Fases da minha vida ‒ 7
(A Conferência)
Não foi a leitura do pequeno volume sobre a vida de S. João de Deus que se tornou determinante para a minha formação católica, quando tinha treze/catorze anos e estava nos Pupilos do Exército; ele foi a espoleta que me despertou para a exploração de uma outra forma de ser católico, a qual ia, necessariamente, muito para além da lengalenga dos pai-nossos, das ave-marias e de outras orações usuais ou mesmo da assistência à celebração da missa aos domingos.
Essa outra forma passou por perceber a profundidade do que se exigia para ser católico. Sê-lo, descobri, não passava somente ‒ e até, talvez isso fosse secundário ‒ por entrar em certos rituais e participar neles; passava por compreender os principais sacramentos daquela religião e, muito em especial, o da confissão que, continuo a achar, é um dos mais importantes, por ser o mais formativo.
É sobre isto que me vou debruçar, para se perceber esta fase da minha vida, que, depois de uma sólida ascensão, entra em declínio até por volta dos meus vinte e seis anos e desaparece em absoluto no meu regresso de Moçambique, em 1969.
A confissão auricular pode ser, no mínimo, duas coisas: um processo de regularizar contas com Deus e um caminho para o aperfeiçoamento individual.
Se olhada na primeira perspectiva ‒ creio ser a mais comum entre os que se dizem católicos ‒ a confissão é uma farsa para ambas as partes: para o que se julga crente e para Deus.
É uma farsa, porque lhe falta o elemento mais necessário, aquele que a torna um mecanismo de santidade, e que resulta da conjugação de dois sentimentos: o verdadeiro arrependimento e o desejo da não voltar a pecar, o mesmo é dizer deixar de praticar os actos determinantes da necessidade de confissão. Uma confissão com um arrependimento a prazo é um embuste para aquele que se confessa, pois sabe que não tem intenção de emenda; confessa agora, peca mais logo e torna a confessar amanhã. Isto é uma entremez!
Para ser valiosa, a confissão tem de ser antecedida do exame de consciência o qual, em boa verdade, não é mais do que uma autocrítica, que o católico preocupado com a sua salvação, fará constantemente, ou seja, estará sempre de sobreaviso quanto ao seu comportamento.
Esta era a tarefa que assumi entre os meus treze/catorze anos e os vinte. Cheguei a punir-me ‒ sem necessidade de nenhuma recomendação sacerdotal ‒ privando-me de comer ou pão ou fruta às refeições face ao meu exame de consciência!
Eu não brincava em serviço. E estou grato a mim mesmo e à Igreja Católica, pois foi deste modo que me formei, que moldei e disciplinei a minha personalidade. Acima de tudo, aprendi que posso mentir a muita gente, mas tenho a plena consciência da mentira, porque não minto a mim mesmo.
‒ Mas não vivi a minha juventude com todas as malandrices próprias do tempo e da época? Fui um anjinho?
‒ Nem pensem!
Fiz tudo o que devia fazer até aos meus vinte anos, mas com consciência do pecado e com arrependimento e desejo de não voltar a repetir. Claro, quanto mais os anos iam avançando, mais fui tendo a noção de que estava a entrar no plano inclinado da traficância com o divino: pecava, pedia desculpa e voltava a pecar, sendo que o propósito, sincero e verdadeiro, de emenda começava a ser, antes do mais, uma traficância comigo. Havia, para me tranquilizar a consciência ‒ mas só para isso ‒, uma intenção de não voltar a repetir, contudo, quando a ocasião surgia, a vontade reduzia-se a quase nada.
Foi neste contexto que, por volta dos meus dezassete anos, o capelão Ruy Corrêa Leal, nos propôs ‒ a quatro dos mais assíduos católicos de então ‒ a criação da delegação da Conferência de São Vicente de Paulo. Assumiu a presidência o Moita, a vice-presidência eu, como secretário ficou o Pamplona e como tesoureiro o Duran Clemente.
Não sei nem nunca me passou pela cabeça averiguar qual a base lógica para esta escolha, mas, seja como for, as únicas relações que me assaltam são de duas ordens: as idades, que eram muito idênticas e a distribuição por cursos: dois frequentarem os de indústria e dois o de comércio.
A nossa acção começou, primeiro, por arranjar, entre os alunos católicos de todas as idades, adesão à Conferência e, de seguida, com fundos financeiros angariados entre nós, o capelão e outros apoios externos (uma choruda participação da mãe do falecido marquês de Fronteira, Fernando de Mascarenhas, nossa vizinha), comprar géneros alimentícios para fazer pequenos cabazes que levávamos, ao fim das tardes de sábado, a casas de famílias residentes no bairro do Calhau.
As casas eram, na sua maioria barracas de madeira e zinco e as poucas de alvenaria tinham uma só divisão.
Ali aprendi o que era a real miséria ‒ financeira e moral ‒ destes bairros onde habitava a pobreza. Ali aprendi que as barracas têm um cheiro típico e uma ambiência interna característica. Ali vi a violência e a indiferença sociais exercida pelos possidentes sobre os que nada têm e que, tendo dignidade, acabam-na perdendo por força da indiferença de quem julga poder mais. Mas, ali, acima de tudo, comecei a aprender que a caridade não resolve o problema fundamental da falta de recursos e muito menos o da miséria.
Aprendi eu e mais alguns dos meus companheiros, incluindo os mais novos, que, tempos depois ‒ e não terá sido por acaso ‒ passaram a militar nos diferentes quadrantes políticos da esquerda portuguesa.
Em jeito de balanço, posso dizer, a vivência nos Pupilos do Exército, nos três últimos anos, marcou, por um lado, a culminância da minha prática católica e o começo do declínio desse aspecto. A grande vacilação deu-se quando surgiu a grande primeira paixão da minha vida, levando-me a pensar que a figura bíblica de Eva não aparece por mero acaso, ainda que não a veja como justificativa para a perdição do homem, bem pelo contrário.