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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

31.03.20

Sonhando… prometo


Luís Alves de Fraga

1959 - No «monte» Bicicleta.jpg

 

Se recordar é viver, creio, sonhar é recordar.

Esta noite, já sobre a madrugada, tive um sonho que me colocou, agora, em plena actualidade, na Aldeia Nova de S. Bento da minha juventude.

Ao acordar as imagens oníricas ainda estavam vivas; no momento em que escrevo, a maioria desapareceu para dar lugar a uma certeza: na minha conversa com o dono do carro, que me transportava, eu tinha consciência de já não reconhecer a terra dos meus Verões, a aldeia do calor seco, das sombras aprazíveis, dos prédios brancos de cal com faixas azuis a ladear as janelas e as portas. Aflitivamente queria explicar ao jovem condutor os locais por onde andei e ele nem os identificava nem ouvira falar das pessoas por mim referidas.

Onde estava o chafariz-bebedouro para os equídeos, lá na estrada a caminho do recinto da feira? E a escola primária? Quem era o senhor Bartolo? E a papelaria do senhor Coelho? E a velha taberna, junto da qual parava a camioneta da carreira de Beja, onde, ao entardecer, se ouvia o “cante” alentejano? E a exígua pensão bem próxima da igreja? E a farmácia, propriedade dos pais do major-general Manuel Monge, oficial de cavalaria, homem de confiança do general Spínola?

 

Desde a idade dos doze anos até aos meus vinte e três, com excepção de uma só época, passei as férias de Verão num pequeno monte comprado pelos meus pais na zona ou sítio conhecido, então, por Cova do Homem, a pouco mais de dois ou três quilómetros da Aldeia. Ficava junto a uma ribeira, a meia altura de uma suave encosta fronteira ao monte da D. Dulce (sobrinha do senhor Barata: um bom partido) e do senhor Moreira. Eram uns quantos hectares de figueiras e oliveiras onde, pelo meio, se semeavam os cereais (cevada-aveia, trigo e, para descanso da terra, tremoço).

Em Aldeia Nova de S. Bento fiz as minhas primeiras arremetidas de namoro: deitei o olho para a Vitória, moça engraçada, trigueira, com a minha idade, estudante, sobrinha do proprietário de uma mercearia numa esquina, lá ao fundo. Não tive grande sorte! A pasmaceira da vida na Aldeia não proporcionava encontros frequentes e os rapazes e raparigas tinham códigos de aproximação bem distintos dos que já se usavam em Lisboa. Estou a reportar-me aos anos que medeiam entre 1953 (a 2.ª Guerra Mundial tinha acabado havia oito Primaveras!) e 1964.

 

Porque os estios da minha juventude foram vividos entre o monte e a Aldeia, tão próxima da fronteira de Vila Verde de Ficalho ‒ onde bastas vezes ia de bicicleta ver passar os automóveis a entrar e sair de Espanha ‒, tive a oportunidade de perceber, de maneira efectiva, o que era, então, a miséria de quem dependia de trabalho sazonal, mal pago, ficando o resto do tempo a viver de migalhas. Vi como se fazia a selecção dos homens e mulheres que iam à praça para serem contratados para a jorna; vi como iam ficando para o fim os velhos, os mais fracos e os menos rápidos nessa luta entre o menor salário e a maior quantidade de trabalho; vi como regressavam a casa aqueles que sobravam sem hipóteses de angariar sustento para o dia. Vi talegos com um naco de pão e um pouco de toucinho para cobrar forças durante a jornada e vi talegos cheios de desespero por estarem vazios.

 

Por esses tempos, ouvi contar, quase em primeira mão, a morte de Catarina Eufémia, ceifeira de Baleizão, a poucos quilómetros de Aldeia Nova de S. Bento.

Anos passados e a necessidade de “arranjar” uma heroína ‒ foi-o, mas não na medida da lenda posterior ‒ fizeram dela o estandarte da luta dos proletários agrícolas de Portugal. Não gosto destes mitos! E entre nós, desde sempre, houve essa tendência. Nem o Viriato escapou, quando não havia Portugal ou Portugueses!

 

Fui a Aldeia Nova de S. Bento pouco antes de partir para a minha primeira comissão militar em Moçambique, em Novembro de 1966; só lá voltei em 1979. E fui, então, na companhia do meu pai, ver aquele que tinha sido o nosso monte.

Há coisa de dez anos ou talvez mais voltei à Aldeia, agora Vila Nova de S. Bento, e fiquei pasmado. Realmente, já quase nada era como na minha juventude. Igual, mesmo igual, só a tranquilidade de uma terra do Baixo Alentejo… ninguém nas ruas!

Não consegui acertar com o caminho para a Cova do Homem, percurso que fiz vezes sem conta, montado na minha bicicleta ‒ uma velha pasteleira muito pesada, que antecedeu as modernas e leves BTT; não fui capaz de descobrir o poço da aldeia, onde muita gente se matou por afagamento.

 

No sonho desta madrugada, repetiu-se a angústia da minha última real visita aquela terra do meu Alentejo.

Prometo, hei-de lá ir para reencontrar as memórias da minha juventude!

29.03.20

Cavernização


Luís Alves de Fraga

 

Segundo tudo nos indica, o Homem no seu estádio mais atrasado, primitivo, terá usado as cavernas para se refugiar do frio, da chuva, do sol e de ataques indesejados. Por lá terá passado tanto tempo, que nos deixou a expressão da sua arte, da sua necessidade de comunicar, nas chamadas pinturas rupestres.

Isto foi na Idade das Cavernas. De lá até agora a humanidade tornou-se outra tão diferente, que já não é capaz de imaginar esses tempos de impotência perante a Natureza.

 

Mas, por muito estranho que pareça, de uma outra maneira, estamos agora, neste exacto momento, a cavernizarmo-nos, ou seja, para nos defendermos de uma ameaça desenvolvida pela Natureza, temos de nos confinar às nossas cavernas, evitando o convívio directo com os outros, porque os outros podem ser os nossos inimigos, os inimigos da nossa sobrevivência.

 

Mas será só agora, neste momento mais tormentoso? Não, meus amigos!

Se os cientistas não descobrirem a vacina, o antídoto, que inibe a acção do coronavírus no ser humano, a ameaça vai persistir e, pela certa, matará os mais velhos e menos resistentes na sua próxima investida, se deixarmos de estar na nossa caverna.

O imediato pós-covid 19, aquele que virá lá para Junho, Julho, Agosto, será igual a este, mas estaremos todos tão cansados, tão fartos de viver primitivamente, que iremos enfrentar a selva civilizada das nossas ruas, das nossas lojas, dos nossos cinemas, dos nossos centros comerciais, das nossas praias, dos nossos teatros, das nossas esplanadas, das nossas viagens, enfim, do nosso consumismo, que nos moldou para não sermos, de novo, Homens das cavernas e, então, só os mais fortes ou já imunizados sobreviverão à nova doença chamada covid 19. E, nessa altura, será já banal que os mais fragilizados morram. Afinal, sempre foi assim! Sempre prevaleceu a lei do mais forte!

 

Mas a lei do mais forte é discutível.

Mais forte em quê? Na saúde ou na riqueza?

É que, se se inventar o antídoto para este veneno, que nos deixa, agora, tão solidários e tão assustados, ele ou é gratuito, beneficiando quantos quiserem viver, ou será pago e só quem tiver dinheiro terá garantida a possibilidade de se não infectar. Neste caso, prevalecerá a lei do mais forte em riqueza, em fortuna. Lá se vai a solidariedade de agora! Vai-se, porque é ditada pelo medo, o mesmo medo do Homem das cavernas! Um medo egoísta, mas, aparentemente, solidário. Somente solidário, porque não pode, ainda, dar largas a uma outra forma de egoísmo, ditada pela vontade de consumir, usufruir, possuir.

 

Afinal, depois desta cavernização, com algumas alterações, voltaremos ao nosso habitual, um habitual feito de lugares-comuns onde se morre e se vê morrer com uma indiferença soberana, desde que a morte não possa aumentar as audiências televisivas ou as sondagens políticas.

28.03.20

Medo


Luís Alves de Fraga

 

É natural que estejamos com medo. Medo de contrair uma doença que é grave e insidiosa, inesperada e silenciosa, mas brutal.

O medo é humano; saber controlá-lo é resultado de desenvolver coragem para o enfrentar e ter esperança.

 

Fui treinado, na minha juventude, para saber lidar e controlar o medo; não fui treinado para não ter medo. Só os inconscientes não sentem medo. Fui treinado para tomar decisões quando estivesse cheio de medo, controlando-me e tentando controlar os desânimos e os medrosos.

Mais uma vez, estou a aplicar tudo aquilo para que fui treinado. E, porque tenho tempo - o que não nos falta agora é tempo - pensei...

 

Pensei, neste tempo de medo, no que terão sentido os alemães residentes nas cidades que foram sistematicamente bombardeadas e arrasadas pelos aviões Aliados, na fase final da 2.ª Guerra Mundial (fala-se muito dos bombardeamentos de Londres, mas nada, quase nada dos das cidades alemãs... Ah, a crueldade da História ser feita pelos vencedores!).

Imaginam qual é nível de medo de ficar soterrado por uma bomba caída lá de cima e estar-se impotente perante ela? No medo de que caia aqui e no desejo - quase honesto - de que, se tiver de cair, caia na casa do vizinho do lado?

Quando é que o medo pode transformar-nos em egoístas? Em desumanos? Em animais selvagens?

 

Só estou a tentar analisar o medo.

Cuidem-se e resguardem-se.

27.03.20

Quando o mar bate na rocha…


Luís Alves de Fraga

 

Ontem, ainda antes de ouvir António Costa, recebi, via El Pais, a notícia do que se tinha passado, durante as seis horas de reunião, na cimeira de chefes de Estado e primeiros-ministros da União Europeia. Senti-me revoltado com o que li!

 

A Espanha, a Itália e a França, que representam, em termos populacionais, metade de todos os Estados da União, defenderam a emissão dos eurobonds para fazer face à crise e aos desequilíbrios orçamentais, que as despesas extraordinárias estão a, e vão, provocar na Europa. Por outras palavras, o que se propunha era que o peso da crise fosse distribuído por todos, independentemente da sua capacidade de gerar riqueza ou de sair rapidamente da crise agora existente.

Quatro Estados opuseram-se à solidariedade, condenando os restantes a suportarem os resultados desta pandemia à custa do aumento da dívida pública que possam contrair. Quem foram eles? A Alemanha ‒ sempre a eterna Alemanha ‒, a Holanda, a Áustria e a Finlândia. São Estados poderosos e ricos!

 

Tentemos perceber o que representa cada Estado ter de gerir a sua dívida externa em consequência do desequilíbrio provocado pelas despesas extraordinárias resultantes da quase paragem das economias.

Sempre que alguém (seja esse alguém um Estado ou uma empresa ou um particular) pede emprestado aos bancos estes vão averiguar da possibilidade de recuperar o valor do empréstimo; fazem-no através da análise do património do candidato. Ora, o património de um Estado avalia-se em função da sua capacidade produtiva, pois só através desta é que ele pode cobrar os impostos, que vão servir para pagar os juros e a dívida contraída. Um Estado com uma fraca economia consegue empréstimos a juros muito mais altos do que aquele que tem uma economia forte.

Julgo, tudo isto é claro para toda a gente.

 

Quando a Alemanha pede um empréstimo o juro é muito mais baixo do que quando é a Grécia a fazê-lo. Para fugir aos juros muito altos ou, até, à impossibilidade de não ter quem empreste, os Estados de fraca economia têm de se socorrer de empréstimos pedidos a entidades financeiras beneméritas internacionais, que cobram juros baixos, mas obrigam o devedor a seguir as suas orientações macroeconómicas. Foi o que nos aconteceu com a troika.

 

Quando, ontem, os quatro chefes de governo se opuseram à solução de emitir dívida em nome da União e remeteram essa decisão para os Estados mostraram ‒ se dúvidas houvesse ‒ que a União só serve para eles ‒ os grandes ‒ terem mercados assegurados para o consumo dos produtos que fabricam. Ou seja, nós servimos para os enriquecer e ajudar a terem uma boa economia; se para tal temos de nos empenhar até às orelhas isso é-lhes completamente indiferente.

Foi esta a merda de União onde nos meteram! É esta a merda de União onde estão metidos os Italianos, os Espanhóis e, até, os Franceses!

 

Daqui a quinze dias vai haver nova cimeira. Vamos ver o que dela sairá. Coisa boa não vai ser…

Não estaremos ‒ nós, os Estados do sul da Europa ‒ em condições de passar a impor-nos a Berlim, Viena e Haia?

22.03.20

João Ratão


Luís Alves de Fraga

 

 

No começo da década de 20 ‒ há cem anos ‒ subiu ao palco uma opereta com o nome João Ratão. Foi uma das poucas representações teatrais sobre a participação de Portugal na Grande Guerra. Tratava-se de uma história simples de amor, intriga, inveja, heroicidade e algumas cantigas. Não nos devemos esquecer de que a sua concepção ocorreu ainda na vigência da 1.ª República.

Em 29 de Abril de 1940, estreou-se, em Lisboa, o filme com o mesmo nome, realizado Jorge Brum do Canto. Já vigorava, então, a ditadura desde 1926 e o salazarismo há uns dez anos (embora tenha assumido a pasta das Finanças em Abril de 1928, Salazar só pelo começo dos anos trinta começou a delinear a teia da sua ditadura).

Por se tratar de uma adaptação de uma obra teatral do tempo da democracia e da liberdade, parece-me, merece o filme ser olhado com a lupa da História de modo a percebermos até onde foi usado, pelo fascismo português, o trabalho de gente republicana e de pensamento livre.

Porque acabei de ver o filme, neste tempo de isolamento, aqui vos deixo a minha perspectiva.

 

Apercebemo-nos de imediato que a história vai desenrolar-se, uma vez mais, numa aldeia e entre gente remediada. Não é de estranhar o facto, por dois motivos: no final da década de dez do século passado, em plena República, o colectivo social típico era a aldeia e a muito pequena burguesia local; no final da década de quarenta, em pleno Estado Novo, o ambiente conveniente para recolocar a tradição como modelo ideal de comportamento societário, era a aldeia.

Contudo, e curiosamente, para não cortar com o guião original, na aldeia, ao contrário do que seria de esperar, dá-se grande ênfase à figura do regedor ‒ autoridade com capacidade para impor a ordem pública, até, por recurso à detenção em calabouço ‒ e não surge, nem uma só vez, o pároco. Ou seja, o traço primordial da 1.ª República está lá bem vincado no filme, contudo, por ignorância popular, não se estabeleceu ‒ nem se estabelece agora ‒ essa relação tão importante para definir as diferenças de regimes políticos.

 

Mas há aspectos originais, que foram bem aproveitados pelo realizador em favor do Estado Novo. Por exemplo, o da participação de Portugal na Grande Guerra. Não para elogiar o facto, mas para tirar dele proveito, dando do país uma imagem de heroicidade, exaltando a importância de João Ratão como o herói vindo da frente de batalha. Um soldado gabarola que, afinal, não se gabou do seu acto de coragem de, sob fogo inimigo, salvar o seu tenente.

 

Aproveitado por Brum do Canto foi, também, uma oposição que, na peça original, deveria ter surgido como um elemento de crítica às tradições populares ainda em tempo de República: a importância da família fidalga e, de entre ela, a figura da velha senhora capaz de mandar os criados chicotear o regedor, por este ‒ mostrando a igualdade republicana ‒ querer oferecer o seu amor àquela viúva. Assim se mostra como, às vezes, a simples exaltação de um episódio pode deformar o sentido de um discurso.

Depois, há a frase dita em tom de verdade irrefutável, que muito aproveitava ‒ e aproveitou quase até ao fim ‒ ao regime de Salazar: «Com a honra de um soldado não se brinca!».

Indo à boleia da ditadura militar, imposta em 28 de Maio de 1926, em 1940, enfatizava-se o Exército, fazendo dele o esteio do regime fascista, oferecendo-lhe honras sem proveito.

 

João Ratão é um filme que, mesmo com os defeitos próprios de uma vida octogenária, vale a pena ser visto, porque, ‒ tal como procurei exemplificar ‒, mostra várias facetas de um Portugal, que jamais se repetirá e do qual só os muito velhos recordam um pouco.

18.03.20

Júlio Dinis


Luís Alves de Fraga

 

Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nasceu no Porto, no ano de 1839, e depois de ter concluído o curso de medicina, na Escola Médico-Cirúrgica da mesma cidade, adoptou o pseudónimo literário de Júlio Dinis.

A sua obra ‒ até há alguns anos considerada lamechas ‒, podemos hoje dizer, foi precursora do realismo ‒ justamente atribuído a Eça de Queirós ‒, pois algumas das suas personagens já estão muito próximas dos contornos desta última corrente literária, enquanto outras mergulham ainda no estilo romântico.

As Pupilas do Senhor Reitor, primeiro romance de Júlio Dinis, surgiu, sob a forma de folhetim, no Jornal do Porto, em 1866, e, no ano seguinte, em livro.

 

Trata-se de uma história simples de amor, passada numa aldeia do Minho, onde se cruzam todos os ingredientes de uma época: a modernidade, a tradição, a maledicência, a religião, a crendice, o valor do trabalho, a caridade, a soberba, a alegria, a tristeza, a inocência e a esperteza aldeã.

Júlio Dinis morreu em 1871, a poucos meses de completar trinta e dois anos. Matou-o a tuberculose.

 

Sessenta e quatro anos depois de ter falecido ‒ em 1935 ‒ foi realizado, por Leitão de Barros, o filme homónimo do seu primeiro romance.

Viu-o quando era criança ‒ só me recordava de uma cena ‒ e voltei a vê-lo agora, nesta clausura forçada.

É sobre a fita cinematográfica que vos vou falar; focar-me-ei em razões de época e de natureza política. Talvez assim valha a pena voltar a ver o filme.

 

O que salta, de imediato, à vista é a preocupação de fazer uma excelente fotografia de paisagem, ocupando muito tempo da duração do filme; depois, vem a excessiva cantoria e as danças regionais minhotas. Mas, o mais aproveitado de acordo com a vigência da ditadura, foi a exaltação da tradição, da religiosidade ‒ demonstrada na obediência popular ao senhor reitor (o pároco local) e na participação nos festejos católicos ‒ e da alegria do viver na aldeia.

 

Tudo perpassa em imagens, às vezes, desligadas, onde, sem fugir à história de Júlio Dinis, se evidencia o valor de uma vida sadia na aldeia, que hoje achamos pobre e miserável. Mas era dessa aldeia que o Estado Novo fazia a apologia; uma aldeia feliz na pobreza de quase todos e na riqueza de uns poucos. Uma aldeia de gente ignorante, obediente, onde só o médico e o sacerdote tinham letras suficientes para discernir mais longe do que os limites geográficos da pequena urbe. Uma aldeia onde se cantava enquanto se trabalhava e se interrompia o trabalho para dançar.

 

E todas estas mensagens não são transmitidas tão subliminarmente como se pode imaginar; elas são captadas de imediato, pervagam para o espectador com imensa facilidade e, quase sem querer, perdemos o sentido crítico, passando a admitir a felicidade de uma vida alegre. Nem nos apercebemos ‒ porque começa a ser natural ‒ do tremendo esforço físico do transporte, às costas, das pesadas cestas carregadas de uvas, aquando das vindimas, nos socalcos do Douro. Não damos pela imundice de ruas onde andam à solta galinhas, patos, gansos, cães e gatos. Ruas onde correm crianças descalças e por onde passam cavalos e carros de bois.

Não damos por nada disto, porque o realizador, Leitão de Barros ‒ um defensor do salazarismo ao serviço do qual empenhou a sua vida adulta ‒, se encarregou de nos dar uma imagem idílica, quase paradisíaca, daquela aldeia perdida no Minho.

 

As Pupilas do Senhor Reitor, escritas num outro contexto e com uma finalidade bem diferente, foram, pela mão de Leitão de Barros, transformadas na cartilha de uma suave ditadura, onde a tradição, a religião e o pátrio poder são realçados, com requintado cuidado para não adulterar o texto de partida, de modo a que o espectador embarque no desejo de viver aquela sociedade ideal.

É mais um filme de um Portugal doce, mas pequenino!

17.03.20

Não tirem o tapete


Luís Alves de Fraga

 

António Costa, ontem, na entrevista concedida à SIC Notícias mandou um recado muito claro à presidência da União Europeia, mas subtilmente metido no meio de uma resposta, quando referiu que a manutenção da economia nacional depende da capacidade financeira das famílias para comprar, pois, só assim, a produção se pode manter. No meio da frase, sem eu conseguir a reprodução textual, lembrou que também em 2009 tinha sido dada, por Bruxelas, indicação para se incentivar a despesa pública e, depois, tomaram-se medidas inversas.

 

Estou convencido que a maior parte dos cidadãos viu e ouviu a entrevista mas não se apercebeu deste pequeno, contudo, enorme, pormenor.

António Costa está a pôr em prática a mais básica lógica keynesiana para sustentar a economia nacional, tal como o quis fazer José Sócrates em plena crise, todavia, Bruxelas tirou-lhe o tapete e só houve a solução de declarar a insolvência.

 

Pelo sim e pelo não, Costa, ontem, deixou o recado para ser ouvido na capital da União Europeia e para ficar registado entre nós.

 

Bom será que não nos esqueçamos do que o Primeiro-Ministro disse.

16.03.20

Elas e o sexo


Luís Alves de Fraga

 

Passar o tempo nestes dias em casa é algo que nos leva a fazer coisas que, normalmente, não faríamos. Por cá, resolvemos dar volta aos velhos CD de filmes e séries e estamos a rever ‒ para mim é uma novidade, porque não vi na altura ‒ uma longa série de episódios televisivos, que teve bastante êxito quando surgiu: O Sexo e a Cidade.

Vai fazer vinte e dois anos sobre o começo deste êxito americano. Foi em Junho de 1998.

 

Olhados, agora, à distância de duas dezenas de anos, dá para se perceber muita, muita, coisa, sobre o comportamento feminino num tempo em que se começavam a afirmar os direitos de auto-suficiência das mulheres e, mais do que isso, se desfaziam mitos, modelos e preconceitos enraizados desde décadas.

 

Carrie, Charlotte, Samantha e Miranda, as protagonistas da série ‒ sendo que a primeira é a narradora, pois, por ela passa a história e a explicação e compreensão da mesma ‒, são jovens com mais de trinta anos de idade (Samantha já passou aos quarenta), com bons empregos e salários muito satisfatórios, habitam em apartamentos pequenos, embora confortáveis, em Manhattan, na zona mais in de Nova Iorque, frequentam restaurantes, cafés e festas onde toda a gente se encontra.

Cada uma tem a sua forma de viver a liberdade alcançada, mas, a todas é comum um dado: a liberdade sexual, tanto na concretização como no relacionamento; não estabelecem barreiras preconceituosas. Contudo, mais do que esses particularismos, o que ressalta ao longo dos episódios é, por um lado, a complexidade do pensamento feminino ‒ tão distante da linearidade do masculino ‒ e a contradição entre a liberdade conseguida e a aceitação do casamento como forma tradicional de ser mulher. Aliás, várias vezes é referido o facto de, com o comportamento descontraído de viver, estarem a parecer-se com os homens.

Esse medo de perder espaço, autonomia e ‒ porque não? ‒ superioridade face ao casamento e partilha a dois é o ponto fulcral de toda a problemática de uma série que busca um limite para a relação sexual descomprometida, livre, ocasional e a relação sexual duradoura e comprometida com um sentimento chamado amor.

 

A Cidade e o Sexo representa ‒ em termos cinematográficos ‒ um corte com a ideia romântica (gerada pelo romantismo do início do século XIX) da mulher anjo, da mulher intocável, da mulher que se adora, mas não se macula (não é por acaso que entre a sociedade masculina portuguesa perdurou a ideia de que, na relação sexual com a esposa, havia comportamentos interditos e reservados somente para a amante ou, em extremo, para as prostitutas).

Esta série vem deitar abaixo mitos sobre as mulheres, porque as põe a falar sobre si mesmas. Dá-nos um traço bastante fundo de um realismo sobre o mundo feminino que, entre os homens, é, muitas vezes, desconhecido ou adulterado ou incompreendido.

 

Depois, a par do pensamento fêmeo, surge uma outra abordagem, ainda pouco comum, que é a dos homossexuais com quem as protagonistas, em especial a Carrie, mantém relações cordiais e mesmos amistosas. É um campo que nos facilita perceber a razão da proximidade e, às vezes, da cumplicidade entre mulheres desinibidas e os chamados gay.

 

Julgo que tenho beneficiado bastante com este isolamento imposto para fugir a uma epidemia, pois permite-me fazer o que gosto: reflectir e especular sobre a sociedade humana sob o ângulo político, sociológico ou histórico.

Acho que todos nós ganhávamos muito se fossemos capazes de ver mais para além das ideias evidentes e, sem complexos, fizéssemos uso daquilo que a democracia tem de mais caro: a liberdade de expressão do pensamento. Todavia, é preciso ser capaz de pensar e, para isso, temos de deitar fora preconceitos (conceitos definidos antes da análise), ideias velhas e ficarmos abertos ao novo, ao diferente.

Não se diga que burro velho não aprende línguas!

Aprende, sempre que estiver disposto a tal!

15.03.20

Uma crítica


Luís Alves de Fraga

 

Em tempo de prevenção em casa por causa do vírus, para distracção, vejo velhos filmes clássicos, já esquecidos. Ontem à noite foi a vez de Um Eléctrico Chamado Desejo, realizado por Elia Kazan a partir da peça, com o mesmo nome, de Tennessee Williams, escrita em 1947.

 

Vi a fita no seu original de 1951 ‒ creio que não houve nenhuma outra versão ‒ e, retirando-lhe a forma de representar própria da época resultante do estilo de escrita de Tennessee, deixando de lado as críticas feitas então ou mais tarde, tentei percebê-la à luz do tempo em que foi concebida. Não sei em que medida tal me é permitido, já que não sou nem um perito na obra do autor, nem crítico teatral ou cinematográfico. Limito-me a tentar entrar na ambiência do final dos anos de 40 do século passado, nos EUA, e retirar desse mergulho algumas conclusões, que poderão ter condicionado, o subconsciente de Tennessee Williams.

 

Blanche Du Bois, figura principal do filme/peça, pode ter sido inspirada, como a crítica refere, pela problemática da irmã de Tennessee, mas, indo mais além, é a metáfora de uma certa América Sulista em rápida queda financeira, dotada de uma cultura raffinée, muito distante do vulgar plebeísmo americano e, em especial, do dos da segunda geração de imigrantes. É o choque de dois tempos e, em particular, é o choque entre a cultura da velha mansão familiar nas plantações do Sul, com fortíssima influência francesa, visível no vestir, no porte e na educação social (termos como cavalheiros e expressões como escusam de se levantar são a mostra disso mesmo) e a miséria de um proletariado branco a viver em partes de antigas e elegantes casas de uma Nova Orleãs colonial. Williams e Kazan, sem terem de o expressar em diálogos, evidenciam esse choque em cenários e comportamentos que não escapam à observação do espectador. É a doçura afectada de Blanche, resguardada por um guarda-roupa decadente e jóias falsas, a esconder a miséria moral a que é obrigada, confrontada com a realidade crua de gente para quem o álcool é uma forma de entorpecer os sentidos e o jogo de póquer é a distracção máxima, quando não explode em rixas violentas, sem consequências sobre uma amizade construída na guerra, na fábrica e na pobreza. São, de realmente, duas Américas em choque.

 

Tennessee, provavelmente, apanhou ‒ porque faz algumas referências à Divisão de engenharia onde os homens combateram durante a recém acabada guerra ‒ a violência do stress pós-traumático trazida pelos antigos militares para o trabalho, para as ruas, para as salas de bowling e, mais do que tudo, para casa. Uma violência que leva a extremos a fúria da vida, uma violência que se compraz na destruição, uma violência que se descarrega nas companheiras, dóceis e compreensivas, que voltam sempre e sempre para casa, para a cama onde se reconverte a dureza em amor dorido.

 

Tennessee Williams, na minha opinião, foi mais longe do que os críticos da época viram, porque a leitura de hoje tem de ser feita à luz da História, à luz da Sociologia, para se compreender os diferentes dramas transversais a uma sociedade em decadência e em ressurgimento; decadência quando olhada com os óculos da oposição Norte-Sul, ricos em pobreza e pobres em pobreza; olhada com as lentes de uma sociedade a festejar a vida depois de uma guerra, que matou; vista com os olhos da compreensão de quem quer sobreviver e viver a mudança. O ressurgimento aparece, metaforicamente, representado na irmã de Blanche capaz de dar à luz um filho para ser criado na miséria de tudo e, também, no desfecho traduzido no acto de mandar recolher ao auspício para loucos uma Blanche perdida para essa transformação social.

 

Enfim, creio, um filme a ser revisto ou visto com a paciência de quem vai gozar não uma peça de teatro mudada para cinema mas um pedaço da História que viveu e não se lembra ou nunca viveu e quer perceber.

13.03.20

Poder político e catástrofes


Luís Alves de Fraga

 

Na noite de 26 para 27 de Novembro de 1967 caiu um dilúvio sobre a região de Lisboa. As linhas de água extravasaram e arrastaram tudo à sua frente. Calcula-se que morreram à volta de setecentas pessoas.

Evidentemente, a chuva não se pôde esconder, nem as cheias que provocou, mas, o governo ditatorial vigente ‒ ainda o de Salazar ‒ evitou, tanto quanto possível, reduzir a catástrofe a poucos mortos e a danos quase inexistentes.

Esta é sempre a forma de actuar das ditaduras! Reduzir ao mínimo o que tem dimensões máximas, não pondo a claro as insuficiências dos governantes, os quais, em geral, na verdade, não querem saber nada sobre o bem-estar das populações.

 

As variantes mais modernas das ditaduras são os regimes democráticos populistas, que, em nome do povo, governam, de facto, em concordância com o pensamento de uma elite. Uma elite que se julga detentora da verdade e daquilo que o povo quer, pensa ou sente. Os exemplos mais evidentes destes populismos são os de Trump, nos EUA, e os de Bolsonaro, no Brasil. Não negam nem recusam a democracia, mas usam-na como entendem para servirem as suas ideias de bem-estar nacional.

 

Nas verdadeiras democracias, naquelas onde os partidos ainda podem pôr, e põem, em causa as acções dos governos, as catástrofes são mostradas nas suas dimensões reais ‒ às vezes, até exageradas ‒ e as críticas, quanto às decisões governamentais, são feitas abertamente e sem qualquer tipo de censura. É assim que se defendem os interesses de todos.

 

O Covid 19 veio, parece, para nos alertar globalmente para muito do que está errado na sociedade mundial.

Por cá, reagimos à nossa maneira: desvalorizando e, depois, exagerando! É a marca do como somos e do como fazemos.

Não acautelamos, não temos planos alternativos, não inventariamos, não agendamos. Parece-me que a crença sebastianista ‒ aquela que nos leva a supor que haverá sempre um salvador para tudo o que não prevenimos ‒ está muito mais viva agora do que alguma vez no passado, pois, com toda a tecnologia actual, com todas as imensas capacidades ao nosso dispor, continuamos a desprezar os factos para nos deixarmos iludir pelas soluções salvíficas de matriz teológicas ou pseudo teológicas.

 

Não era preciso ser vidente ou virologista para perceber que, depois dos primeiros dias da epidemia em Itália, ela ia chegar à Península Ibérica e, por isso mesmo, a Portugal. Não sendo vidente, o Governo, não foi previdente. Nem nós, os cidadãos comuns. Julgo que, no íntimo de cada português, ficou a germinar uma de duas ‒ ou mesmo as duas ‒ ideias: vai-se encontrar a vacina ou o tratamento antes de chegar cá ou isto é uma coisa que só atinge o meu vizinho do lado.

 

Um governo previdente teria tomado medidas imediatas de controlo de fronteiras aéreas e marítimas e criado medidas de precaução. Não tínhamos que esperar pelas decisões e pareceres da OMS ou do CNS ou de a casa do lado estar a arder.

 

Será que, depois de tudo isto se resolver, aprendemos algumas lições? É que as há para tirar no foro cívico, sanitário, económico e político. Mas, hoje, não quero entrar por aí. Quero somente que, aqueles que me lêem, fiquem a pensar nas possíveis lições, que vão ser muitas.

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