Vasco Pulido Valente e o plágio
Morreu o historiador, o cronista e, quanto a mim, acima de tudo, o crítico político mais maldisposto de Portugal. Era uns meses mais novo do que eu.
Nunca conversei com ele, embora tenha estado muito perto, de modo a poder ouvi-lo em cavaqueira com outros. Não, não foi uma questão de coscuvilhice minha. Por duas ou três vezes cruzámo-nos no velho bar-restaurante da Biblioteca Nacional, nos idos anos de oitenta do século passado. Vasco Pulido Valente falava suficientemente alto de modo que era fácil escutar o que dizia.
Muitas vezes o vi na televisão e, muitas mais, li as acintosas crónicas sobre a governação e os governantes de Portugal.
Sempre o achei pedante, pretensioso, irreverente enquanto cidadão; enquanto historiador achei-lhe um pecado que considero grave: fazia afirmações fundamentais sem esteio documental ou bibliográfico. Ou seja, fazia História sem notas e somente com indicação da bibliografia o que, em boa verdade, não dá real consistência às afirmações, tornando-as em meras opiniões ou reflexões sobre a História. Era avesso a essa forma de validar as suas conclusões; tínhamos de acreditar no que dizia. Julgo, terá trazido esse hábito de Inglaterra, onde fez o doutoramento.
Foi como cronista que ele se cruzou mais directamente comigo. Vou contar.
Em 1990 entreguei, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o original da minha tese de mestrado, cujo título é Portugal e a Primeira Grande Guerra. Os Objectivos Políticos e o Esboço da Estratégia Nacional. 1914 – 1916. Defendi-a em Janeiro de 1991.
Em Fevereiro de 1996, porque estava disposto a começar a dar forma à minha tese de doutoramento, convidei Nuno Severiano Teixeira ‒ tinha acabado de apresentar e defender uma tese de doutoramento, em Bolonha (1994), sobre a temática de Portugal e a Grande Guerra ‒ para ser meu orientador. Aceitou, impondo-me condições, que não regateei. Mas, no meio de tudo isto nunca me ofereceu um exemplar da sua tese. Desculpava-se que estava em francês, que não tinha mais originais, muito embora, no ano de 1993, eu o tenha presenteado, a seu pedido, com um exemplar da minha tese de mestrado, que, por essa altura, ainda não tinha entrado nos circuitos comerciais.
Em 1995, Nuno Severiano Teixeira publicou, em português, a sua tese de doutoramento. Não me convidou para o lançamento. Fiquei intrigado e fui logo comprar um exemplar para ler, até porque achei curioso o título ‒ O Poder e a Guerra 1914 - 1918 Objectivos Nacionais e Estratégias Políticas na Entrada de Portugal na Grande Guerra ‒, porque o cotejei com o da minha tese de mestrado e lhe achei semelhanças evidentes.
Mais evidentes se tornaram a semelhanças, quando comecei a ler o livro. O assunto era exactamente o mesmo da minha tese, a estrutura era muito idêntica, o objectivo era quase um decalque do meu e, para maior espanto, em várias partes, o texto andava, com alteração de palavras, muito colado ao meu.
Era, sem dúvida, um plágio! Um plágio do tema, da organização e de partes do texto. Um plágio, porque a única referência que é feita à minha tese está na bibliografia, citando-a, mas surripiando a indicação de se tratar de um trabalho académico e, ainda por cima, de uma dissertação de mestrado. Ficou evidente que houve a intenção de escamotear a presença da minha pessoa e do meu trabalho no texto de Nuno Severiano Teixeira. Não se trata de um acaso mas de uma atitude intencional.
Para demonstrar de forma simples a intencionalidade, na introdução, depois de identificar escassos, muito escassos, historiadores que tenham abordado o tema de Portugal e a Grande Guerra, afirma textualmente: «Para além destes, são poucos ou nenhuns, na historiografia portuguesa contemporânea, os estudos que se reportam directamente à questão política interna da guerra. Os que a abordam fazem-no a partir de um outro "enfoque" de análise, em que a guerra é, sempre, um objecto indirecto e lateral.» Nada mais falso!
De imediato tratei, junto das entidades académicas, de dar conta do ocorrido e de desistir da orientação de Nuno Severiano Teixeira, pois perdera por completo a confiança na sua idoneidade académica.
Quis denunciar o plágio, mas fui aconselhado a não o fazer, pois poderia a comunidade académica unir-se e nunca aceitar o meu doutoramento. Calei-me, mas calcule-se como fiquei.
No final do mês de Outubro de 2000, sendo ministro da Administração Interna Nuno Severiano Teixeira, Vasco Pulido Valente, na coluna que assinava no Diário de Notícias afirmou, com todas as letras, que o ministro o havia plagiado quando aquele escreveu a tese de doutoramento.
Foi quanto bastou para eu receber luz verde no sentido de, também fazer a minha denúncia. Alguém a fez por mim, ao semanário O Independente que, de imediato, me quis entrevistar. Na semana seguinte outra notícia de plágio praticado por ele saiu, no mesmo jornal, mas, desta vez, a vítima era o Prof. Doutor Oliveira Marques.
Severiano Teixeira defendeu-se mal e sem convicção.
Mas ele plagiou Vasco Pulido Valente?
A verdade é que, daquilo que este acusa Severiano Teixeira, também eu poderia acusar Vasco Pulido Valente: quem, pela primeira vez, explicou que as razões da entrada de Portugal na Grande Guerra foram de ordem interna e externa fui eu, em 1990!
Vasco Pulido Valente, no seu longo artigo de 1992 (Revoluções: A «República Velha» (ensaio de interpretação política)), publicado na Análise Social repetiu, sem prova exaustiva, aquilo que eu, em 1990, ad nauseam, havia já afirmado e que Nuno Severiano Teixeira, em 1994 copiou.
Quem plagiou quem? Esta pergunta deve ficar no ar. De qualquer modo, fiquei agradecido a Vasco Pulido Valente, pois, sem a coragem dele ‒ ele já era, há muitos anos, doutor em História ‒ eu jamais poderia ter tido oportunidade de gritar o que me ia na alma, ainda que, do ponto de vista legal, já nada ganhasse com isso.
Descanse em paz, Vasco Pulido Valente.