05.20

Dia Mundial da Língua Portuguesa


Luís Alves de Fraga

Porque julgo muito interessante, deixo aqui um vídeo que nos afaga o ego linguístico mesmo quando temos de viver com o chamado Novo Acordo Ortográfico (NAO) o qual nos desvincula das origens etimológicas das nossas palavras.

 

 

08.05.20

Centeno e a entrevista


Luís Alves de Fraga

 

Ontem, na RTP 3, Mário Centeno esteve à conversa com o especialista em assuntos económicos daquela estação. Uma entrevista sem agressões nem ataques inquisitoriais. Uma entrevista conduzida com o declarado desejo de deixar o ministro das Finanças expor os seus pontos de vista de modo a esclarecer os Portugueses.

 

Na sequência, ficaram claros alguns aspectos interessantes: o saldo orçamental previsível para o final deste ano vai ser deficitário na ordem dos 6% do PIB; tal não é visto, pelo ministro, como uma calamidade, se comparado com a vitória da gestão de 2019 (esta serviu, na opinião do governante, para provar que somos capazes de grandes recuperações financeiras); está garantido o apoio da União Europeia ‒ uma parte a fundo perdido e outra por empréstimo; não parece delinear-se, como opção para a crise económica, um tempo de austeridade, embora tenha de haver sacrifício. O ministro enfatizou a crise sanitária e não a crise económica.

 

Curiosamente, um comprovado deslize de Centeno foi quando quis comparar as soluções da União Europeia com as dos EUA. Aí falhou em absoluto!

Centeno sabe muito de finanças e de gestão dos dinheiros públicos, mas sabe pouco de História e, menos ainda, de Ciência Política.

Explico.

 

Os EUA são uma federação de Estados ‒ ou seja, cada um dos territórios integrantes perdeu totalmente a soberania, que foi cedida ao governo federal ‒ enquanto a União Europeia é, ainda, uma confederação de Estados ‒ ou seja, cada um dos integrantes mantém a soberania mais ou menos intacta, por isso, tem Ministério de Negócios Estrangeiros e Ministério da Defesa.

Esta aparente semelhança faz toda a diferença, pois na nossa confederação ainda prevalece como valor maior o nacional, ou seja, em situação de perigo, de qualquer natureza, o governo do Estado confederado chama a si toda a autoridade para tomar decisões que dependem da sua Constituição Política e não da do governo da confederação, que pode ou não existir.

Os EUA deixaram de ser uma confederação com a vitória dos Estados do Norte sobre os Estados do Sul, aquando da guerra civil. Assim, pode falar-se de uma consciência nacional americana enquanto que na União Europeia não há indicadores de nacionalismo europeu.

Mário Centeno meteu água na comparação, porque esqueceu que a independência dos Estados federados americanos só gere uma autonomia regional e os Estados europeus têm soberania nacional.

 

É nesta diferença que reside a dificuldade de entendimento na Europa quando se pretende tomar decisões a vinte e sete: há falta de identidade comunal, por excesso de identidade nacional.

Os burocratas europeus, nomeadamente Centeno, gostariam de já ter ultrapassado este empecilho ‒ daí que o lapso de ontem tenha saltado tão espontâneo ‒ mas, na verdade, não se conseguem extirpar centenas de anos de história, nos quais prevaleceu a luta pela soberania nacional, para cairmos numa identidade jamais existente.

Como tenho batalhado desde os anos 80 do século passado, o mais que se devia construir na Europa era um mercado comum, pesem embora, os inconvenientes que agora se sentiriam, nesta crise pandémica.

 

Conclusão a tirar do que deixei dito: Centeno não pode ‒ não deve ‒ levar tão a peito a União Europeia, pois corre o risco de esquecer os interesses nacionais, que são os prevalecentes neste arranjo político no continente.

07.05.20

Consumo ou austeridade?


Luís Alves de Fraga

 

Ontem vi parte de um painel liderado pelo José Gomes Ferreira, na SIC, onde peroraram uns senhores mais do que comprometidos com as grandes empresas e com a alta finança nacional; só um terceiro, professor do ISEG, me pareceu descomprometido e isento.

 

A questão em debate era reflectir sobre como se recuperará a economia portuguesa. Dois dos intervenientes apostavam forte nas medidas de austeridade, ou seja, levar novamente os funcionários do Estado e pensionistas a pagarem a crise de modo a que, com todos os alívios possíveis, as empresas recuperem os lucros perdidos. O professor defendeu, e bem, que a economia readquire pujança através do aumento do consumo e, para tal, a austeridade é absolutamente inadequada, pois, sem dinheiro não é possível comprar.

 

As divergências entre os intervenientes no painel resultam de dois ângulos de análise: ou se pede dinheiro emprestado para superar a crise ou vai-se buscá-lo internamente, evitando o endividamento.

Na primeira perspectiva, transfere-se o pagamento da crise para o futuro, quer dizer, quem vai liquidar a dívida são os nossos filhos e os nossos netos; na outra solução, quem se lixa somos nós, os quase a morrer, os com alguns anos de vida e os com muitos anos de vida pela frente. Ainda mais resumidamente: uns preferem comprometer o futuro e outros o presente imediato.

 

Pessoalmente, aposto na primeira hipótese: comprometer o futuro. Não o faço porque quero empurrar com a barriga o que se passa no presente. Não!

Opto pela solução dos empréstimos por várias razões, das quais destaco duas, que, presumo, são basilares: as economias não tendem, ao longo do tempo, a encolher, mas sim a expandir-se; o preço do dinheiro vai baixando com a passagem do tempo.

Vejamos com o pormenor possível.

 

Foi em 2009 que se liquidou totalmente a dívida contraída cento e cinquenta anos antes por Fontes Pereira de Melo. O peso dos juros da dívida foi tornando-se mais baixo, porque em simultâneo, ocorreram dois efeitos: a desvalorização do dinheiro (efeito da inflação) e aumento da economia nacional (o mesmo é dizer, da capacidade produtiva do país), que deu uma dimensão menor ao valor em dívida.

É evidente que, os juros das dívidas contraídas agora, vão ser, para a nossa capacidade produtiva momentânea, altos, mas, o objectivo, lá mais à frente no tempo, é fazer crescer essa tal capacidade de produção. Numa palavra, esta opção corresponde a uma aposta no enriquecimento da Nação.

Claro, o objectivo dos empresários, investidores na economia, não é o de enriquecer os netos ‒ qualquer um deles ri-se dessa ideia, pois sabe que, deixando boas infraestruturas financeiras ao morrer, os netos, se souberem administrá-las, as vão ampliar ‒, mas o de se enriquecerem a si mesmos, e já, por isso, quanto mais benefícios colherem no momento presente, melhor será, mesmo que à custa do mau passadio dos seus trabalhadores.

 

Espero ter sido suficientemente claro para que os leitores possam compreender os objectivos em presença e, assim, possam formar opinião sobre se a saída para a crise se faz com austeridade ou com consumo.

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