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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

23.02.20

Vasco Pulido Valente e o plágio


Luís Alves de Fraga

 

Morreu o historiador, o cronista e, quanto a mim, acima de tudo, o crítico político mais maldisposto de Portugal. Era uns meses mais novo do que eu.

Nunca conversei com ele, embora tenha estado muito perto, de modo a poder ouvi-lo em cavaqueira com outros. Não, não foi uma questão de coscuvilhice minha. Por duas ou três vezes cruzámo-nos no velho bar-restaurante da Biblioteca Nacional, nos idos anos de oitenta do século passado. Vasco Pulido Valente falava suficientemente alto de modo que era fácil escutar o que dizia.

Muitas vezes o vi na televisão e, muitas mais, li as acintosas crónicas sobre a governação e os governantes de Portugal.

Sempre o achei pedante, pretensioso, irreverente enquanto cidadão; enquanto historiador achei-lhe um pecado que considero grave: fazia afirmações fundamentais sem esteio documental ou bibliográfico. Ou seja, fazia História sem notas e somente com indicação da bibliografia o que, em boa verdade, não dá real consistência às afirmações, tornando-as em meras opiniões ou reflexões sobre a História. Era avesso a essa forma de validar as suas conclusões; tínhamos de acreditar no que dizia. Julgo, terá trazido esse hábito de Inglaterra, onde fez o doutoramento.

Foi como cronista que ele se cruzou mais directamente comigo. Vou contar.

 

Em 1990 entreguei, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o original da minha tese de mestrado, cujo título é Portugal e a Primeira Grande Guerra. Os Objectivos Políticos e o Esboço da Estratégia Nacional. 1914 – 1916. Defendi-a em Janeiro de 1991.

Em Fevereiro de 1996, porque estava disposto a começar a dar forma à minha tese de doutoramento, convidei Nuno Severiano Teixeira ‒ tinha acabado de apresentar e defender uma tese de doutoramento, em Bolonha (1994), sobre a temática de Portugal e a Grande Guerra ‒ para ser meu orientador. Aceitou, impondo-me condições, que não regateei. Mas, no meio de tudo isto nunca me ofereceu um exemplar da sua tese. Desculpava-se que estava em francês, que não tinha mais originais, muito embora, no ano de 1993, eu o tenha presenteado, a seu pedido, com um exemplar da minha tese de mestrado, que, por essa altura, ainda não tinha entrado nos circuitos comerciais.

 

Em 1995, Nuno Severiano Teixeira publicou, em português, a sua tese de doutoramento. Não me convidou para o lançamento. Fiquei intrigado e fui logo comprar um exemplar para ler, até porque achei curioso o título ‒ O Poder e a Guerra 1914 - 1918 Objectivos Nacionais e Estratégias Políticas na Entrada de Portugal na Grande Guerra ‒, porque o cotejei com o da minha tese de mestrado e lhe achei semelhanças evidentes.

 

Mais evidentes se tornaram a semelhanças, quando comecei a ler o livro. O assunto era exactamente o mesmo da minha tese, a estrutura era muito idêntica, o objectivo era quase um decalque do meu e, para maior espanto, em várias partes, o texto andava, com alteração de palavras, muito colado ao meu.

Era, sem dúvida, um plágio! Um plágio do tema, da organização e de partes do texto. Um plágio, porque a única referência que é feita à minha tese está na bibliografia, citando-a, mas surripiando a indicação de se tratar de um trabalho académico e, ainda por cima, de uma dissertação de mestrado. Ficou evidente que houve a intenção de escamotear a presença da minha pessoa e do meu trabalho no texto de Nuno Severiano Teixeira. Não se trata de um acaso mas de uma atitude intencional.

Para demonstrar de forma simples a intencionalidade, na introdução, depois de identificar escassos, muito escassos, historiadores que tenham abordado o tema de Portugal e a Grande Guerra, afirma textualmente: «Para além destes, são poucos ou nenhuns, na historiografia portuguesa contemporânea, os estudos que se reportam directamente à questão política interna da guerra. Os que a abordam fazem-no a partir de um outro "enfoque" de análise, em que a guerra é, sempre, um objecto indirecto e lateral.» Nada mais falso!

 

De imediato tratei, junto das entidades académicas, de dar conta do ocorrido e de desistir da orientação de Nuno Severiano Teixeira, pois perdera por completo a confiança na sua idoneidade académica.

Quis denunciar o plágio, mas fui aconselhado a não o fazer, pois poderia a comunidade académica unir-se e nunca aceitar o meu doutoramento. Calei-me, mas calcule-se como fiquei.

 

No final do mês de Outubro de 2000, sendo ministro da Administração Interna Nuno Severiano Teixeira, Vasco Pulido Valente, na coluna que assinava no Diário de Notícias afirmou, com todas as letras, que o ministro o havia plagiado quando aquele escreveu a tese de doutoramento.

Foi quanto bastou para eu receber luz verde no sentido de, também fazer a minha denúncia. Alguém a fez por mim, ao semanário O Independente que, de imediato, me quis entrevistar. Na semana seguinte outra notícia de plágio praticado por ele saiu, no mesmo jornal, mas, desta vez, a vítima era o Prof. Doutor Oliveira Marques.

Severiano Teixeira defendeu-se mal e sem convicção.

 

Mas ele plagiou Vasco Pulido Valente?

A verdade é que, daquilo que este acusa Severiano Teixeira, também eu poderia acusar Vasco Pulido Valente: quem, pela primeira vez, explicou que as razões da entrada de Portugal na Grande Guerra foram de ordem interna e externa fui eu, em 1990!

Vasco Pulido Valente, no seu longo artigo de 1992 (Revoluções: A «República Velha» (ensaio de interpretação política)), publicado na Análise Social repetiu, sem prova exaustiva, aquilo que eu, em 1990, ad nauseam, havia já afirmado e que Nuno Severiano Teixeira, em 1994 copiou.

 

Quem plagiou quem? Esta pergunta deve ficar no ar. De qualquer modo, fiquei agradecido a Vasco Pulido Valente, pois, sem a coragem dele ‒ ele já era, há muitos anos, doutor em História ‒ eu jamais poderia ter tido oportunidade de gritar o que me ia na alma, ainda que, do ponto de vista legal, já nada ganhasse com isso.

Descanse em paz, Vasco Pulido Valente.

 

20.02.20

Ambiguidades


Luís Alves de Fraga

 

O pensamento de Karl Marx, plasmado nas suas obras, em particular no longo tratado de Economia Política a que chamou O Capital, foi, no tempo, uma síntese de várias reflexões devidas a filósofos, economistas e historiadores. Teve a virtude de saber juntar o pensamento disperso sobre a evolução da sociedade, da técnica e das relações entre o capital e o trabalho, encontrando um núcleo causal e uma possível solução, que desejou universal, intemporal e radical, fundamentada esta em princípios científicos, opondo-se, deste modo, às soluções vulgares na época em que viveu.

Há quem diga que o pensamento de Marx está morto, porque, mais do que morto, está o pensamento marxista-leninista. Ora, cada vez mais me convenço da permanência do pensamento marxista, ainda que veiculado de formas diferentes e, por conseguinte, ambíguas.

 

Fui ver o tão premiado filme sul-coreano, baptizado com o nome de Os Parasitas.

Indiscutivelmente trata-se de uma fita de elevadíssimo gabarito, que começa por nos fazer sorrir, rir e, depois, emudecer.

Basicamente, relata a vida de duas famílias típicas de Seul: uma altamente abastada e outra infortunadamente pobre. Esta vive de dobrar, manualmente, caixas de cartão para embalar pizzas, no que é explorada por uma pequena empresária que, a todo o custo, quer obter o máximo lucro, pagando-lhes o mínimo possível, através de pôr defeitos na forma como as caixas estão dobradas. Apercebemo-nos dos níveis mais baixos da extorsão de trabalho contra salários de miséria.

 

Consequência de pormenores, que não merecem perda de tempo, mas, de alguma forma, cómicos por deixarem a claro as artimanhas usadas para alcançar, por todos os meios, até condenáveis socialmente, emprego para os quatro membros da família pobre na moderníssima vivenda da família rica, chegamos ao confronto visual, moral e social entre a miséria e a abastança, entre o cheiro da pobreza (e este aspecto tem particular importância no desenrolar da trama fílmica) e a sensibilidade de odor da riqueza. Mas, vamos mais longe (se estivermos criticamente atentos) ao percebermos a ingenuidade dos ricos (vivendo da exploração de outros) face à sagacidade, artimanha e imoralidade dos pobres. Ainda chegamos mais longe se formos capazes de compreender como entre os pobres germinam duas formas de estar na vida: a necessidade de sonhar e o imperativo de desenvolver uma total ausência de solidariedade para com quem lhes pode roubar um estatuto de vida alcançado de qualquer modo.

 

O filme vive de um constante confronto entre opostos e semelhantes. De algum modo, há no argumento aspectos que, muito subtilmente, nos recordam as fitas de Charlot, no tempo do cinema mudo, onde se mostram cenas críticas de uma sociedade dividida entre ricos e pobres à procura de modos de sobrevivência.

 

A grande interrogação, que se nos coloca ao sair da sala de projecção, depois de se terem digerido os aspectos mais evidentes da mensagem do filme, é a de saber quem é, efectivamente, parasita de quem: os ricos ou os pobres?

Esta dúvida gerou em mim uma certeza: a mensagem de Karl Marx continua viva e está a ser retransmitida em sul-coreano, através de um filme ganhador de quatro óscares e variados prémios em certames de grande importância internacional. Para perceber isto, para compreender a mensagem do teórico comunista transmitida em longos e cansativos textos, basta ir ver, com apurado sentido crítico, a fita Os Parasitas.

Não se consegue ficar insensível.

18.02.20

Racismo ‒ Alguns conceitos


Luís Alves de Fraga

 

Parece-me, do que leio e oiço, anda por aí muita confusão sobre a palavra racismo.

Para que fique, desde já, claro é uma atitude mental ‒ um preconceito (pré-conceito, ou seja, um conceito previamente encaixado na cabeça de cada um) ‒ que é comum a qualquer ser humano independentemente da idade, cor, local de nascimento, morada e nível educacional. Enfim, racista pode ser qualquer pessoa. Dito de outra maneira, o racismo manifesta-se em qualquer direcção sobre qualquer indivíduo.

 

Não ser racista não corresponde a ser tolerante; não ser racista é aceitar plena e completamente, sem qualquer tipo de coacção moral ou cultural, o outro, que é diferente em termos de cor de pele e de cultura.

Não ser racista é um exercício difícil de fazer, porque exige uma total abertura e uma completa aceitação do outro que diverge do padrão ao qual se está habituado tanto na coloração da pele como na cultura. E é aqui que bate o ponto! Na cultura.

 

Torna-se necessário perceber o que aqui chamo cultura.

Cultura não é o que se sabe ou o que se aprende nos livros. Não é nesse sentido que aqui utilizo o termo.

Cultura é aquilo que, ao longo da vida, a sociedade onde se nasce nos vai impondo como sendo os comportamentos e conhecimentos certos (certos para aquela sociedade, para aquele tipo humano). Assim, se se pegasse num bebé japonês com uma ou duas semanas de vida e o entregássemos a uma família alentejana de uma aldeia do Alentejo profundo, ele, aos dez, quinze ou vinte anos seria um alentejano com traços fisionómicos de japonês. Mas era, realmente, um alentejano!

Com isto quero provar que sobre as diferenças de figura o que se impõe e se é não resulta do que se parece, mas do que nos foi colado pela sociedade. Nós, todos nós, somos, por dentro o que socialmente fizeram de nós.

 

Mas quem é que nos faz? O que é isso de sociedade?

Quem nos faz são os nossos familiares, os nossos amigos, a nossa escola, a nossa religião ou a falta dela, o nosso clube de futebol, os nossos livros, a nossa televisão, os nossos jornais, as nossas músicas, a nossa forma de trajar, as críticas que nos fazem, as reprimendas que sofremos, as opiniões que ouvimos, aquilo que nos é imposto como certo e como errado. É a todas estas interacções, que nós chamamos cultura numa perspectiva sociológica ou mesmo antropológica. Nós somos o resultado de tudo isto e de muitas mais coisas que enumerar seria longo e fastidioso. De tudo isto, que nos é transmitido, em cada minuto da nossa vida, pela sociedade, pelos nossos semelhantes.

 

É isto que faz de nós racistas!

Racistas, porque alguém, tendo uma cor diferente da nossa, terá necessariamente, de ser inferior a nós. Inferior, porque não tem a nossa cultura que, porque é nossa, é superior.

Assim, também se podem verificar manifestações de racismo quando, não havendo diferenças de cor de pele ou de figura, existem diferenças de cultura. Esse racismo toma um outro nome quando desenvolvido dentro de um quadro político estatal: xenofobia (recusa ou medo do estrangeiro). E estrangeiros podemos sê-lo dentro do mesmo Estado!

 

Percebem, agora, os meus amigos, porque é que o racismo dispara em todas as direcções e é comum a todas as pessoas comuns, independentemente de serem brancas, negras, amarelas ou às riscas?

Percebem que o que está em causa são diferenças culturais?

Percebem o drama daqueles que, tendo uma cultura diferente da cor da sua epiderme, se debatem entre o serem traidores àquilo que deveria ser a sua cultura de origem ou defendê-la irracionalmente? Seria este o drama do japonês alentejano, do meu exemplo anterior.

 

Percebem, agora, quanto difícil é não ser racista?

Percebem que, para não ser racista não basta dizê-lo, mas senti-lo? Senti-lo, porque se não tem preconceitos culturais, porque o estabelecimento de diferenças é feito só e somente com base na inteligência e na forma de se comportar independentemente de cores?

 

Espero que os meus amigos, agora, compreendam porque é que abomino o racismo, a estupidez e a ignorância.

16.02.20

Um mundo de horrores


Luís Alves de Fraga

 

Acordei preocupado. Preocupado com a importância que estamos a dar a pequenas coisas das nossas vidas e a desleixar outras de imensas dimensões.

Vou tentar ser mais explícito.

 

Bruxelas impõe a baixa das taxas de poluição. Acho bem. Mas, ao mesmo tempo, incentiva a concorrência livre entre produtores, a entrega a companhias privadas de todos os sectores detidos pelos Estados de modo a evitar controlos de mercados.

Ora, se pensarmos um pouco, a situação mundial chegou onde estamos por causa do desejo de produzir cada vez mais para, cada vez mais, se consumir. A nossa (hoje global) economia só se sustenta porque o consumo aumenta exponencialmente.

Por acaso, os meus leitores imaginam o que aconteceria se, de um momento para o outro, deixássemos de comprar toda a tralha que nos é imposta pela publicidade, a moda e mais os restantes mecanismos de gerar desejos consumistas?

As falências suceder-se-iam em catadupa. Imaginem que não mudávamos de telemóvel quando sai um modelo novo e nos fazem sentir ridículos, porque usamos o da geração anterior; se nos estivéssemos nas tintas para as cores e os modelos da moda de vestuário; se nos aguentássemos com o velho carro com dez ou quinze anos de idade; se substituíssemos os GPS dos telemóveis pelos velhos mapas das estradas; se não aceitássemos usar lenços, guardanapos e toalhas de papel e os trocássemos pelos de pano, laváveis e reutilizáveis; se, enfim, fizéssemos um grande boicote ao consumo desnecessário. O nosso mundo ruía tal como o conhecemos e os grandes impérios comerciais desapareciam.

 

É nesta recusa de tanta modernidade e de tão exagerado consumo, só importante porque se dá mais valor ao parecer do que ao ter, como se a vida acabasse amanhã e nós perdêssemos o direito a estar vivos se não esgotarmos todas as possibilidades, é nesta recusa que podemos perceber quanto este mundo de horrores, que nos assusta, com mudanças climáticas e poluição inadmissível, é ele mesmo contraditório.

Tão contraditório que sentimos, nesta década e meia passada, uma desconformidade entre a democracia idealizada e a democracia praticada. Tão contraditório que permite o populismo a rondar uma outra ou outras formas de fascismo. Tão contraditório que clamamos por soluções políticas ainda não inventadas, pois tudo isto é novo, levando-nos a sentir que estamos à beira da catástrofe, seja ambiental, seja social, seja política. E muitos, mas mesmo muitos, de nós, continuamos a ouvir a música, a orquestra, quando este Titanic, cujo nome real é Terra, se desfaz sem se conseguir articular as pontas soltas de uma modelo económico, social e político em vias de colapso.

 

Tenho ou não tenho razões para estar preocupado, para dormir em sobressalto?

15.02.20

Mimetismos e Mentiras


Luís Alves de Fraga

 

O Dicionário da Porto Editora on-line dá cinco explicações ou significados para a palavra mimetismo, dos quais me vou fixar em somente dois: em sentido figurado, «imitação inconsciente pela qual alguém adopta o comportamento, a linguagem, as ideias daqueles entre os quais vive» e «disfarce».

 

Politicamente há muita gente que se serve de mimetismos, o mesmo é dizer disfarces, para parecer aquilo que não é!

Na cena de um filme visto há muitos anos, recordo a queda de Mussolini e a facilidade com que gente altamente comprometida com o fascismo virou rapidamente democrática, numa atitude mimética, e, para se defender, acusava todos os restantes de terem apoiado o ditador. Esta postura pode ser momentânea ou vivida ao longo dos anos de tal forma que, nada tendo a ver com a pele do outro, a veste com tal ardor que acaba por se convencer da sua semelhança, quiçá igualdade, com o elemento copiado.

Há fascistas convictos, estruturados como tal, que, pelo facto de viverem em sociedades democráticas, se afirmam democratas. Vivem e acabam morrendo seriamente eivados de uma certeza construída para defesa pessoal e possibilidade de subsistência sem sobressaltos.

 

Se politicamente é possível encontrar significativos casos de mimetismo, na convivência social há-os a pontapés.

Antigamente, quando havia bastante comércio a retalho em pequenas lojas de bairro ou aldeia, os proprietários, capazes de se enganarem na soma do rol da dívida dos compradores a fiado, conseguindo um lucro marginal para além daquele que já acresciam ao preço dos produtos, afirmavam aos quatro ventos a sua honestidade intrínseca. E estavam perfeitamente convictos de que mais ninguém era tão honesto quanto eles!

‒ Mentira? Não. Simples mimetismo de honestidade!

É que, há uma coisa chamada consciência e, quando se não é um idiota completo, existem momentos em que se percebe a culpa de acções jamais passíveis de serem relatadas e assumidas em público. Então, quase inconscientemente, adopta-se o comportamento que não é condenável, veste-se a pele da vítima ou do herói, conforme for o caso.

 

Há muitos anos o meu amigo A contou-me que o seu amigo B se tinha divorciado por causa de um outro amigo de B. Chamemos-lhe C.

Este por causa intrigou-me e procurei aprofundar a questão, sendo que não conhecia nem B nem C. Fiquei a saber o que se tinha passado. Vou contar-vos para perceberem como actua o mimetismo entre certas pessoas.

 

C era mal casado e, a dado passo, a mulher arranjou um amante. C, quando soube, desesperado, quis um divórcio litigioso, logo de seguida, com grande escarcéu público. O assunto foi falado, como se costuma dizer, por “meia Lisboa”.

B, casado com uma mulher ‒ segundo me contou o meu amigo A ‒ que o adorava e incapaz de lhe ser infiel, muito amigo de C, sentiu profundamente as dores (deixem-me ser brejeiro e usar um certo vernáculo, dores de corno) de C.

Ora, as “dores” foram tão fortes que B não descansou enquanto não inventou um amante para a sua mulher, querendo repetir, com escândalo, o divórcio do seu amigo C. Não conseguiu atingir os cumes do divórcio de C, porque, segundo o meu amigo A, a mulher, sensatamente, optou por aceitar desfazer o casamento sem escândalos.

Ainda há dias, o meu amigo A contou-me que o tal B continua a afirmar a pés juntos a infidelidade da sua ex-mulher, tão igualmente quanto C o faz, passadas largas dezenas de anos.

B é um caso de mimetismo em relação a C.

 

Conselho: olhem à vossa volta e procurem encontrar, tanto no plano político como social, estas patologias nos vossos círculos de conhecidos e amigos. São verdadeiros casos onde a mentira surge escondida sob um pesado manto de disfarce.

13.02.20

Celibatário


Luís Alves de Fraga

 

Há muitos anos na igreja dos Anjos, em Lisboa, havia um sacerdote casado. Era um antigo pastor evangélico convertido ao catolicismo e, por já ter mulher e filhos e experiência de pregador, foi autorizado a frequentar o seminário de Moscavide, recebeu ordens maiores e passou a exercer a sua actividade na igreja de uma freguesia com numerosos habitantes.

 

Aos domingos celebrava missa pelo meio-dia. O templo enchia-se para escutar a prédica deste clérigo. E a razão era muito simples: ele, ao explicar o Evangelho, usava exemplos do dia-a-dia da sua vida familiar, aproximando-se muito, mas mesmo muito, da realidade dos que o ouviam. Falava das relações dos casais, da educação dos filhos, de questões íntimas de homens e mulheres. Na igreja não se ouvia um murmúrio, as palavras eram bebidas com intensidade. Os crentes sabiam que ele era um homem exactamente igual a qualquer um dos paroquianos e, quando expunha uma ideia, não era fruto de estudos teóricos, pois tudo passava pelo crivo da sua experiência humana e cívica.

 

Pergunto-me, qual a razão determinante para o Vaticano ‒ que tem conhecimento destas e de muitas outras ocorrências iguais ou semelhantes (homens viúvos, com filhos e netos, que são ordenados padres) ‒ continuar a insistir no celibato dos sacerdotes?

Não é o celibato que lhes dá mais capacidades para se entregarem à comunidade católica; ele será, no máximo, uma prova de resistência ‒ quando cumprido à risca ‒ a tentações humanas e comuns a todos os animais: o desejo de procriar. Um desejo divino, segundo o traçado das Escrituras integrantes do Velho Testamento.

 

Tendo em conta que o Papa é, no mundo ocidental, o único soberano dotado de poder absoluto, estranho o facto de Francisco ‒ aparentemente escolhido para romper algumas das vestes tradicionais da Cúria ‒ não ter agora quebrado essa obrigação que, tanto quanto sei e é dito por quem estuda a fundo a História da Igreja Católica, não foi instituída por Jesus nem mesmo pelos seus apóstolos, alguns deles casados.

É tempo de humanizar a Igreja para a colocar muito mais próxima dos crentes e dos problemas levantados pela modernidade de um novo milénio.

08.02.20

Dreyfus


Luís Alves de Fraga

 

Fui, há dias, ver o filme, que corre nas salas de cinema de Lisboa, sobre o célebre caso do capitão de artilharia francês Alfred Dreyfus.

A história é conhecida, tratando-se de uma situação de anti-semitismo, que abalou e dividiu a opinião pública francesa, levando a que o capitão, sem provas suficientes, fosse condenado, por um tribunal militar, a prisão perpétua numa ilha da Guiana Francesa, sofrendo, ainda mais, a pena, então existente, de exautoração pública.

 

Não vou tecer considerações sobre o filme, não só por falta de conhecimentos técnicos para tal como também porque aconselho, quem tem curiosidade, a ir vê-lo. Vale a pena, se nos fixarmos em exclusivo na história e nos acontecimentos.

Contudo, para quem foi militar ‒ oficial ‒ e viveu o tempo da revolução de Abril e, em especial, os dos anos que se lhe seguiram ‒ pelo menos, na Força Aérea, ramo das Forças Armadas que melhor conheço ‒ pode estabelecer paralelismos extraordinários sobre como decorreram alguns conselhos superiores de disciplina, algumas punições e passagens à reserva e à reforma compulsiva. São casos que ainda hoje suscitam, entre quem os viveu, polémica suficiente para discussões vivas.

 

Em todos os tempos as Forças Armadas foram tendencialmente conservadoras, não no sentido político do termo, mas no sentido de terem dificuldade em se adaptarem à mudança, ao novo, ao diferente. A cultura castrense tem relutância em mudar, em aceitar disrupções, em permitir “pensamentos fora da caixa” e, por isso, quando alguma coisa “corre mal” prefere manter-se indiferente à justificação ou à correcção de caminhos. Nessas circunstâncias, resguarda-se por trás de patriotismos não justificáveis e em ataques a honras que, realmente, só são molestadas se a verdade não for reposta.

Trata-se de uma postura universal, verdadeira seja qual for o regime político do Estado em causa.

 

Poderia ser mais explícito, mas não me interessa sê-lo. Basta que tenha visto um filme que, muito provavelmente, sem o realizador dar por isso, ou mesmo ignorantemente, mexe em algo que transcende o enredo e a história.

Coisas que só alguns militares percebem, às vezes com dificuldade.