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Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

Fio de Prumo

Aqui fala-se de militares, de Pátria, de Serviço Nacional, de abnegação e sacrifício. Fala-se, também, de política, porque o Homem é um ser político por ser social e superior. Fala-se de dignidade, de correcção, de Força, de Beleza e Sabedoria

30.01.20

Dois recados


Luís Alves de Fraga

 

Hoje venho aqui, no intervalo de muitos trabalhos que tenho entre mãos, para deixar dois recados com endereço bem definido: à deputada Joacine Katar Moreira e à Procuradora-Geral da República.

 

Para a deputada:

 

Minha Senhora,

Quando levanta o problema da devolução das obras de arte trazidas das colónias ‒ questão já esgotada em França e na Alemanha, em inúmeras discussões ‒ esquece-se de equacionar duas facetas extremamente importantes:

a) As obras de arte originárias das colónias portuguesas existentes em museus nacionais representam um elemento histórico de um determinado momento que nada apagará, porque faz parte do património de vários povos: do português e dos das colónias de onde vieram.

É que, a Senhora não sabe, mas eu esclareço-a, para os historiadores um documento falso, por ser falso, não perde valor; pelo contrário, aumenta-lho, porque o mais importante para a História é saber e explicar a razão pela qual se falsificou um documento num dado momento. Este princípio aplica-se, que nem uma luva bem moldada, à questão que levantou. Importante é guardar as obras de arte num museu e explicá-las com rigor científico que, provavelmente, nem o autor seria capaz de desenvolver. Recorde-se da célebre Pedra de Roseta, sediada no Museu Britânico desde o começo do século XIX, e que, no Egipto, nunca tinha sido explorada convenientemente. Recorde-se das célebres Portas de Ishtar, guardadas no Museu de Pérgamo, em Berlim, desde 1930, passíveis de ser apreciadas, compreendidas e estudadas, coisa que, no Iraque, provavelmente, jamais iria acontecer.

Enfim, Cara Senhora, as obras de arte originárias das colónias portuguesas, se devolvidas, não teriam a garantia de preservação igual à dos museus nacionais, porque, se pensarmos que, infelizmente, há por lá gente que nunca viu nem sabe o que são aquelas peças e que, de acordo com a instabilidade política existente, por rivalidades mais racistas do que tribais, poderiam destruí-las, tal como aconteceu no Iraque a verdadeiras preciosidades da humanidade, melhor será que fiquem onde estão à espera de outros tempos e de outras capacidades culturais e intelectuais.

b) Mas, se os argumentos anteriores não lhe chegam, proponho uma análise calma, ponderada, imparcial quanto ao maior peso financeiro, cultural e afectivo sobre o valor de todo o património infraestrutural, que pelas colónias foi deixado não só pelo Estado português, mas, e talvez, acima de tudo, por particulares ‒ abandonaram casas, bens, objectos e, mais ainda, os seus mortos, para recolherem apressados a Portugal.

Faça contas às estradas, caminhos-de-ferro, instalações portuárias, escolas, hospitais, pontes, edifícios, saneamento básico, e tudo o mais que faz o bem-estar numa cidade, vila ou aldeia ‒ tudo isto, em certos casos, destruído, ocupado e vandalizado após as independências ‒ e diga-me quem tem a devolver o quê a quem!

Aceite os meus cumprimentos.

 

Para a Procuradora-Geral da República:

 

Minha Senhora,

Venho-lhe falar de um tal Rui Pinto, que não conheço em pessoa e de quem não tenho qualquer tipo de procuração. Falo-lhe como cidadão convicto dos meus direitos e dos meus deveres. Falo-lhe como um leigo, cheio de curiosidade e com algum saber em termos de investigação histórica. Falo-lhe porque resolvi quebrar um silêncio que me havia imposto, por achar melindrosa a defesa deste jovem português.

 

Procurei perceber o ou os crimes de Rui Pinto. Em síntese, o que achei foi a habilidade de um curioso sobre tudo aquilo a que só alguns podem ter acesso ‒ falo-lhe das grandes empresas onde estão armazenadas as memórias do que deixamos na Internet ‒ e outros, se o fizerem, são taxados de ingerência na vida privada.

Falo-lhe de alguém que, sabendo como utilizar a chave de castelos falsamente defendidos ‒ como já disse, estão guardados por gente que garante-nos preservar a nossa intimidade, mas que pode não o fazer quando quiser ‒ nos deu a conhecer muita da corrupção deste mundo de pessoas bem falantes, bem vestidas, bem disfarçadas, contudo ‒ essas sim ‒ profundamente desonestas.

Falo-lhe de um homem em princípio de vida que, perante a sujeira observada graças às suas habilidades informáticas ou, melhor dito, cibernéticas, se deixou tentar e ficou entre dois mundos: o da honestidade e o da desonestidade. Ficou, porque, se por um lado, quis extorquir dinheiro a vigaristas de grosso calibre, por outro, deu a conhecer ao mundo uma parte da sujeira encontrada nas suas buscas nos escaninhos onde só alguns podem entrar e ver tudo.

No fundo, se foi tentado para a prática de um crime que não se consumou, foi um denunciante activo de ocorrências muito graves.

Assim, motivado por esta segunda atitude, resolvi fazer uma breve pesquisa na Internet e veja o que descobri:

 

«A organização não governamental (ONG) Transparency International define denúncia ou whistleblowing de uma forma muito abrangente, tentando ampliar ao máximo a proteção destas pessoas. Assim, a Transparency International define denúncia ou whistleblowing como a divulgação ou denúncia de irregularidades, incluindo corrupção, outras infrações penais, violações de obrigações legais, erros judiciários, riscos específicos para a saúde pública, segurança ou meio ambiente, abuso de autoridade, uso não autorizado de fundos ou bens públicos, má gestão, conflitos de interesses e atos que visem encobrir qualquer uma das supra mencionadas. Ademais, a referida ONG define whistleblower como qualquer funcionário público ou do setor privado que divulgue informações sobre este tipo de irregularidades e que corre risco de retaliação por isso mesmo, incluindo indivíduos que não se enquadrem na relação de emprego tradicional, como consultores, empreiteiros, estagiários, voluntários, trabalhadores-estudantes, trabalhadores temporários e ex-funcionários. A informação que os denunciantes prestam pode ser comunicada aos seus colegas, supervisores, autoridades competentes ou público em geral.»

 

Trata-se de um pedacinho, e só um pedacinho, de um trabalho de investigação feito por um, hoje, mestre em Ciência Jurídico-Forenses de nome João António Alencastre de Matos Ramos, desde Março de 2019, inspector-estagiário da Polícia Judiciária, que apresentou a tese de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano de 2018, subordinada ao título, bem sugestivo, A protecção de denunciantes de corrupção e criminalidade conexa. O texto transcrito encontra-se na página 23.

 

Rui Pinto, segundo parece, tentou ser corrupto, todavia, os verdadeiros corruptos não lhe deram oportunidade para levar por diante o seu intento.

Ora, como ao Ministério Público cabe a função de acusar, tendo, para tal, de pesar razões, oportunidades, condições, consumações e tentações, ocorre-me perguntar-lhe, Senhora Procuradora-Geral da República, se, na “balança” da Procuradoria, pesam mais as tentativas frustradas ou as corrupções efectivadas?

É que, para mim, segundo o bom-senso que julgo ter, fruto de muito estudo, ponderação e vivência, as efectivações sempre foram mais graves do que as tentações falhadas.

Os meus respeitosos cumprimentos.

28.01.20

Ser ou não ser jovem


Luís Alves de Fraga

 

Ao longo da minha vida lidei com jovens ‒ digo jovens e não crianças ‒ cujas idades iam dos 17 aos 35 anos. Creio que foi, há anos, estabelecida esta última como limite da “juventude”.

Lidei com jovens nas Forças Armadas ‒ em todos os escalões hierárquicos ‒ e na universidade. Acho que tenho e tive, ao longo do tempo, a percepção clara do que e como é que pensam os jovens. Eu próprio fui jovem e recordo-me de como pensava e sentia. Acrescento que, na minha juventude, todos os rapazes eram chamados a assumir responsabilidades bem pesadas e difíceis de conjugar com deslizes de maturidade ‒ refiro-me ainda à casa dos 20 anos, porque aos 30 esperava-se que já não falhássemos.

 

Com o rodar do tempo, percebi que, embora assumindo cargos responsáveis, os jovens iam estando menos atentos aos valores herdados do passado e preexistentes socialmente, julgando dispensável a experiência vivida por outros.

Para perceber a diferença de épocas e não se julgar que estou fazendo um discurso de velho preso àquilo que se designa por “o meu tempo” darei um exemplo.

 

Ninguém tem dúvida que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 foi conduzido essencialmente por capitães e majores e um ou dois tenentes-coronéis. Vejamos as idades de alguns dos mais proeminentes à época: Vasco Lourenço ‒ 31 anos ‒, Melo Antunes ‒ 40 anos ‒, Otelo Saraiva de Carvalho ‒ 37 anos ‒, Vítor Crespo ‒ 42 anos ‒, Costa Martins ‒ 36 anos.

Nenhum destes homens ‒ e Melo Antunes estava em condições teóricas para o fazer ‒, no dia da revolta reivindicou a cadeira do Poder para dirigir Portugal rumo à liberdade e à democracia. Todos optaram por entregar à Junta de Salvação Nacional esse encargo. Esta compunha-se de quatro generais com idades iguais ou superiores a 50 anos, um coronel com 52 e um capitão-de-mar-e-guerra com 56 anos.

 

Ora, vem isto ao caso, porque há dois dias foi eleito para dirigir um partido político com marcadas responsabilidades no quadro parlamentar um jovem que nem tem ainda idade para se candidatar ao lugar de Presidente da República.

Para mim, muito mal vai a política quando confia no fulgor juvenil de um candidato que, ainda agora, acabou de nascer para a vida profissional e estará “no ovo” para a vida pública.

O discurso dele, necessariamente, terá de ser feito na base de chavões populistas com tendências reaccionárias e ou tradicionalistas, marialvas, sexistas, talvez homofóbicas, talvez xenófobas, talvez racistas sem grande alcance pelas consequências do “fogo” que poderá atear.

 

Onde está a sensatez de um partido que, sendo de direita, soube acolher gente como Adriano Moreira ‒ a quem se pode atirar o labéu de colaborador de Salazar, mas a quem se tem de dar crédito pela sua capacidade de integração no jogo democrático ‒ Basílio Horta, Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e, até mesmo, Paulo Portas?

Que viragem pretende fazer o nosso partido de direita democrática? Vai radicalizar-se para espantar o que mais à direita se lhe afigura?

Na minha opinião, mal de um partido político que se entrega por inteiro na insensata “sensatez” de um jovem carente de protagonismo, de visibilidade e de experiência. Mal para o partido e mal para todos nós, pois, o que um faz afecta todos.

24.01.20

Carta fora do baralho


Luís Alves de Fraga

 

Não tenhamos dúvidas sobre a ausência de uma estratégia coerente por parte dos EUA, o mesmo é dizer, do seu presidente Donald Trump.

Fundamento-me, para fazer esta afirmação, no escarcéu havido há meses, à volta de Juan Guaidó e da Venezuela. Estava, nessa altura, nos planos de Trump. Passou rapidamente de “moda”, em Washington.

 

Claro que, na Venezuela, os problemas continuam iguais ou piores do que há meses; claro que por lá, uma classe média habituada à exploração de quem dela dependia se sente mal ou já fugiu; claro que não será o país das mil e uma maravilhas, porque está a ensaiar, no continente americano, um sistema tendencialmente socialista, com todas as alterações que tal mudança justifica. Mas é também um país a sofrer boicotes comerciais de todo o lado, uma nação em angústia, porque o rendimento da sua principal fonte de riqueza está bloqueado. Tudo isto, porque a governança deveria obediência aos interesses dos grandes capitais internacionais.

 

Juan Guaidó anda em tournée pelas principais capitais que o reconheceram como presidente interino da Venezuela ‒ diga-se, de passagem, um verdadeiro erro diplomático, uma precipitação, uma interferência nos assuntos internos de um Estado soberano ‒ na tentativa de encontrar apoios para a sua causa. Como é evidente, por agora, Juan Guaidó é uma carta fora do baralho da política internacional. Lastimoso é que ele julgue não o ser; lastimoso é alimentar esperanças quando já não há condições para as ter.

 

De tudo isto tiro ‒ e, julgo, devemos tirar ‒ uma conclusão: os apoios internacionais são tão voláteis como o éter; evaporam-se enquanto o diabo esfrega um olho e valem menos do que a vida de um rato de esgoto.

23.01.20

Expresso


Luís Alves de Fraga

 

Passou há dias o quadragésimo sétimo aniversário da publicação do semanário Expresso. Foi, naquele tempo, um feito de grande relevância. Era o ano anterior ao 25 de Abril e o ano em que marchei para Moçambique no cumprimento da minha última comissão de serviço militar em África.

 

A Primavera Marcelista já tinha acabado. A censura, não sendo já tão rígida como nos anos de Salazar, havia retomado a fúria dos cortes. O problema magno era a guerra nas colónias; tocar nesse assunto equivalia a mexer em fogo. Mas o Expresso ia caminhando e gerando uma nova cultura a par de outras vindas dos jornais República e Diário de Lisboa. Era uma questão de saber jogar com os coronéis censores! A maioria, gente de fraquíssima ilustração cultural, mas muito vigor para servir o fascismo português.

 

Mas havia que perceber um pouco melhor quem estava por trás do Expresso. O homem que dava a cara pelo jornal ‒ Francisco Pinto Balsemão ‒ era um tipo do regime, um tipo que girava na alta-roda dos políticos fascistas; no tempo em que cumpriu serviço militar ‒ na Força Aérea, na mesma especialidade que é a minha ‒ foi ajudante-de-campo do secretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, aquele que, anos depois, já general, quis convencer o país de que ganhara a guerra em Moçambique e que, nas vésperas do 25 de Abril de 1974, conspirava para preparar um golpe de ultradireita; o mesmo que denunciou, em Abril de 1961, o chamado golpe Botelho Moniz, cuja finalidade era a de arranjar uma solução que evitasse a guerra em África, depondo Salazar.

Pinto Balsemão pertencia à alta-roda do poder instituído, por isso, o Expresso nasceu com dois destinos: gerar a sensação de maior abertura informativa, enganando-nos ‒ como nos enganou, de facto ‒ e servir de temporizador de uma mudança desejada, mas dentro dos limites de uma democracia jamais democrática. Era o prolongamento prático da ala liberal da Assembleia Nacional, que, para ser liberal, só o era por contraponto à ala dos ultras.

 

Mas, como acontece normalmente, quem faz um filho perde, passado tempo, o controlo da vontade do jovem, este ganha a autonomia que pode; também, no final de 1973 e começo de 1974, o “Expresso” ganhou personalidade “adolescente” e começou a fugir das mãos de todos. Era ele mesmo e o seu corpo redactorial. Quando o livro do general Spínola ‒ Portugal e o Futuro ‒ saiu para as bancas das livrarias, o Expresso transcreveu larguíssimas partes do original.

Era ainda um livro de um homem do sistema, mas em revolta. As transcrições, parecendo o contrário, estavam ainda na linha geratriz do jornal, ou seja, dentro do regime, mas em movimento centrífugo.

 

O pós golpe militar de Abril de 1974 originou uma clara mudança nos objectivos do semanário, contudo, vendo bem e cautelosamente, ele continuou a ser o jornal que, lá no fundo, estava em concordância com Sá-Carneiro, um homem vindo do regime fascista nacional, contudo, criador de um partido de abrigo da gente descontente com a brutalidade de uma ditadura, que poderia ser branda, parecendo democrática.

O Expresso é, ainda hoje, um jornal de referência, democrático, mas um jornal cheio do equívoco que nasceu com ele. É, afinal, o fruto do nosso equívoco com a política dos brandos costumes. Somos assim e ele é assim!

21.01.20

Secretária da Cultura


Luís Alves de Fraga

 

As pessoas são muito estranhas!

Não se deve esperar que um actor seja coerente com o papel que desempenha; claro que um ladrão na tela da televisão jamais terá de ser um gatuno na vida real; menos ainda um assassino ou um santo ou… seja o que for. Uma coisa é a ilusão do teatro, do cinema e da televisão e outra, bem diferente, a vida do dia-a-dia.

Mas, atrevo-me a dizer, a bem de uma ética e de uma certa sanidade mental do actor e da sociedade, que o primeiro deverá ter em conta, nos seus comportamentos fora do palco, o efeito ‒ digo e repito ‒ o efeito social que o seu personagem provoca em quem o vê e ou ouve, já que, um personagem de uma telenovela, de um filme, de uma peça teatral, pode influenciar fortemente quem o acompanha no tempo da representação. Muitas vezes, todos nós agimos em concordância com um certo mimetismo proveniente de uma cena teatralizada.

 

No final dos anos 70, começo dos 80, do século passado, foi lançada, cá e no Brasil, uma série televisiva extraordinariamente real, com problemáticas profundamente actuais para a época e excelentemente desempenhadas por uma actriz, já na altura, de grande craveira artística: Regina Duarte. Aquela mesma que fez de Viúva Porcina, contracenando com o Senhorzinho Malta, mais tarde. A série a que me refiro foi baptizada com o significativo nome de «Malu, Mulher».

 

Quem não se lembra daquela jovem lutadora, independente, resiliente face a todas adversidades? Quem não se lembra de uma combatente pelos seus direitos de cidadania e de gente num mundo cheio de preconceitos ditados pelos homens ainda apegados a um machismo proto-fascista?

Foi essa personagem quem determinou, entre nós, aqui, em Portugal, muitas cópias comportamentais na luta por uma independência feminina num país a sair de um obscurantismo fascista.

 

Na minha opinião, e de acordo com o exposto inicialmente, julgo, a actriz Regina Duarte ao aceitar ‒ como parece ter aceitado ‒ o cargo de secretária da Cultura do Governo de Jair Bolsonaro atraiçoou a Malu, tão independente e tão lutadora por direitos hoje em vias de serem ultrapassados ‒ se é que já não o foram ‒, no Brasil, pelo populista capitão-presidente brasileiro.

Posso estar a exigir demais de Regina Duarte, mas acho que ela, como mulher culta, experiente e independente, deve ter uma atitude muito mais crítica de Bolsonaro do que aquela resultante da aceitação de um cargo governamental.

Enfim, toda a pessoa humana tem um preço!

20.01.20

Andava eu por aí…


Luís Alves de Fraga

 

Rui Rio ganhou.

‒ Mas ganhou o quê?

‒ Um partido despedaçado, sem uma ideologia dominante, sem um projecto capaz de oposição. Ganhou um partido em desconfiança permanente, um partido que se quer opor aos “chuchialistas”, mas só tem para fazer oposição esta vontade e esta crítica.

O PSD, com Passos Coelho e, quase de certeza, com Montenegro seria um partido com ideologia: a do neoliberalismo, a da entrega tudo à vontade do mercado, a do favorece o capital qualquer que ele seja. Contudo, com Rui Rio a alternativa ideológica que se vislumbra é a da estafada social-democracia “diminuída” (para a “outra”, temos o PS!).

 

Tudo isto é assim, porque o PPD/PSD foi um erro de casting na política nacional! Ele nasceu para ser o partido dos apoiantes envergonhados do Estado Novo, daqueles que queriam a democracia, mas uma democracia sem esquerda, em especial comunista. Foi isso que ele foi na Região Autónoma da Madeira com o Alberto João Jardim; era isso que ele queria ser no continente, mas o Marocas trocou-lhe as voltas, muito embora o ressabiado Cavaco Silva tenha tentado impor o partido como elemento director da política nacional.

Em conclusão, o PSD, tal como o CDS, o PCP e, talvez o BE, têm os dias contados, ou melhor, os anos contados, pois começam a erguer-se no horizonte partidos com novas respostas para um tempo que já não vai ser em nada igual ao dos anos 70 do século passado. Rui Rio, se não for o coveiro do PSD vai ser o cangalheiro que o leva até ao cemitério da política. Provavelmente, eu já não estarei por cá para ver isso!

 

Em contrapartida, Isabel dos Santos está nas bocas do mundo! Sempre esteve desde que ganhou o seu primeiro dinheiro a vender ovos ‒ ou será galinhas que punham ovos de oiro? ‒ na praia!

Engraçado, porque esta história cheira-me a plágio de uma outra. Eu conto.

Marcus Samuel, fundador da petrolífera Shell, ganhou o seu primeiro dinheiro a vender conchas aos turistas e coleccionadores, no século XIX. Não vos parece estranha tal coincidência? Adiante!

 

Com quarenta e sete anos de idade e mais de vinte de experiência a Isabelinha tornou-se numa gestora excepcional! E assim se justifica o seu êxito! Mas, gaita, só eu trabalhei mais de cinquenta anos e não tive a pequenina oportunidade de conseguir um décimo da fortuna da “piquena”! Há gente com muita sorte, experiência, saber e inteligência! Eu, para azar dos azares, tive um pai que só foi enfermeiro da Marinha de Guerra! E presidente, que eu saiba, só foi da Casa de Repouso da Enfermagem Portuguesa, há muitos, muitos anos.

 

Enfim, vou continuar a andar por aí… tal e qual como o outro!

15.01.20

Pequenas coisas importantes


Luís Alves de Fraga

 

Foi notícia há pouco tempo a publicação de um livro escrito, em co-autoria, pelo Papa Emérito Bento XVI.

São sabidas as profundas diferenças de pensamento e de postura entre Ratzinger e Francisco; um, olha a doutrina católica de Roma com rigidez de princípios e outro compreende a necessidade de reforma de algumas tradições, sem, contudo, ferir o essencial daquela religião.

Trata-se, afinal de contas, da permanente luta entre o conservadorismo e o evolucionismo, a mudança, a modernização. E sobre isto, no domínio da Igreja Católica eu ‒ que há muitos anos abandonei todas as práticas públicas desse credo ‒ tenho, no entanto, ideias por mim julgadas “desempoeiradas”, todavia, se calhar, pouco ortodoxas e ou consensuais.

Não compreendo o celibato dos sacerdotes, a confissão auricular, a impossibilidade de ordenar mulheres para celebração do culto, tal como não entendo a clausura e o silêncio em certas ordens religiosas ‒ penso que seriam socialmente mais úteis, desenvolvendo acções de apoio e ensino ‒, confunde-me a dificuldade em reconhecer comportamentos errados do clero e um certo exibicionismo de riqueza e pompa por parte de muitos prelados. Naturalmente, aplaudo os pequenos passos dados pelo Papa Francisco no sentido de uma maior abertura de uma Igreja há muito fechada a toda a mudança. Assim, reprovo o facto de Ratzinger publicar um livro onde, com perspicácia ou sem ela, critica o seu sucessor.

 

O Livre, partido inscrito na matriz da esquerda, tem perdido credibilidade, seriedade e prestígio por causa das atitudes e acção provocatória e inconsequente da deputada eleita, Joacine Katar Moreira.

A escolha desta personagem para primeira figura da lista eleitoral por Lisboa foi um tiro no pé, por falta de observação dos aspectos não revelados da personalidade da senhora. Agora, no próximo sábado e domingo, vai-se debater em conjunto a possibilidade de ela apresentar escusa de mandato, gerando a oportunidade de ser substituída pelo segundo elemento da lista ou de, em última análise, se ela recusar a solução, de ser desligada do partido.

Muita gente não vê importância na necessidade de resolução deste assunto. Eu vejo e explico o meu ponto de vista.

Pelo menos, na Península Ibérica está-se a assistir a uma pulverização de partidos políticos com assento parlamentar, gerando a erosão dos partidos tradicionais, coisa que indicia a perda de interesse do eleitorado nesses velhos partidos, transferindo para os mais recentes a sua simpatia e esperança.

Por cá, a queda do CDS/PP e a redução de votação no PSD parecem anunciar que, também, à esquerda ‒ PCP, pelo menos ‒ algo de semelhante vai ocorrer, ficando o PS e o Bloco como únicas alternativas. A eleição de Joacine dá-nos já a indicação dessa possibilidade, pois certos eleitores ‒ pelo menos em Lisboa, facto com certa notoriedade ‒ optaram por desviar o seu voto dos partidos tradicionais, dando-o a um “novato”. A acção parlamentar da deputada do Livre pode pôr em risco a alternativa da opção à esquerda fora do quadro dos partidos tradicionais. Isto é significativamente importante.

 

Chegam notícias alarmantes do Parlamento: o número de propostas de alteração do orçamento sobe para mais de cento e cinquenta! E todas vindas dos partidos à esquerda do PS.

Este é o resultado da existência do anterior acordo de incidência parlamentar ‒ a chamada “geringonça” ‒, pois demonstra que a abstenção necessária para a aprovação do orçamento tem custos inevitáveis e, até, desconcertantes. Explico-me.

Tantas propostas de alteração, se levadas a cabo, descaracterizam o orçamento ou tornam-no numa peça desarticulada, pois desviam-no do sentido inicial, já que se não concebe um tal documento sem objectivos bem marcados. Mas, pior do que isto, é o facto de com tanta proposta os dois partidos à esquerda darem de si mesmos uma imagem eleitoralista e não de responsabilidade, pois, em vez de se concentrarem em dois ou três objectivos principais e fundamentais, obrigando o PS a corrigir rumos, dispersam-se na ânsia de quererem agradar ao eleitorado, evidenciando, à compita, qual dos dois defende melhor as reivindicações de todos os portugueses descontentes. É por aqui, depois da reformulação do orçamento, e já durante o ano, que a oposição de direita poderá “entrar a matar”, atacando toda a esquerda, porque um cedeu e os outros tornaram-se co-responsáveis por práticas políticas dispersantes. Para mim, isto é muito importante.

14.01.20

A nova década


Luís Alves de Fraga

 

Ontem, ao serão, graças ao aviso lançado por um Amigo, passei, já tardiamente, por um canal televisivo onde se discutiam os tempos de agora. Apercebi-me que se falava do Irão, do assassinato do general, de petróleo, de clima e poluição e, também, das esperanças para o futuro. Do que vi e ouvi, escolhi para tema de reflexão de hoje a mudança de paradigma político que se avizinha.

 

Há cem anos começavam os, depois, designados “loucos anos 20”. Foi um tempo, na Europa e nos EUA, de desbunda. A guerra, acabada em 1918, provara quão efémera era a vida humana, desbaratada nas trincheiras por vontade de políticos que até tinham dificuldade em justificar a razão da carnificina, gerando um tempo de desejo de viver sem responsabilidades, ainda que correndo riscos, um tempo de loucura, desde o uso e abuso de cocaína até à dança desengonçada de ritmos novos, passando por uma profunda alteração da moda e dos costumes. Na Europa e nos EUA procurava-se um novo caminho, um novo rumo para a vida.

 

Como a História não se repete, de certeza não vamos reviver o que se passou há cem anos, mas, contudo, estamos num impasse político, social e, acima de tudo, económico.

Os Estados europeus perderam quase toda a importância política e financeira de há cem anos. Hoje o centro da decisão das ocorrências no mundo deixou de estar ligado ao eixo Londres-Paris-Berlim para se estabelecer na linha que une Washington-Moscovo-Pequim. Já nem sequer é bipolar a decisão política no globo, como conseguiu ser após a 2.ª Guerra Mundial; com a queda do bloco de Leste, multiplicaram-se os centros de instabilidade, ganhando autonomias impensáveis.

A separação, pelo menos aparente ou disfarçada, entre a política e a finança tornou-se, na viragem do século, promíscua, evidente e avassaladora. As fortunas aumentaram a níveis impensados, fugindo aos sistemas fiscais dos Estados, fixando-se em paraísos aduaneiros onde se lava o dinheiro cujo valor se multiplica exponencialmente. Os resquícios de ética nos comportamentos sociais, comerciais e políticos desapareceram. A democracia herdada do século XIX e transformada com as mudanças do século XX está em plena crise; vêem-se proliferar, um pouco por todo o lado, os populismos, que não matam o sistema democrático, mas alienam-no, tal como se notam afloramentos de fascismos diferenciados daqueles que existiram no passado, mas, todavia, plenos de xenofobia, de racismo, de violência.

 

A segunda década do século XXI ameaça fazer ruir os procedimentos sociais, políticos e económicos tradicionais sem nos mostrar alternativas ideológicas e doutrinárias como aconteceu no final do século XIX. Sabemos que se esboça uma mudança, mas não sabemos qual é nem para onde vamos. A única ideologia que parece comandar a sociedade é a chamada globalização. Mas ela surge-nos mais como uma ameaça de destruição do que como uma redenção política, social e económica. Parece que se vive para o consumo sem ter oportunidade de poupar, enquanto outra parte da população global cai na mais sinistra miséria. O discurso político está centrado nas alterações climáticas ao mesmo tempo que subsiste uma prática contrária à sustentabilidade da vida na Terra.

 

Há, cada vez mais, um egoísmo colectivo, não nacionalista, porque, parece, se quer esbater fronteiras com apropriação de tudo o que é dos outros como, se quem pode viajar, desejasse “comer” o mundo, consumindo-o através da afirmação de o ter percorrido de lés-a-lés. Em simultâneo, há quem nunca tenha saído do seu pedaço de chão e morra sem consciência do que se passa fora da distância do seu olhar.

Os fossos económicos e culturais aprofundam-se até atingirem proporções descomunais. Há gente, no mundo, que nunca passará do simples conhecimento de si mesma, sem outros horizontes de destinos que não sejam a sobrevivência e a morte. Por outro lado, “desperdiça-se” educação e instrução com gente que não quer aprender, porque tem acesso a quase tudo sem esforço.

De facto, objectivamente, não há progresso! Há desigualdades onde uns beneficiam de descobertas e outros ajudam, quando muito, a construir os artefactos que estabelecem as diferenças.

 

A crise dos anos vinte deste século vai desaguar não sabemos em que oceano, mas em algum lado a humanidade encontrará o seu fim.

13.01.20

Liberdades e Democracias


Luís Alves de Fraga

 

(Este texto é dedicado ao meu Amigo e Camarada de Armas Engenheiro José João Roseira)

 

Poder-se-á falar de liberdades e de democracias, no plural, ou dever-se-á considerar como correcta a singularidade da Liberdade e da Democracia, propositadamente grafadas com maiúsculas?

Eis a questão sobre a qual vou discorrer.

 

Não pretendo retrogradar no tempo mais do que o suficiente para que se compreenda a tese que defendo: a pluralidade do conceito de liberdade e de democracia. Assim, basta-nos ir até ao século XVII, à Revolução Inglesa, para detectarmos os primeiros arremedos teóricos da luta pela liberdade individual (John Locke) e cotejá-los com a Revolução Francesa, no final do século XVIII, para percebermos quanto se afirmou o desejo de realização dessa liberdade, tanto no plano social como nos da política e da economia (Jean Jacques Rousseau, David Ricardo e Adam Smith).

Na verdade, a especulação teórica contra o absolutismo real, levou, também, à especulação sobre a liberdade económica. Deste modo, julgo não errar, posso afirmar que da Revolução Inglesa à Revolução Francesa e à Revolução Industrial não vai grande distância na defesa do direito do indivíduo se afirmar pelo seu eu próprio enquanto cidadão e produtor de riqueza. Ou seja, com a realização da separação dos poderes (Montesquieu) assumiu-se que a liberdade do indivíduo acaba onde começa a liberdade do seu semelhante. Todavia, esta afirmação é altamente falaciosa. Vejamos.

 

Se a minha liberdade acaba onde começa a do outro, a ideia nascida das Revoluções Inglesa e Francesa, que se passou a designar por liberalismo, permite ‒ na teoria e na prática ‒ que eu leve tão longe a minha liberdade que reduza a nada a liberdade de quem se me opõe. Então, por força desta razão, na economia, a salutar lei da oferta e da procura, ver-se-á completamente deturpada, pois, posso e devo ‒ para realizar o máximo lucro ‒ expandir até ao extremo a minha liberdade, esmagando a liberdade de quem trabalha para mim, por lhe retirar direitos. Esta é a liberdade liberal traduzida no primado da liberdade individual. Foi esta liberdade que deu forma à democracia liberal, com poderes separados, tornando-se naquela que mais prezamos por nos dar garantias de defesa dos nossos direitos individuais.

 

No século XIX, em pleno desenvolvimento da Revolução Industrial, logo, no tempo do verdadeiro esplendor do liberalismo, surgem as grandes contestações a esta doutrina política, económica e, por isso, social. Contestações que vão do socialismo utópico (Saint-Simon) ao anarquismo (Proudhon), passando pelo socialismo científico (Marx e Engels que fazem uso da dialéctica de Hegel).

Em síntese, todas se concentram no excesso de liberdade preconizada pelo liberalismo, porque, se à partida, todos os homens nascem iguais e com igualdade de oportunidades, o certo é que nem todos reúnem condições para realizar as potenciais oportunidades, facto que, realmente, estabelece a desigualdade. Por conseguinte, é a economia quem dita a necessidade de alterar a doutrina política.

 

Foi durante a Grande Guerra e logo nos anos imediatos que se concretizaram dois modelos políticos de contestação ao liberalismo económico e político: o sovietismo na Rússia (Marx apropriado por Lenine) e o fascismo na Itália (Mussolini). Ambos vão, cada um à sua maneira, dar novo significado ao conceito de liberdade e, consequentemente, de democracia. Vejamos como.

 

Na Rússia, Lenine, aproveitando ainda a lembrança da servidão da gleba tão vivo na memória dos camponeses e a pouca experiência de um operariado recente, socializa os meios de produção (fábricas), acabando, deste modo, com o conflito entre o trabalho e o capital (este, sendo pertença da sociedade, leva a que a apropriação da mais-valia, identificada e explicada por Marx, é, afinal, de todos, deixando de haver exploração); para que fosse possível uma equitativa distribuição dos bens necessários a todos teria de ser ultrapassada a lei da oferta e da procura, estabelecendo uma economia planificada onde a liberdade de circulação impedisse os desequilíbrios resultantes dos movimentos migratórios.

Estabelecidos os princípios da produção, a política deixava de fazer sentido, pois os interesses eram determinados pelo colectivo, ou seja, pela sociedade organizada em sovietes (assembleias de representantes das diferentes associações) que fariam subir até ao mais alto nível a decisão tomada em conjunto.

Num tal sistema a liberdade individual deixava de fazer sentido, pois imperava a liberdade colectiva através do exercício de uma democracia de base. Havia nascido assim uma nova liberdade e uma nova democracia. Teoricamente o partido político funcionaria como simples motor para arranque de todo o sistema, coordenando-o para se chegar ao soviete supremo de onde sairiam as coordenadas para um funcionamento quase perfeito.

A falha do sistema resultou da existência simultânea de três obstáculos: recusa interna da perda da liberdade individual; recusa interna da colectivização das propriedades rurais; coexistência de dois sistemas económicos em confronto: o de mercado (no resto do mundo) e o planificado (na URSS).

 

Na Itália, Mussolini, na perspectiva de ultrapassar o conflito entre o capital e o trabalho, com recurso ao partido fascista, fundamentou a vida económica no modelo medieval das corporações de ofícios, ou seja, fez recriar a organização do associativismo sindical e patronal sob a tutela exclusiva do Estado, tornando este no grande árbitro dos desentendimentos produtivos e laborais. Para que tal resultasse impôs às partes em confronto um valor mais alto e mais relevante do que o dos simples interesses individuais: impôs o valor do Estado, o mesmo é dizer, o da colectividade. Deste modo, reduziu a nada a disputa política, porque o Estado era omnisciente e, por definição, omnipotente, porque, tendo o poder do colectivo, sabia como e quando se definia e delimitava a vontade de todos.

De novo, apagavam-se, perante o colectivo, a vontade e a liberdade individuais para dar lugar a uma liberdade de todos, exercida através da representação dos dois factores mais importantes da produção, ou seja, de uma nova democracia.

 

Como creio ter demonstrado, cheguei à explicação da existência de liberdades e de democracias distintas das dos conceitos herdados da Revolução Francesa. O facto de não terem vingado não anula a sua existência, tanto mais que, desde as datas das suas primeiras experiências, se continua, um pouco por todo o mundo, a ensaiar variantes dos paradigmas iniciais, naturalmente, à esquerda e à direita da liberdade e da democracia liberal, também ela, já abastardada relativamente ao modelo do século XIX.

12.01.20

O Ultimato Inglês


Luís Alves de Fraga

 

Passou ontem o centésimo trigésimo aniversário do ultimato inglês a Portugal, determinado pela imposição de o Governo de Lisboa fazer sair do território dos Macololos e dos Machonas uma pequena força militar que por lá andava a proceder ao levantamento topográfico para a abertura de uma linha de caminho-de-ferro ida da costa oriental da África até ao interior.

A explicação da atitude de Londres não se pode ficar por esta meia dúzia de palavras. Tem de ir mais longe, pois só desse modo se alcança a deselegância do Governo britânico e a manha da do português.

 

Portugal definiu, logo na primeira metade do século XV, a sua “vocação” económica quando começou a comerciar com os povos da costa africana e, mais tarde com os do Oriente e, depois, com o Brasil: o grande sustentáculo nacional passava pela navegação marítima e transporte de mercadorias entre os portos onde chegava. Vendeu-se e comprou-se de tudo nos três séculos seguintes. Certas vicissitudes da política nacional fizeram mudar de rumo geográfico a actividade mercantil, mas foi sempre o monopólio da navegação que garantiu aos cofres da Coroa os réditos necessários para esta ir cumprindo as obrigações a que estava sujeita. Até ao fim do século XV a costa de África foi a fonte de comércio, na centúria seguinte passou para o Oriente, na segunda metade do século XVII virou-se para o Brasil até ao início do século XIX, quando Londres, para dar apoio à fuga da família real portuguesa e de grande parte da corte para a colónia americana, exigiu que findasse essa exclusividade naval, abrindo o país os portos à navegação internacional. Foi por essa altura que a Inglaterra passou a tutelar Portugal, pois, a par da revolução industrial iniciada na segunda metade do século XVIII, queria ampliar os mercados fornecedores de matérias-primas e o de compradores para os seus têxteis.

 

Depois da independência do Brasil e do apaziguamento das lutas liberais internas restava a Portugal voltar-se, de novo, para o comércio africano, monopolizando-o. E foi o que fez. A “mercadoria” mais rentável da época era a do transporte de escravos de África para a América.

Também aqui ocorreram dois tipos de “desaire”: por um lado, os Estados com capacidade naval entraram a concorrer com Portugal, traficando nos portos onde tradicionalmente os nossos navios acostavam; por outro, a Grã-Bretanha, temendo a concorrência industrial dos Estados Unidos da América por causa de ali ser mais barata a mão-de-obra na cultura do algodão, impôs a luta contra o esclavagismo, fazendo-a passar por um imperativo de ordem moral.

 

Mas a expansão da produção de têxtil britânica impunha, como já disse, a ampliação do mercado comprador. Assim se justificam as medidas tomadas na Índia contra a manufactura de panos nos teares familiares e a célebre frase, que dominou a segunda metade do século XIX ‒ “o fardo do homem branco” ‒ em relação à obrigação de “civilizar” os negros de África; “civilização” que mais não era do que levar os indígenas a comprar os tecidos baratos exportados pelos ingleses.

 

Percebe-se, agora, a fragilidade portuguesa, se tomarmos em devida conta que, desde sempre, a presença dos nossos “colonos” em África nunca foi além de poucos quilómetros a partir da orla marítima. Basta consultar a Constituição Política de 1822, para o verificar. Transcrevo:

«A Nação Portuguesa é a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. O seu território forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e compreende: […] Na África Ocidental, Bissau e Cacheu; na Costa de Mina, o forte de S. João Baptista de Ajudá, Angola [entenda-se Luanda e o reino tradicional de N´Gola], Benguela e suas dependências, Cabinda e Molembo, as ilhas de Cabo Verde, e as de S. Tomé e Príncipe e suas dependências na Costa Oriental, Moçambique [entenda-se a ilha de Moçambique], Rio de Sena, Sofala, Inhambane, Quelimane, e as ilhas de Cabo Delgado; […]».

 

Para compensar a falta do Brasil e tentar recriar as condições perdidas, a partir de 1875, com a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa, gerou-se um movimento, apoiado pelos governos da Monarquia, no sentido de explorar e, dentro do possível, acompanhar a acção de alguns Estados europeus (Bélgica, França e Grã-Bretanha), ocupando o interior de África, indo de parte da costa ocidental à costa oriental.

Esta política justificou-se, mais ainda, depois da Conferência de Berlim, concluída em 1885, pois os “direitos históricos” deixaram de ter qualquer valia, sobrepondo-se-lhe o princípio da “ocupação efectiva”.

Em Lisboa, porque se percebeu a manobra inglesa com vista à protecção das suas indústrias, procurou-se redefinir uma política de alianças e de apoios internacionais distinta da que tradicionalmente amarrava Portugal à Inglaterra e, deste modo, tentou jogar-se com Paris e Berlim, rivais de Londres na partilha de África. Foi da França e da Alemanha que se obteve a concordância para a definição do mapa cor-de-rosa (ligação da costa de Angola à de Moçambique).

 

De Londres foram sendo feitos avisos ao Governo de Lisboa, mas foram por este ignorados, como aconselhava uma política de aproximação à Alemanha, julgada como alternativa à aliança anglo-lusa. Face ao silêncio do Ministério dos Negócios Estrangeiros português o Governo britânico só teve de encontrar o momento e a oportunidade para “colocar na ordem” o “leviano e rebelde aliado”, que tentava fugir da sua órbita política e económica. Daí ao ultimato foi um passo.

 

O Partido Republicano Português, que se estava a afirmar no contexto interno, explorou ao máximo o acontecimento com três efeitos simultâneos: desacreditar a Monarquia, credibilizar a República como regime alternativo e desmascarar a política interesseira, arrogante e traiçoeira da Inglaterra. Conseguiu alcançar os seus objectivos no imediato e no médio e longo prazo.

 

Conclusão a tirar: nem o ultimato foi uma surpresa, nem a justificação dada para o mesmo ‒ união do Cabo ao Cairo ‒ era totalmente verdadeira, nem Portugal agiu inocentemente. O ultimato foi o resultado de um contexto económico internacional e de um choque de interesses nacionais.

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