Dois recados
Hoje venho aqui, no intervalo de muitos trabalhos que tenho entre mãos, para deixar dois recados com endereço bem definido: à deputada Joacine Katar Moreira e à Procuradora-Geral da República.
Para a deputada:
Minha Senhora,
Quando levanta o problema da devolução das obras de arte trazidas das colónias ‒ questão já esgotada em França e na Alemanha, em inúmeras discussões ‒ esquece-se de equacionar duas facetas extremamente importantes:
a) As obras de arte originárias das colónias portuguesas existentes em museus nacionais representam um elemento histórico de um determinado momento que nada apagará, porque faz parte do património de vários povos: do português e dos das colónias de onde vieram.
É que, a Senhora não sabe, mas eu esclareço-a, para os historiadores um documento falso, por ser falso, não perde valor; pelo contrário, aumenta-lho, porque o mais importante para a História é saber e explicar a razão pela qual se falsificou um documento num dado momento. Este princípio aplica-se, que nem uma luva bem moldada, à questão que levantou. Importante é guardar as obras de arte num museu e explicá-las com rigor científico que, provavelmente, nem o autor seria capaz de desenvolver. Recorde-se da célebre Pedra de Roseta, sediada no Museu Britânico desde o começo do século XIX, e que, no Egipto, nunca tinha sido explorada convenientemente. Recorde-se das célebres Portas de Ishtar, guardadas no Museu de Pérgamo, em Berlim, desde 1930, passíveis de ser apreciadas, compreendidas e estudadas, coisa que, no Iraque, provavelmente, jamais iria acontecer.
Enfim, Cara Senhora, as obras de arte originárias das colónias portuguesas, se devolvidas, não teriam a garantia de preservação igual à dos museus nacionais, porque, se pensarmos que, infelizmente, há por lá gente que nunca viu nem sabe o que são aquelas peças e que, de acordo com a instabilidade política existente, por rivalidades mais racistas do que tribais, poderiam destruí-las, tal como aconteceu no Iraque a verdadeiras preciosidades da humanidade, melhor será que fiquem onde estão à espera de outros tempos e de outras capacidades culturais e intelectuais.
b) Mas, se os argumentos anteriores não lhe chegam, proponho uma análise calma, ponderada, imparcial quanto ao maior peso financeiro, cultural e afectivo sobre o valor de todo o património infraestrutural, que pelas colónias foi deixado não só pelo Estado português, mas, e talvez, acima de tudo, por particulares ‒ abandonaram casas, bens, objectos e, mais ainda, os seus mortos, para recolherem apressados a Portugal.
Faça contas às estradas, caminhos-de-ferro, instalações portuárias, escolas, hospitais, pontes, edifícios, saneamento básico, e tudo o mais que faz o bem-estar numa cidade, vila ou aldeia ‒ tudo isto, em certos casos, destruído, ocupado e vandalizado após as independências ‒ e diga-me quem tem a devolver o quê a quem!
Aceite os meus cumprimentos.
Para a Procuradora-Geral da República:
Minha Senhora,
Venho-lhe falar de um tal Rui Pinto, que não conheço em pessoa e de quem não tenho qualquer tipo de procuração. Falo-lhe como cidadão convicto dos meus direitos e dos meus deveres. Falo-lhe como um leigo, cheio de curiosidade e com algum saber em termos de investigação histórica. Falo-lhe porque resolvi quebrar um silêncio que me havia imposto, por achar melindrosa a defesa deste jovem português.
Procurei perceber o ou os crimes de Rui Pinto. Em síntese, o que achei foi a habilidade de um curioso sobre tudo aquilo a que só alguns podem ter acesso ‒ falo-lhe das grandes empresas onde estão armazenadas as memórias do que deixamos na Internet ‒ e outros, se o fizerem, são taxados de ingerência na vida privada.
Falo-lhe de alguém que, sabendo como utilizar a chave de castelos falsamente defendidos ‒ como já disse, estão guardados por gente que garante-nos preservar a nossa intimidade, mas que pode não o fazer quando quiser ‒ nos deu a conhecer muita da corrupção deste mundo de pessoas bem falantes, bem vestidas, bem disfarçadas, contudo ‒ essas sim ‒ profundamente desonestas.
Falo-lhe de um homem em princípio de vida que, perante a sujeira observada graças às suas habilidades informáticas ou, melhor dito, cibernéticas, se deixou tentar e ficou entre dois mundos: o da honestidade e o da desonestidade. Ficou, porque, se por um lado, quis extorquir dinheiro a vigaristas de grosso calibre, por outro, deu a conhecer ao mundo uma parte da sujeira encontrada nas suas buscas nos escaninhos onde só alguns podem entrar e ver tudo.
No fundo, se foi tentado para a prática de um crime que não se consumou, foi um denunciante activo de ocorrências muito graves.
Assim, motivado por esta segunda atitude, resolvi fazer uma breve pesquisa na Internet e veja o que descobri:
«A organização não governamental (ONG) Transparency International define denúncia ou whistleblowing de uma forma muito abrangente, tentando ampliar ao máximo a proteção destas pessoas. Assim, a Transparency International define denúncia ou whistleblowing como a divulgação ou denúncia de irregularidades, incluindo corrupção, outras infrações penais, violações de obrigações legais, erros judiciários, riscos específicos para a saúde pública, segurança ou meio ambiente, abuso de autoridade, uso não autorizado de fundos ou bens públicos, má gestão, conflitos de interesses e atos que visem encobrir qualquer uma das supra mencionadas. Ademais, a referida ONG define whistleblower como qualquer funcionário público ou do setor privado que divulgue informações sobre este tipo de irregularidades e que corre risco de retaliação por isso mesmo, incluindo indivíduos que não se enquadrem na relação de emprego tradicional, como consultores, empreiteiros, estagiários, voluntários, trabalhadores-estudantes, trabalhadores temporários e ex-funcionários. A informação que os denunciantes prestam pode ser comunicada aos seus colegas, supervisores, autoridades competentes ou público em geral.»
Trata-se de um pedacinho, e só um pedacinho, de um trabalho de investigação feito por um, hoje, mestre em Ciência Jurídico-Forenses de nome João António Alencastre de Matos Ramos, desde Março de 2019, inspector-estagiário da Polícia Judiciária, que apresentou a tese de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano de 2018, subordinada ao título, bem sugestivo, A protecção de denunciantes de corrupção e criminalidade conexa. O texto transcrito encontra-se na página 23.
Rui Pinto, segundo parece, tentou ser corrupto, todavia, os verdadeiros corruptos não lhe deram oportunidade para levar por diante o seu intento.
Ora, como ao Ministério Público cabe a função de acusar, tendo, para tal, de pesar razões, oportunidades, condições, consumações e tentações, ocorre-me perguntar-lhe, Senhora Procuradora-Geral da República, se, na “balança” da Procuradoria, pesam mais as tentativas frustradas ou as corrupções efectivadas?
É que, para mim, segundo o bom-senso que julgo ter, fruto de muito estudo, ponderação e vivência, as efectivações sempre foram mais graves do que as tentações falhadas.
Os meus respeitosos cumprimentos.